REGRA BULADA - 05 - 26/06/23 - Regra Bulada - Capítulo III - Do ofício divino e do jejum e de como..
- Frei
- 26 de jul. de 2023
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REGRA BULADA
III. Do ofício divino e do jejum e de como os irmãos devem ir pelo mundo
Os clérigos façam o Ofício Divino segundo a ordem da santa Igreja Romana, exceto o saltério. Por isso, poderão ter breviários. Os leigos, porém, digam vinte e quatro “Pais-nossos” (Mt 6,9-13), pelas Matinas; pelas Laudes, cinco. Pela Prima, Terça, Sexta e Nona, sete por cada uma. Pelas Vésperas, porém, doze e, pelas Completas, sete. Rezem pelos defuntos. Jejuem desde a festa de Todos os Santos até a Natividade do Senhor. Na santa Quaresma, porém, que começa com a Epifania e se estende “por quarenta dias” (Mt 4,2) consecutivos, consagrada pelo Senhor com o seu santo jejum, os que voluntariamente jejuarem, sejam abençoados pelo Senhor. E os que não quiserem jejuar, não sejam obrigados. Mas, na outra Quaresma, jejuem até a Ressurreição do Senhor. Em outros tempos, porém, não estão obrigados a jejuar, a não ser na sexta-feira. Mas, em tempo de manifesta necessidade, os Irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal.
Ainda, admoesto e exorto os meus Irmãos no Senhor Jesus Cristo que, ao irem pelo mundo, não entrem em litígios, nem em brigas de palavras vãs (Cf. 2Tm 2,14) nem julguem os outros. Mas, sejam brandos, pacíficos e modestos, mansos e humildes, falando honestamente com todos, como convém. E não devem andar a cavalo a não ser quando coagidos por manifesta necessidade ou enfermidade. Ao entrarem numa casa, digam primeiro: ”Paz a esta casa” (Lc 10,5). E, segundo o Santo Evangelho, podem comer de todos os alimentos “servidos” (Lc 10,8).
Introdução
Para o Irmão, uma vez ingressado na Ordem, Francisco vai expor, agora, a primeira regência de sua Vida: como fazer o Ofício Divino, o jejum e ir pelo mundo.
1. Façam o Ofício Divino
Num primeiro momento, essa maneira tão breve, um tanto fria, seca e categórica de falar da Oração nos estranha. Nem parece ser de Francisco. Nada diz, por exemplo, da oração particular, da meditação e da contemplação, exercícios tão caros, tão devota e tão intensamente praticados por ele a ponto de não apenas transformar-se em grande orante, mas na própria oração (Cf. 2C 94-95).
Mas, com essa maneira tão enxuta de falar, talvez, esteja nos alertando para que não nos percamos naquilo que não constitui a essência da oração, como, por exemplo, a busca de sentimentos, emoções e consolações ou de orações nascidas da subjetividade do nosso ego. Pelo contrário, quer conduzir-nos, direta e imediatamente, para o coração de toda a oração, para aquilo sem o qual não existe oração e que ele chama de Ofício Divino. Sem esse não há nenhuma oração nem pessoal nem particular nem comunitária, bem como nenhuma consolação verdadeira, nenhuma forma de oração verbal, meditativa ou contemplativa, etc.
Para compreender melhor essa que é a primeira e a mais importante de todas as funções ou regências do frade menor comecemos olhando o significado do título. Notemos que Francisco, em vez de falar em oração, como nós, fala em Ofício divino. Ofício vem de duas palavras latinas: opus e facere, isto é: fazer obra. Portanto, Ofício divino, literalmente, significa fazer a obra de Deus, ou melhor, entrar no trabalho de Deus; na grande Obra que Deus está realizando no mundo, na Igreja, nas pessoas, na História. Os antigos falavam em Opus Dei. Para eles a criação, a humanidade, a história toda, estão nas mãos de Deus como o barro está nas mãos do oleiro. Já proclamava o salmista: se escondes tua face das criaturas elas se perturbam; se lhe retiras o seu alento, perecem e voltam a seu pó (Cf. Sl 104). Há, pois, dia e noite, sem cessar, um grande artesão ou melhor, um grande Pai que, a modo de mãe, cheio de misericórdia, de com+paixão, zelo e carinho. cria, dá vida, cuida, sustenta, orienta e governa cada criatura, cada acontecimento, enfim, a Humanidade e a História toda. Em cada criatura ou acontecimento há, pois, um respiro, um sopro vital, existencial que vem do altíssimo, onipotente e bom Senhor (CSol).
