99ºEncontro 20/5/23 17ª Admoestação - Do humilde servo de Deus - 3ª parte
- Frei
- 22 de mai. de 2023
- 14 min de leitura
DO HUMILDE SERVO DE DEUS
O VIGOR FUNDAMENTAL DA HUMILDADE
Bem-aventurado aquele servo (Mt 24,46), que não se exalta mais pelo bem que o Senhor diz e opera através dele do que pelo bem que o Senhor diz e opera por outro. Peca o homem que quer receber mais do seu próximo do que não quer dar de si ao Senhor Deus.
Estas palavras são o teor da Admoestação XVII, que foi intitulada “Do humilde servo de Deus” (De humili servo Dei).
Como vimos nas últimas reflexões, as Admoestações de São Francisco apresentam toda uma concatenação de virtudes, isto é, de vigores de ser que conduzem o ser humano à excelência de sua humanidade, segundo a forma ou a ótica do Evangelho, no seguimento de Jesus Cristo. O ser humano é, nesta perspectiva, ao mesmo tempo, nada, à medida que é criatura e que todo o ser e todo o bem ele recebe de Deus, como filho muito amado do Pai, irmão do unigênito e primogênito Jesus Cristo, morada do Espírito Santo. As virtudes que conduzem o ser humano à excelência de sua humanidade nesta perspectiva são: a caridade (o amor-gratuidade), a pobreza de espírito, a humildade e a paciência, a paz e a pureza de coração.
1. A caridade é humilde
Como já fizemos em outro momento, podemos comparar esta conexão de virtudes a uma árvore: a caridade, isto é, o amor-gratuito, é a raiz, a pobreza de espírito é o tronco, a paciência e a humildade são como que dois ramos, a paz e a pureza de coração poderiam ser comparadas a flores e frutos. Mas, em que solo se planta esta árvore das virtudes ou bem-aventuranças franciscanas? É o solo da graça do Pai e do Filho e do Espírito Santo. A graça transforma a nossa natureza humana deificando-nos. Nessa concepção, as virtudes subsumem a nossa natureza, nos tornando mais humanos. E somos tanto mais humanos quanto mais nos tornamos filhos de Deus, isto é, quanto mais somos deificados pelo Espírito Santo, no seguimento de Jesus Cristo, em união de amor com o Pai.
A caridade, o amor, está na raiz de tudo. É o fundo-abismo do ser do Deus do Evangelho de Jesus Cristo. É, ao mesmo tempo, o fundamento de todo o bem-viver, de toda a bem-aventurança do discípulo de Jesus. A caridade é, porém, humilde. A humildade é um traço essencial do amor-caridade. No hino à caridade, de São Paulo, com efeito, nós lemos: “a caridade não é orgulhosa, não se ensoberbece” (1 Cor. 13, 4b). Dito de modo positivo: a caridade é humilde. Mas, o que é a humildade?
A humildade é o vigor de ser e a jovialidade de quem está assentado na verdade, isto é, na realidade. O humilde é real, é verdadeiro. Ele não se deixa levar pela não-verdade, isto é, pela autoilusão, pelo engano a respeito de si mesmo, pelo fogo fátuo da egolatria, pelos deslumbramentos com as luzes néon que emanam do mundo ao seu redor, luzes que piscam, por exemplo, com a fama, o sucesso, o renome, etc. A soberba (a vanglória, a arrogância, a insolência, a presunção) é um crescimento falso. O soberbo não cresce. Ele se incha. O crescimento da soberba é, com efeito, uma inflação. A humildade, porém, é o verdadeiro crescimento, pois é o crescimento que vem não de nosso próprio ego, mas da amplidão, profundidade e originariedade da realidade, da Vida. A humildade consiste em estar bem assentado no pertencimento ao todo do ser, ao todo da vida, ao Céu e à Terra.
