REGRA BULADA - 04 - 24/05/23 - Regra Bulada - Capítulo II - Dos que querem aceitar esta vida, e ...
- Frei
- 22 de mai. de 2023
- 8 min de leitura
REGRA BULADA
II. Dos que querem aceitar esta vida, e como devem ser recebidos
Se os que quiserem receber esta vida vierem aos nossos Irmãos, estes enviem-nos aos seus Ministros Provinciais; pois somente a eles e não a outros se conceda a licença de receber Irmãos. Os Ministros, porém, examinem-nos diligentemente sobre a fé católica e os sacramentos da Igreja. E se crerem em todas estas coisas, e as quiserem confessar fielmente e observar com firmeza até o fim, e não tiverem esposas ou, se tiverem, essas já tiverem entrado no mosteiro, ou lhes tiverem dado a licença com autorização do Bispo diocesano, tendo já emitido o voto de continência, e se as esposas forem de tal idade que delas não se possa originar suspeita, digam-lhes a palavra do Santo Evangelho:” vão e vendam todas as suas coisas e empenhem-se em distribuí-las aos pobres” (Mt 19,21). Mas, se não puderem fazê-lo, basta-lhes a boa vontade. E cuidem os Irmãos e seus Ministros de não serem solícitos por suas coisas temporais, para que façam de seus bens livremente o que o Senhor lhes inspirar. Se, porém, pedirem conselho, os Ministros podem enviá-los a algumas pessoas tementes a Deus que os aconselhem e os orientem na distribuição de seus bens aos pobres. Depois, concedam-lhes os panos da provação, isto é: duas túnicas sem capuz, e cordão, e bragas e caparão até o cordão, a não ser que os Ministros, alguma vez, vejam outra coisa segundo Deus. Terminado o ano de provação, sejam recebidos à obediência, prometendo observar sempre esta Vida e Regra. E de modo algum lhes será lícito sair desta Ordem, conforme o mandato do senhor Papa, porque, segundo o Santo Evangelho, ninguém, “que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus” (Lc 9,62). E os que já prometeram obediência, tenham uma túnica com capuz e, se quiserem, outra sem capuz. E os que são coagidos pela necessidade podem usar calçados. E os Irmãos vistam-se de vestes vis e podem remendá-las com sacos e outros retalhos com a bênção de Deus. Admoesto e os exorto a não desprezarem nem julgarem os homens que virem usar vestes macias e coloridas, tomar comidas e bebidas finas, mas antes, julgue e despreze cada qual a si mesmo.
Introdução
Após o anúncio do princípio da Regra e Vida Franciscana, vem os primeiros passos, providências ou exercícios que devem ser buscados e seguidos por aqueles que se sentem atraídos por essa Forma de Vida. É o capítulo da iniciação ou o tempo da incorporação à Ordem.
1. Gratuidade, o móvel de toda a Iniciação
Se os que quiserem receber esta vida vierem aos nossos Irmãos... É assim que a Regra apresenta o começo da vida do vocacionado na Ordem. É a frase dá o tom que vai reger toda a iniciação e incorporação do vocacionado à Ordem: a gratuidade. Por isso começa com um se os que quiserem... O chamado à Vida Franciscana pertence à dimensão do espírito, do amor e não da carne, da conquista ou merecimento. Numa profissão, ou vocação humana, pode-se dizer, por exemplo, “eu entro na medicina, nessa Escola”, etc. mas numa vida, que é maior ou anterior a nós, como a Vida Franciscana ou o casamento, a dinâmica é sempre da graça, da liberdade.
Aqui, mais que entrar, importa receber. Nesse caso o querer não é mais fruto de uma faculdade ou poder de nossa subjetividade, mas do espírito. Já nasce batizado com a têmpera, a marca, o fervor ou ardor da graça da experiência de sentir-se chamado. É um querer novo, nascido do alto: “quero não porque eu quero, mas porque o outro me quis, me cativou e me quer, me amou e me ama por primeiro”; pertence à ordem da afeição, da gratuidade do encontro e não da iniciativa do vocacionado. Por isso, começa com um “se“, isto é, nasce, cresce e floresce pelo vigor da liberdade, responsabilidade, do amor.