Nesse sentido, rezar não é outra coisa senão ocupar-se com o Fazer do grande cuidado de Deus; é entrar em sua Obra, pulsante, “perfazida” em todos os acontecimentos e momentos da vida e da história dos homens. Consequentemente, toda e qualquer oração, particular ou comunitária, falada ou silenciosa, só existe, e é, se feita e movida a partir do Ofício Divino. Por isso, mais adiante, no capítulo X dirá:
Mas, atentem para que, acima de tudo, devem desejar ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar; orar sempre a Ele com o coração puro; ter humildade e paciência na perseguição e na enfermidade; amar aqueles que nos perseguem, repreendem e acusam, pois, diz o Senhor: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem e caluniam”.
Eis a Obra, o Ofício divino. Orar sempre significa, a modo de Deus, estar sempre no desejo, na paixão e no empenho de fazer o bem. Expressão máxima desse Ofício divino é Jesus Cristo que, desde sua Encarnação, crucifica sua vontade própria para fazer a vontade do Pai e nossa vontade até à morte e morte de Cruz. É por causa da potência dessa Obra de Cristo que todas as coisas existem e subsistem. A Igreja expressa esse princípio dizendo, por exemplo, na Missa: por Cristo, com Cristo e em Cristo! Por isso, Francisco não quer e não faz outra oração senão essa de seu Mestre e Senhor, Jesus Cristo, o Servidor do Pai: viver da Cruz e para a Cruz (Cf. Atos 4). Esse sentimento era tão vivo e profundo que chegou a elaborar para si todo um Ofício da Paixão que o rezava todos os dias. Para Francisco, Ofício divino é obra tão elevada e nobre que, para ele, até a Senhora Pobreza deve inclinar-se: Por isso, os clérigos poderão ter breviários. Da mesma forma, queria que cálices, corporais do altar e todas as coisas pertencentes ao sacrifício fossem confeccionados com o material mais precioso de que pudessem dispor (Cf. 1CC).
Para Francisco o Ofício Divino é de tanta importância, grandeza e dignidade que nenhum Irmão pode isentar-se dele. Por isso, para os frades que não sabiam ler inventou, admiravelmente, o Ofício dos leigos. Trata-se do conhecido Ofício dos Pai Nossos. Coração desse Ofício é, pois, a Oração por excelência porque feita e ensinada pelo próprio Cristo; a oração que é o sumo de toda a sua Boa Nova, o Evangelho.
Acerca do número de Pai Nossos que se deve dizer para cada uma das Horas canônicas, São Boaventura vê nele todo um admirável significado bíblico. Vinte e quatro para as Matinas, por exemplo, segundo ele, representa a soma dos nossos grandes pais do Antigo e do Novo Testamento: os doze Patriarcas e os doze Apóstolos, bem como, porque esse é também o número das horas do dia.
Para Francisco, portanto, Ofício divino, deve ser entendido como sendo toda a grande Oração da Igreja, que abrange sacramentos, horas canônicas e, acima de tudo, a Eucaristia, culminando tudo no grande Ofício divino que é a Obra da Evangelização, do anúncio da Palavra, feito pela voz, mas, acima de tudo, pelo testemunho, dado pela vida: a Missão, a grande Missa. Por isso, se entre os monges a oração está ligada ao trabalho, para Francisco está ligada à missão, à evangelização. Eis porque a Regra fala da Missão aqui, no capítulo do Ofício Divino.
2. E jejuem
Depois de descrever como os irmãos devem reger-se em seu relacionamento com Deus, a Regra passa a tratar da regência que o irmão deve seguir consigo mesmo: jejuem. Um jejum de quarenta dias porque, segundo São Boaventura, foi assim que jejuaram Moisés, Elias e o próprio Senhor. Moisés o eleito e chamado pelo Senhor para ser o grande libertador e organizador do Povo de Deus. Elias o grande profeta, defensor do verdadeiro culto e adoração a Jahvé contra o culto e adoração aos falsos deuses dos cananeus. Mas, há uma grande diferença entre o jejum dos dois primeiros e o de Cristo. O jejum de Moisés e de Elias é o jejum da penitência, da tristeza. Jejuam para libertar-se da culpa e de toda a miséria causadas pelo pecado. O jejum de Jesus é de gáudio porque nasce da graça do perdão e da reconciliação que vem do Pai; nasce, enfim, da festa porque o filho que estava perdido foi encontrado. Nesse jejum o coração está tão unido à tantas delícias espirituais que lhe seria uma perda deplorável e um grande peso procurar outra comida ou bebida ou outros deleites terrenos ou carnais. Jejua, portanto, não para afligir o corpo, mas para que não se interrompa a devoção com a qual se alimenta o espírito (Cf. São Boaventura, o.c. pág. 61). Ou seja, o religioso está tão tomado, tão bem alimentado pela presença do Senhor que qualquer outro alimento serviria apenas para tirá-lo ou privá-lo desse Banquete celestial. Por isso, Francisco impôs duas Quaresmas por preceito e uma por devoção; duas movidas pela penitência, isto é, para chorar os pecados e uma movida pelo gáudio do perdão, da redenção. As duas por preceito são a Quaresma do Advento em preparação ao santo Natal e a Quaresma que vai da Quarta-feira de Cinzas até a ressurreição do Senhor. A terceira, a Quaresma da alegria, do gáudio, começa na Epifania e se estende até Quarta-feira de Cinzas. Essa é recomendada como devoção. Por isso diz: aqueles que a observarem serão abençoados pelo Senhor (idem).