A humildade é, segundo a etimologia latina de “humilitas”, algo assim como o vigor de ser e a jovialidade da terra (humus). O humus resulta da decomposição de restos vegetais e animais sobre o chão. Isso que cai e se decompõe sobre a terra, então, fortalece a terra, retém a água e nutre os vegetais, que, por sua vez, são alimento para os animais. A humildade transforma a corrupção e a morte em elemento para nova vida, a negatividade destrutiva do mal na positividade e cordialidade do bem. A humildade faz isso graças à gratuidade do amor. Só o amor é capaz de realizar tal obra em sua perfeição, em sua consumação. A irmã e mãe terra, que, como diz o Cântico do Irmão Sol (CIS 9), “nos sustenta e nos governa, / e produz frutos diversos / e coloridas flores e ervas”, ensina-nos a todo o tempo e em todo o lugar o vigor de ser e a jovialidade da humildade. Talvez seja por isso que, como dizem, em certos templos zen do Japão, há tabuinhas rudes na entrada, que dizem: “olha bem para o lugar em que tens os pés”. Os primitivos franciscanos, certamente, praticavam bem esta máxima:
São Francisco e seus primeiros companheiros p. ex. em I Fioretti, associavam a virtude da humildade com a Terra. Pois se a humildade é fundamento, o chão onde nascem e crescem outras virtudes, ela devia ser o húmus, o humo da terra que tudo fertiliza, dá vigor e sustentação, sustenta todos que passam por cima dela, não se queixa, nem se acha vítima, mas gosta de sustentar, estar por baixo de, sendo útil, bom, firme, e confiável não somente por que quer servir e sentir que serve, mas porque serve mesmo i. é, dá conta, e não aparece pois é do fundamento, é da raiz [1].
2. Humildade, o vigor do Céu e da Terra
Entretanto, também este é o modo de ser do Céu, que abraça a Terra, concedendo-lhe a luz do Sol, da lua e das estrelas, bem como o sopro do vento e dádiva das chuvas, e que a tudo dá lugar, como o firmamento de todas as coisas. E ele faz tudo isso de maneira discreta, inaparente, humilde. Por isso, podemos estender nossa reflexão e dizer que a humildade é o vigor da Terra e do Céu, que, sendo o que há de mais nobre, fazem-se vis, aparecem como sem importância, para nós que, de início e na maior parte das vezes, mal prestamos atenção aos seus serviços generosos a tudo e a todos. O pensamento do Tao, produzido na China antiga, ressalta este modo de ser, este vigor (virtude), do Céu e da Terra, que se chama “humildade” e que o homem sábio segue. Diz, por exemplo, Lao Tsé, no livro “Tao Te King” (O Livro do Caminho Perfeito):
O céu e a terra são imperecíveis / Se são imperecíveis é porque não dão vida a si mesmos./ E assim sendo, têm longa duração. / Por isso o sábio coloca-se em último lugar / e chega na frente de todos. / Quando esquece suas finalidades egoístas / Conquista a perfeição que nunca buscou [2].
A amor é humilde. A humildade é a nobreza do amor. Pelo amor, quem ama não está em função de si mesmo e de seus interesses egoístas e particulares, mas está a serviço de tudo e todos na responsabilização do cuidado. E serve não como quem quer aparecer na nobreza do servir, mas como quem se esquece de si mesmo, e se devota inteiramente às obras do amor e àqueles que são servidos com as obras do amor. Assim, a maior nobreza aparece como vileza. Frei Harada dizia:
A humildade é o vigor do céu e da terra. O vigor do céu e da terra é grande, imenso, inesgotável e sereno.
Terno e carinhoso, tudo envolve na sua transparência cordial. De nada se apossa, tudo deixa ser na inocência nasciva da admiração. Singelo e simples, variegado e uno, vivo e criativo, jovial e profundo a todos serve com alegria. É seguro e firme como a bondade do pai, solícito e benigno, delicado como o olhar e o toque da mãe.
O-céu-e-a-terra é naturalmente assim. É simplesmente. Por isso, não sabe que é assim. Por não saber nem sequer tem a possibilidade de gloriar-se de si; não pode sequer pensar em exigir o reconhecimento. Assim o-céu-e-a-terra é esquecido de si. Tão esquecido de si que nem sequer sabe que é esquecido de si.
Por isso o vigor do céu e da terra não encabula a ninguém; não provoca a gratidão nem admiração. Silencioso como nada deixa ser tudo e a todos à vontade, em casa [3].
Sábio é quem recebeu a iluminação do todo do real, aquele para quem a realidade se abriu e se aclarou na liberdade da verdade. Porque a humildade é o estar bem assentado no fundamento da vida real, o sábio só pode ser humilde. Ele assenta seu viver, sua identidade, sua operação e suas obras, na realidade una do vigor do Céu e da Terra. Aquele que se entrega às ilusões não é sábio, mas insensato, desatinado, desvairado. Este, porém, ao se exaltar em sua arrogância, prepara para si a iminente ruína. Ele não guarda a medida das coisas da vida. Ele exagera e sobrecarrega a vida com suas ambições. Falta o vazio da pobreza de ser em seu viver. Porque tudo fica muito carregado, tudo vai em derrocada. Diz, pois, o Tao Te King:
É melhor não encher totalmente um vaso / do que tentar carregá-lo se estiver cheio. / Quando afiamos demasiadamente uma faca, seu gume não / se conservará. / Quando o ouro e o jade enchem o salão, seus donos / não poderão manter a segurança. / Quando a riqueza e as honrarias conduzem à arrogância / decerto o mal virá logo a seguir. / Quando fizermos o trabalho e o nosso nome começar a / celebrizar-se, a sabedoria consiste em recolhermo-nos à / obscuridade, assim que a tarefa terminar. / Este é o Caminho do Céu!