Por isso, também, o segredo de toda a iniciação vem registrado com o verbo receber. Francisco gosta muito desse verbo. Faz eco à toda a história da salvação, marcada por um Deus que quer doar-se e que espera, ansiosamente, ser recebido. Mais que aprender a fazer “isso” ou “aquilo”, na Vida do amor importa aprender a bem receber o outro, principalmente em suas diferenças, divergências e contrariedades. Um desafio para nossa mentalidade farisaica de católicos “praticantes”, isto é, de católicos sempre prestes a querer controlar o mistério e a contabilizar merecimentos, conquistas, vitórias!
2. Fé na Igreja católica e nos Sacramentos
Francisco sempre viu sua Regra e Vida não apenas como um dom da Igreja, mas, também, como expressão da própria Igreja. Para ele a Ordem é uma réplica, ou melhor, uma ressurreição da Ordem, da Igreja dos Apóstolos; devia ser, por isso, uma cópia fiel da Igreja católica apostólica de Roma. Por isso, a exigência da catolicidade, aqui imposta, não se refere apenas à necessidade de evitar o ingresso ou a transformação de frades em possíveis hereges, mas, acima de tudo, de fazer com que ela cumpra, como os Apóstolos, a Igreja primitiva, a Igreja de Roma, sua vocação e missão: anunciar, pelo e para o mundo todo, o Reino de Deus através do testemunho, do exemplo, da Palavra e dos Sacramentos. O âmbito, a vinha de sua presença e ação vanrlizdora não será um mosteiro, uma diocese, um país, mas o mundo inteiro; não serão nem mesmo os cristãos, mas todos os homens, também os fiéis de outras religiões, os infiéis e até mesmo as criaturas irracionais, como as aves do céus, os peixes do mar, os lobos vorazes.
Nesse sentido, catolicidade, diz respeito não apenas à pertença à instituição chamada Religião católica, mas, ao cultivo da fibra mais sensível e amada de Deus: a universalidade de seu bem querer; um bem querer que a tudo e a todos inclui, bons e maus, justos e pecadores, amigos e inimigos como a irmãos muito amados e filhos muito queridos do Pai. Por isso, o frade, a exemplo dos cristãos primitivos, a ninguém exclui, a ninguém combate, mas a todos acolhe como “irmãos” que o Senhor lhe dá. Ser católico, nesse sentido amplo e magnânimo, significa ser e viver virado, voltado e animado pelo todo, pelo uno, como o testemunha Cristo e as Três Pessoas da SS. Trindade. O primeiro é visto sempre voltado, virado para seu Pai, sua vontade e seu Reino. Da mesma forma as Três Pessoas da SS. Trindade só existem e se constituem no Deus Uno e verdadeiro porque vivem sempre e continuamente uma voltada, virada, inserida, incoporda na outra.
3. Vender e distribuir tudo aos pobres
No verso 6 encontramos a segunda exigência ou exercício da iniciação que os Ministros devem apresentar ao candidato: digam-lhes a palavra do Santo Evangelho: “vão e vendam todas as suas coisas e empenhem-se em distribuí-las aos pobres”.
Na verdade, estamos diante de dois exercícios: vender e distribuir. Toda venda implica num ganho. Ninguém vende para perder. Mas, qual, então, o lucro aqui se a venda de todos os bens é para depois distribui-los, todos e inteiramente, aos pobres? Francisco responde: o ganho, o lucro da Senhora Pobreza, isto é, a graça de poder imitar e seguir Nosso Senhor Jesus Cristo que sendo Deus se esvaziou de sua Divindade para assim, nesse seu esvaziamento, poder receber o Pai e os homens como irmãos.
Mas, porque distribuir aos pobres e não aos entes queridos como os amigos, parentes e benfeitores? Porque, se assim o fizesse, não só estaria cultivando os laços da carne, inimiga número um de todo seguidor de Cristo, mas também, de uma ou de outra forma, estaria correndo o risco da recompensa. Assim, distribuindo aos pobres a pobreza é radical e está garantida. Não há nenhuma chance de volta ou retribuição. Mas, a razão mais profunda é que os pobres são sempre o sinal mais expressivo da presença de Deus e a verdadeira família do seguidor de Cristo.