O jejum evangélico, de fato, sempre foi entendido e praticado pelos fiéis da Igreja primitiva como resposta agradecida e alegre ao único tesouro de seu coração, à essência de sua vida: o chamado de Cristo para segui-Lo. Por isso, seu coração foi sempre o desprendimento de si para estar total e inteiramente nas mãos, na dependência, no vigor e no amor Daquele que nos amou por primeiro; é gloriar-se de suas fraquezas para que brilhe a força do Espírito do Senhor e, assim, se instaure sempre mais no mundo a Obra, o Reino de Deus; no jejum, como na oração, cessa nosso agir e faz-se espaço para o agir de Deus; cessa nossa obra para que apareça a Obra de Deus, cessa nosso reino para que impere o Reino de Deus.
Agora, pode-se compreender porque a Regra menciona e recomenda certos tempos para o jejum, principalmente em preparação às duas maiores festas ou mistérios de Cristo: a Encarnação com o Natal e a Redenção com a Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor.
Assim, quem jejua ou reza, entra num processo de sintonia e de “comungação” com Jesus Cristo, fazendo-se cada vez mais partícipe de sua filiação divina, permitindo que o Pai do céu seja, cada vez mais, e também, seu Pai e nele possa realizar sua Obra – o Ofício divino - como a realizou em Cristo, Nossa Senhora e tantos outros. Por isso, o Senhor diz que com esse jejum e essa oração não há casta de demônios que resista (Cf. Mt 17,21). Por isso, também, o capítulo termina exortando que os irmãos não esqueçam jamais a liberdade evangélica. Pois, segundo o Evangelho, em tempo de manifesta necessidade, os Irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal (Cf. Lc 10,8).
3. Ir pelo mundo no vigor do Ofício Divino
Num primeiro momento parece estranho que Francisco una Vida apostólico-missionária, a missão ou evangelização, ao Ofício Divino. No entanto, essa maneira de falar nos dá a chave de ouro para compreender o que deve ser, em sua raiz, a oração e a missão ou evangelização franciscana, o ir pelo mundo sem nada de próprio. Para Francisco também essas são um grande Ofício Divino, uma grande Ação de Graças, uma grande Doação, o sumo do Sacrifício cristão, uma grande Missa ou Missão.
Francisco, como Jesus Cristo, é o homem do uno, da unidade e não das partes, das divisões. Ele, como Cristo, em relação ao Pai, não está menos na intimidade de seu Senhor quando está levando a Boa Nova de Jesus Cristo pelas aldeias e povoados, ou pedindo esmola de porta em porta ou trabalhando na horta do que quando está recolhido, meditando ou rezando as horas canônicas. Da mesma forma não é menos missionário quando está fazendo as Orações do Ofício divino ou suas orações particulares do que quando está viajando para Marrocos a fim de evangelizar o sultão. Ou seja, não é menos orante quando anda pelo mundo do que quando reza; como também não é menos missionário quando reza, recolhido em seu eremitério, do que quando percorre vilas e povoados anunciando a Palavra de Deus e seu Reino. Na oração evangeliza e na evangelização reza. Em ambos os casos está sempre se deixando conduzir pelo Ofício Divino, pelo Fazer de Deus. A unidade desses dois pilares de nossa Vida Francisco a expressa, mais tarde, no famoso bilhetinho a Frei Antônio: Apraz-me que leias a sagrada teologia aos Irmãos, contanto que, nesse estudo, não extingas o espírito da oração e da devoção, como está contido na Regra.