3. O Logos, o Caminho se fez Carne
Aquele que é iluminado pela realidade da vida, o sábio, que é o humilde, segue o caminho da Terra, segue o caminho do Céu, segue, na verdade, a unidade do caminho do Céu e da Terra, aquilo que os chineses chamam de Tao. Com este nome eles evocam o Caminho de todos os caminhos: o curso que envia, que rege e que leva à consumação todos os bem-aventurados percursos. Os gregos chamavam este Caminho de “Lógos”. Esta palavra, em grego, quer dizer “recolhimento”, “reunião”.
O prólogo do evangelho de São João, de fato, dizia que Jesus Cristo era o “Lógos” em que estava a vida e a luz para os homens. Mas o mais importante desse hino que abre o evangelho de João é a afirmação de que esse “Lógos” se fez carne. Essa encarnação significa: o Filho Unigênito do Pai, sua Palavra, assumiu a fragilidade de nossa humanidade. Ele se inseriu inteiramente na vida real dos seres humanos, com todas as suas condições e vicissitudes. São Paulo, na Carta aos Filipenses (2, 6-11), diz que ele se esvaziou inteiramente de sua glória, assumindo a nossa vida real humana, e, em assim fazendo, ele se fez servo de tudo e de todos. Este esvaziamento, esta “nadificação”, de Cristo, é o vigor de sua humildade. Mas é por ela que nos foi concedida a plenitude da graça e da verdade.
Na noite de sua paixão, quando ia consumar seu amor por nós, Jesus fez o gesto de escravo: lavou os pés dos seus discípulos. Com este gesto, ele simbolizou, isto é, reuniu em um só lance, o sentido de toda a sua doação aos seres humanos, seus irmãos. O Mestre e Senhor se mostrou a si mesmo no serviço humilde aos homens. Os pés são a base de nosso corpo. É o que nos mantém sobre o chão. É o que nos permite caminhar sobre a terra. Os pés suam quando caminham e muitas vezes passam a cheirar mal. Os pés pegam poeira. Lavar os pés é estar a serviço dessa condição humana, terra-a-terra, vil, pobre. No Grande Sertão: Veredas, Riobaldo diz que “pobres são árvores que pegam poeira”. Jesus não desdenhou a nossa realidade terra a terra, a nossa realidade de pobres caminhantes, a nossa condição de empoeirados e, para lembrar do Gênesis, de mortais, de pó. Ele não só se colocou a serviço desses pobres mortais e caminhantes que somos nós, como ele mesmo assumiu de modo mais radical do que nós esta nossa mesma condição. Ao lavar os pés dos seus discípulos, Jesus dava o exemplo, que iluminava a respeito da possibilidade do próprio seguimento/discipulado dele: a humildade da caridade. Jesus lhes diz:
Dei-vos o exemplo para que, como vos fiz, assim também façais vós. Em verdade, em verdade, vos digo: o servo não é maior do que o senhor nem o emissário maior do que quem o enviou. Se compreenderdes isto, e o praticardes, seres felizes (Jo 13, 15-17).
A humildade é a possibilidade possibilitadora do seguimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado e crucificado, o Senhor-Servo de tudo e de todos. Possibilidade quer dizer: capacidade. Humildade é o poder que nos capacita, isto é, nos dá vigor no seguimento de Jesus [4].
Ser discípulo/seguidor de Jesus Cristo é possível pela obediência da fé. Mas, para entrar na porta que dá acesso ao reino do amor-gratuidade, que é o reino de Cristo nos corações dos seres humanos, é preciso que o ser humano se abaixe, isto é, aprenda a descer das alturas dos projetos egocêntricos de sujeição dos outros, das coisas e da vida, às próprias prospectivas, para o chão da finitude da vida real. A propósito disso, recordamos o seguinte. Os editores dos escritos referentes a frei Egídio, na coleção de livros de bolso “Fontes Franciscanas”, fizeram colocar um desenho na capa, que apresenta corvos se inclinando ao chão para bicar algumas sementes, que, por sua vez, descem por uma escada, a qual, por sua vez, é apresentada em dois modos: como descendente e como ascendente. Junto disso tudo, porém, há uma flor de lis, centrada num coração pulsante. Logo no começo do livro, vem uma explicação sobre a “simbologia da capa”, que diz:
Frei Egídio achava o ‘canto’ dos corvos horrível e o canto dos homens, belíssimo. Mas, preferia o dos corvos ao dos homens. É que estes entoam lá, lá, lá, ao passo que aqueles apenas grasnam cá, cá, cá.