4. Recebam os panos da provação
A seguir vem o exercício de receber as vestes da provação. A veste sempre está presente na vida das pessoas e até dos povos. No Paraíso, após o pecado, Adão e Eva trocaram a veste da inocência, do pudor pela veste da vergonha, do despudor. Há também a roupa de trabalho, de festa, de domingo, de médico, agricultor, etc. A roupa é uma expressão e uma convocação. Primeiramente, ela é uma extensão de nossa alma, um prolongamento de nossa identidade, um anúncio do nosso interior. Diz, enfim o que somos. Mas, é também uma chamada. Nos chama e convoca a ser o que devemos ser. Aqui, na Regra, diz que devemos empenhar-nos para receber e provar, degustar, saborear, os hábitos, experimentar os costumes e tarefas próprias da nossa Regra e Vida franciscana. Pois nesses hábitos ou costumes está a alma, o espírito de Francisco, o espírito de Jesus Cristo e seu Evangelho.
Foi para imbuir-se desse espírito que Francisco, logo após ouvir o Evangelho do envio missionário, trocou de veste. Vejamos como o fez:
Transbordando de alegria, apressou-se o santo pai a concretizar o salutar conselho, e sem demora pôs devotamente em prática o que ouvira. Tirou logo as sandálias, deixou de lado o bordão e, contente com uma só túnica, substituiu a correia por uma corda. Preparou depois uma túnica que apresentava o sinal da-cruz, para afastar com ela todas as fantasias demoníacas. Ele a fez muito áspera, para crucificar a carne com os vícios e os pecados. Ele a fez muito pobre e mal-acabada, para de maneira alguma poder ser ambicionada pelo mundo (1C 22).
Francisco trocou não apenas de veste, mas de vida, de alma. Da vida, da alma de eremita passou a exercitar-se no rigor dos princípios e costumes da Vida dos Apóstolos, seguidores do Cristo pobre e crucificado e observadores de seu Evangelho.
Depois, no final do capítulo, fala da veste para os frades que já prometeram obediência. Para esses as vestes devem ser vis, remendadas com sacos, etc. Tudo muito simples e lógico. Vileza, desprezo e imundície de nossa humanidade foram e são as vestes que Jesus Cristo vestiu no Presépio, na Cruz e veste na Eucaristia, nos pobres e pecadores de todos os tempos. Outras, portanto, não podem ser as vestes de quem se propõe a segui-lo.
5. Ser recebido à obediência
Diferentemente de nós, hoje, a Regra não fala em entrar na Ordem, fazer votos ou profissão, mas, simplesmente, em ser recebido à obediência. Mais uma vez soa, aqui, a gratuidade da resposta do candidato à gratuidade do chamado. “De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10,8), já havia dito o Senhor!
Segundo Francisco, portanto, entrar na Vida franciscana não é, propriamente, entrar num convento e nem mesmo “na Ordem” entendida como instituição, mas numa relação de obediência, ou seja: entrar na disposição de ouvir, escutar, entender, atendar e fazer a vontade de outrem; de entrar na dinâmica do seu bem-querer. E a razão é muito simples; porque é assim que faz Jesus: não só obedeceu ao Pai, mas à vontade dos homens. Obedeceu a Judas que o traiu, a Pilatos que o entregou aos maiorais judeus que, por su vez, o entregaram à morte de cruz. E obedece ainda hoje, a nós pobres e pecadores. Exemplo admirável pode-se ver na Eucaristia: Depende do sacerdote tornar-Se presente no pão e no vinho, depende de nossa voz para sua Palavra ser anunciada, do nosso perdão para tornar-se o Perdão do Pai, etc.
Portanto, assim como para os antigos monges, o mosteiro era o espaço dentro do qual faziam acontecer o ”ora et labora” de sua Vida Religiosa, agora é ao redor da dinâmica da obediência que acontece e floresce a Vida dos Irmãos. Daí o nome que escolheu para seus seguidores: Ordem de Irmãos Menores.
Para pensar e partilhar:
1. Com quais verbos a RB caracteriza o ingresso na Ordem? Para qual tom ou espírito esses verbos apontam?
2. Qual o significado das vestes?
3. Por que fala em “ser recebido à obediência”?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM
Continue bebendo do espírito deste tema:
- postando seus comentários;
- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - REGRA BULADA - 04 - Capítulo II - Dos que querem aceitar esta vida, e como devem ser recebidos
Inscreva-se e curta nossos vídeos
Próximo Encontro: REGRA BULADA - 05 -
Comments