Francisco liberta, assim, tanto a Oração como a Missão da vanglória da subjetividade dos orantes e evangelizadores. Nos diz que não somos nós que rezamos, como não somos nós que evangelizamos; que, antes de nós, há um maior que por nós e através de nós reza e evangeliza. É o que diz o Apóstolo: Entretanto, o mesmo e único Espírito realiza todas essas ações, e Ele as distribui individualmente, a cada pessoa, conforme deseja. Unidade na diversidade (1Cor 1,12).
Há, pois uma diferença enorme, essencial e fundamental entre a oração e a missão dos mundanos e pagãos e a oração e a missão dos cristãos. Enquanto entre aqueles a oração e a missão nascem deles mesmos e, por isso, elas são vazias, entre esses nascem do Espírito e serão sempre plenas, santas e eficazes, mesmo que os orantes e evangelizadores sejam impuros e hipócritas. Já dizia São Paulo que nós, de nossa parte, não sabemos o que devemos pedir nem orar como convém; mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis. Aquele que perscruta os corações sabe o que deseja o Espírito, o qual intercede pelos santos (Rm 8,26-27).
Por ser propriedade do Espírito, a oração e a missão transcendem e escapam ao controle dos nossos métodos e da ciência humana. Querer controlar o que nos transcende, querer apossar-se do encontro, não só ofende gravemente o amigo, mas, também, corta pela raiz, toda e qualquer possibilidade de convívio e de intimidade com o Outro e com os outros. Daí as fortes queixas de Jesus contra as orações mundanas, egocêntricas e interesseiras dos fariseus (Cf. Mt 6,7-8; 19-21). Por isso, também, nosso Papa Francisco nos alerta seguidamente acerca do perigo do mundanismo espiritual (Cf. EG 93. ss) e da “Religião do eu”.
Rezar e evangelizar, portanto, da nossa parte, será sempre um diligente estudo e uma acurada especulação acerca de Deus, de seu Ofício e da fiel e dedicada colaboração com Ele e sua obra. Por isso, os antigos diziam, ainda, que rezar era vacare Deo. Vacare Deo, literalmente, significa: estar vago, ocioso, vazio e desocupado para a ação de Deus. Eis o sentido de todas as nossas orações, de todos os nossos jejuns, em todas as suas dimensões, corpo, alma e espírito: deixar-nos livres e liberados para o grande Oficio Divino: a evangelização. A terciária franciscana Marina, nos dias de sua longa e dolorosa enfermidade expressou muito bem esse princípio: Devo ser Maria, fazendo-me presente em tudo, mas sem ser notada nem ouvida. Devo ser Eucaristia, isto é, ação de graças, adoração, serviço... Agora que estou sofrendo eu sei que alguém tem de carregar o lixo do mundo para transformá-lo em adubo” (O Livro de Marina, Adelino Pilonetto, pág. 202).
4. Digam primeiro “Paz a esta casa”
Francisco conclui esse capítulo da oração, jejum e missão com mais uma admirável semelhança com a missão dada por Jesus aos seus Apóstolos. Assim como Jesus, também Francisco termina seu discurso missionário aos seus Frades com a famosa frase: ao entrarem numa casa digam primeiro: “Paz a esta casa!”
Buscar e fazer a paz é uma constante na história dos homens e de cada um de nós. Mas, e apesar de todos os empreendimentos, a história dos homens, em geral e de cada um em particular, revela que a paz continua sendo uma grande utopia. Isso acontece porque em toda essa luta nos falta o mais importante: construir a paz não em cima de nossos conceitos e empreendimentos, mas a partir do dom de Deus que é seu Filho, Jesus Cristo Crucificado. Ora, Jesus Cristo não é uma ideia, um conceito, um mito, mas, uma Pessoa, o Filho do Deus vivo, o Príncipe, isso é, o Princípio da Paz que veio para viver e conviver não com anjos e santos, mas com humanos e pecadores. Eis o sentido da palavra “primeiro” da frase evangélica: digam primeiro. Em outras palavras, o evangelizador franciscano, sempre, em tudo e com todos, deve mover-se ligado, unido, mergulhado nesse seu Senhor e Mestre, em sua Paixão, em seu amor entranhado pelo Pai e pelos filhos de seu Pai, os homens.
Essa compreensão de paz não se coaduna com aquela que vem do mundo, entendida, principalmente, como simples ausência de enfrentamentos, lutas, conflitos, perseguições, cruz; nem como um estado de serenidade, de harmonia, equilíbrio e tranquilidade interior, calma, sossego, muito menos de inércia e estagnação.