O lá é belo, sublime, nas alturas. É sempre para além, ‘espiritualista’, ‘celestial’. Mas, jamais está aqui e agora. Jamais inserido no concreto definido de uma dada situação-Terra, acolhendo-o, com gratidão e responsabilidade, como o dom único da possibilidade agraciada.
Por isso, está continuamente a procurar o seu habitat no extra-ordinário, fora do seu próprio, se avia em buscas avoadas, rejeitando-se como carente do Infinito, sua privação. Assim o lá diz conhecer Deus, mas o conhece apenas como metafísico. Não se encontra com nem conhece o Deus de Jesus Cristo, cuja graça, cuja beleza e vigor, se ocultam na vileza e pobreza da Encarnação.
O cá do frei Egídio é a dinâmica da espiritualidade da graça cristã, conhece a possibilidade agraciada e ‘engraçada’ de Jesus Cristo Crucificado.
Na quadratura do encaixe, da incrustação nas vicissitudes corpo a corpo da existência histórica e finita, descobre as sementes de uma condução, em cuja descida para a Terra dos Homens, encontra o tesouro escondido no subterrâneo do Mistério da Encarnação.
É ali, no ocultamento da Humildade, Paciência e Pobreza do Amor de Deus, o qual se faz continuamente Homem e habita entre nós, que nasce e cresce a flor de lis da nossa existência, o tesouro onde se acham o coração (Mt 6, 21) e a pupila dos olhos da espiritualidade franciscana (Mt 6, 22-23).
4. Servo é o humilde que não sabe que é humilde
A humildade é, pois, a possibilidade possibilitadora, agraciadora e agraciada, do seguimento de Jesus Cristo. Humildade é poder. Mas, como observa frei Harada, numa nota em um texto sobre “I Fioretti”, “poder originariamente não significa dominação da força, mas sim acolhida do crescimento da identidade na jovialidade de ser. É a regência e vigência de ser” [5]. O crescimento nesta possibilidade agraciadora e agraciada é a bem-aventurança.
A possibilidade do seguimento de Jesus Cristo, a existência cristã, se compreende a si mesma como existência de servo. Na linguagem do Evangelho o discípulo de Jesus é constantemente chamado de servo. A respeito disso, frei Harada observa:
Sempre de novo ocorre a palavra servo. Usualmente a entendemos negativamente, pois nos lembra uma função inferior na qual o toque dominante é a submissão a outrem e a execução de ordens. A experiência, porém, pode ser bem diferente: pode ser a do "doméstico", do "familiar", aquele servo que vem devotando a vida ao seu senhor e pelo longo convívio se torna amigo-companheiro, tanto de estar por dentro e partilhar o mundo, os segredos do seu senhor.
O discípulo de Jesus Cristo é feliz quando entende seu viver como o viver do servo-companheiro-amigo de seu Mestre. Sua vida é devotada à coisa e à causa, isto é, ao interesse do Mestre. A existência da e na fé na dinâmica do seguimento de Jesus Cristo é um renascimento. Aquele que renasce nesta nova existência vive como servo, isto é, vive não a partir de si e em função de si, mas a partir do seu Mestre e Senhor, segundo ele e por ele. Devota a vida a Ele e, seguindo o seu exemplo, se faz servo de todos. Ser servo é, neste sentido, cuidar de tudo e de todos como quem cuida da casa de seu Mestre e Senhor. E se coloca como “servo inútil”, isto é, todo o serviço que presta o faz não em vista de recompensa para si, mas por amor, gratuitamente. Quem se faz servo assim, no discipulado de Jesus Cristo, o Servo de Deus, Servo de todos e de tudo, sabe, com um saber que é sabor de jovialidade, que “há mais alegria em dar que em receber” (At 20, 35). Nesta dinâmica, o discípulo se compreende como apóstolo, isto é, como enviado, com alguém incumbido de deixar viger no mundo o mistério da gratuidade. Ele se deixa reger pela palavra do envio dos Apóstolos: “recebestes de graça, dai de graça!” (Mt 10, 8).
O humilde é pobre de espírito. Ele sabe que todo o bem que vem à obra acontece não a partir dele e em função dele, mas a partir d’Aquele que, como diz São Francisco, é todo o bem, o sumo bem, o bem total, o único bem (LHr 11). O Pai das luzes é o bem fontal, aquele de que provém toda a dádiva boa e todo o dom perfeito (Tg 1, 17). São Francisco já na Admoestação II falava da necessidade de o ser humano não se apropriar de sua vontade e de não se exaltar dos bens que o Senhor diz e opera nele. Com efeito, é esta apropriação da vontade e do bem que constitui o mal e que faz entrar no mundo toda a miséria que o mal acarreta. Já na Admoestação VIII, São Francisco advertia contra o pecado da inveja, que consiste em se entristecer pelo bem que o Senhor diz e faz no outro. E lembrava que não há homem que faça o bem, mas que é o Altíssimo mesmo quem diz e faz todo o bem em cada ser humano. Também nesta Admoestação XVII São Francisco nos adverte para esta não apropriação do bem. Servo bem-aventurado de Cristo é aquele que “não se exalta mais pelo bem que o Senhor diz e opera através dele do que pelo bem que o Senhor diz e opera por outro”.
Ele vive a partir da gratuidade fontal do bem. Humilde é o ser humano que se reduz a nada, para, neste nada, neste vazio de abertura e de receptividade para o bem fontal, deixar crescer, frutificar e amadurecer o vigor de ser do humano em si e nos outros.
Como observou frei Harada, nesta concepção da humildade, há uma compreensão ontológica-existencial a respeito de ser um ser humano, compreensão que nasce do saber da niilidade da criatura:
Por trás desta concepção subjaz a experiência fundamental do homem medieval, a de "ser criatura", experiência não só compartilhada por São Francisco, mas por ele levada ao máximo de grandeza e profundidade (Cântico das Criaturas); é a experiência de que nós, por nós, somos nada; somos somente pecado e falta; se algo de bom acontece, é Deus que através de nós diz e opera o que é bom.
Esta maneira de pensar soa estranha para nós; ela nos induz a pensar que, se é assim, então não precisamos fazer nada. São Francisco, pelo contrário, pensa: "Já que é assim, temos que ser sempre transparentes e tirar toda resistência a ação de Deus em nós. É um trabalho enorme; não de fazer alguma coisa a partir de mim, mas de não opor resistência, de ser um caminho dócil, livre para a atuação de Deus". Isso dá outra maneira de viver a vida. Dá atitude de servo, atitude de gratidão, atitude que continuamente busca se limar, se dispor, escutar a força maior que é Deus.
A atitude de bloqueio à ação de Deus em nós e através de nós chama-se pecado. A lógica do pecado não é a da doação gratuita, mas é a da cobiça e do interesse interesseiro. A propósito disso São Francisco diz: “Peca o homem que quer receber mais do seu próximo do que não quer dar de si ao Senhor Deus”.
Terminemos, então, esta reflexão com uma palavra de encorajamento que frei Harada nos dirige a partir da meditação desta Admoestação XVII:
Então a tarefa que sobra para nós é de ser servos: não se apossar do bem, não se gloriar dele; ser antes servo humilde de Deus que quer operar através de nós. Reconhecer que nossa única grandeza consiste em dar a Deus aquilo que é "nosso", i.é, sempre de novo, de coração novo, lhe oferecer nossa adoração. Essa intuição de São Francisco desmascara todas as nossas pretensões diante de nós mesmos e dos outros. Quando se entende isso, cai o peso de sempre ter que se comparar com os outros; some a inveja e a gente se torna capaz de admirar uma boa operação ou uma sua boa qualidade de outrem.
[1] Hermógenes Harada. Do texto “Pro Virtus 05”, inédito. [2] Lao Tsé. Tao Te King: o Livro do Caminho Perfeito, p. 13. [3] Naturalmente vil e chão como o céu e a terra – humildade, texto inédito. [4] Cf. Harada, frei Hermógenes. Em Comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas. Bragança Paulista / Curitiba: EDUSF / Faculdade de filosofia São Boaventura, 2003, p. 119-120. [5] P. 120.
Para pensar e partilhar:
1. Em que consiste a excelência da humildade?
2. Qual a única tarefa do servo?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
Continue bebendo do espírito deste tema:
- indo ao texto-fonte: 99º Encontro - 17ª Admoestação - Do humilde servo de Deus - 3ª parte - O vigor fundamental da humildade
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Professor Marcos Aurélio Fernandes
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