Por isso, no coração da paz evangélica está não tanto o desejo de ter a paz pra si, mas de fazê-la, criá-la. Por isso, também, o discípulo de Jesus prefere sofrer o mal, a injustiça do que fazê-los. Ele vence o mal com o bem. Nisso, ele ajuda, se associa a Cristo, o Príncipe da Paz, a carregar o pecado do mundo, participando da sua paixão salvadora; nisso, ele se mostra não só discípulo de Jesus, mas, também, seu irmão e companheiro, pois a partir de seu chamado e de seu seguimento, ele passa a comungar de sua origem, de seu ser, de seu viver, de seu agir e de seu sofrer que é o Pai que está no céu. E é digno, por isso, de também ele, ser chamado “filho de Deus” com Jesus, em Jesus e como Jesus. Jesus por natureza, ele por graça, por adoção.
Por isso, quando a Igreja reza “Eis o Cordeiro de Deus que tira pecado do mundo” importa que se olhe bem como é que Ele tira o pecado. Em verdade, mais e antes que eliminar, apagar ou destruir o pecado, Ele o carrega e o faz seu, guardando-o no silêncio mais profundo de seu coração. E esse é, também, o sentido mais original do termo “pacífico”: aquele que faz paz. No latim temos a junção de “pax” (paz) + “facere” (fazer): “pacificus”: o fazedor de paz. O mesmo, diga-se do verbo latino “tollit”, empregado no rito da comunhão e usualmente traduzido por “tira”. Na verdade, “tollit”, do verbo “tollere”, significa mais e antes: carrega, assume como sendo seu. É a concretização da parábola do Bom Pastor que carrega em suas costas a ovelha perdida e machucada. Entregando-se à morte na Cruz, Jesus diz para o Pai que todos os pecados de todos os homens não são deles, mas Dele: “Eis o Cordeiro de Deus que carrega o pecado do mundo!” O princípio e o auge, portanto, de toda essa obra de paz é a Cruz, a Eucaristia. Jesus toma o pecado do homem, carrega-o para dentro de si a fim de transformá-lo em graça, perdão, misericórdia, amor.
Por isso, o texto termina dizendo que eles, os missionários, podem comer de todos os alimentos servidos. Isso significa: com esse espírito de paz no coração nada lhes fará mal. É o que decanta magnificamente bem São Paulo:
Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: “Por amor de ti enfrentamos a morte todos os dias; somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro”. Mas em todas estas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8,35-39).
O Papa Francisco, depois de lamentar que a cultura da globalização unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos», recorda a viagem missionária de Francisco ao Sultão e acrescenta:
Sem ignorar as dificuldades e perigos, São Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, “quando estiverdes «entre sarracenos e outros infiéis (...), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus”. No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou contenda e também viver uma «submissão» humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé. Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que «Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus» (1 Jo 4, 16). Assim foi pai fecundo que suscitou o sonho duma sociedade fraterna, pois «só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai». Naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. (FT 3 e 4).
Conclusão
Palavra da Igreja, hoje
Oração e missão são duas vertentes ou graças do mesmo Mistério, do mesmo Desejo de Deus de morar conosco, de habitar no coração de cada ser humano e aí, como num casamento, fazer florescer seu amor, seu reinado. Falando da união dessas duas vertentes, diz nosso Papa:
Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se dar (EG 24).
Ofício Divino e Evangelização, por serem os maiores e mais significativos dons que nascem do mistério mais profundo da Vida cristã, que é a Encarnação e a crucificação do Senhor, precisam de um grande empenho para ser bem acolhidos. Por isso, diz ainda nosso Papa:
A Igreja não pode dispensar o pulmão da oração, e alegra-me imensamente que se multipliquem, em todas as instituições eclesiais, os grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra, as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação». Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do estilo de vida pode levar os cristãos a se refugiarem nalguma falsa espiritualidade (EG 263).
Assim, se é verdade que rezar sempre significa estar sempre no zelo e no empenho de fazer o bem, também é verdade que, para que isso aconteça, é preciso aprender a rezar e que haja momentos de oração. É o que nos diz o documento Vita Consecrata:
Todos, crentes e não crentes, precisam aprender um silêncio que permita ao Outro falar, quando e como quiser, e a nós compreender esta palavra » (83). Isto exige, concretamente, uma grande fidelidade à oração litúrgica e pessoal, aos tempos dedicados à oração mental e à contemplação, à adoração eucarística, aos recolhimentos mensais e aos retiros espirituais (VC 38).
No mesmo tom, diz nosso Papa Francisco:
A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial. Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez presente e lhe disse: «Eu te vi, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48) (EG 264).
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM
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