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112º Encontro - 04/05/24 - 23ª Adm - Da humildade

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 4 de mai. de 2024
  • 12 min de leitura



DA HUMILDADE

Humildade como disposição permanente de serviço,

como senso da verdade e da liberdade



 

Vamos retomar a Admoestação XXIII:


1Bem-aventurado o servo que se acha tão humilde no meio de seus súditos como se estivesse entre seus senhores. 2Bem-aventurado o servo que permanece sempre sob a vara da correção. 3Servo fiel e prudente (Cf. Mt 24,45) é aquele que, em todas as suas ofensas, não tarda em punir-se interiormente pela contrição e, exteriormente, pela confissão e satisfação da obra.

 

Esta admoestação começa novamente com a expressão da bem-aventurança – bem-aventurado o servo (Beatus servus...). Como nas últimas admoestações que viemos comentando, também esta se estrutura numa pluralidade de bem-aventurança. Nesta, temos duas bem-aventuranças.


 

1. A nobreza da humildade: maior é quem se faz menor, quem serve sendo não só disponível, mas acima de tudo útil.


A primeira bem-aventurança diz: 1Bem-aventurado o servo que se acha tão humilde no meio de seus súditos como se estivesse entre seus senhores.


Ser bem-aventurado é alcançar o cume da bondade. É ser maximamente bom. O bem é a plenitude de vigor do ser. Bom é aquilo ou aquele que promove o ser, a vida, no seu todo. Bom é aquilo ou aquele que presta para esta promoção do ser, da vida, no todo. Bom é aquilo ou aquele que presta tal serviço a cada coisa na sua singularidade e ao todo. É aquilo que, em certo sentido, se deixa usar para que o ser, a vida, cresça, floresça, frutifique, amadureça. Bom é aquilo ou aquele que serve, neste sentido. Para São Francisco, seguindo o dito do Evangelho, a palavra do próprio Jesus, o bom é um só: Deus. Ele é o bem por essência. Ele é o bem fontal. Ele é o bem-aventurado por excelência. E é assim bem-aventurado porque ele serve a tudo e a todos, a cada coisa e a todas as coisas, a cada ser humano e a todos os seres humanos, comunicando a bondade do ser, da vida, da inteligência, da verdade. Ele deixa que tudo o que ele criou e cria e criará participe da plenitude superabundante e gratuita da sua bondade. Tudo o que ele criou se torna assim, como diz o livro do Gênesis, muito bom. De Deus todas as criaturas podem se servir para ser, para viver, para compreender. Ele dá a todas o ser e se deixa usar para que todas se mantenham no ser e possam realizar o que elas são no melhor modo que lhes seja possível. Todas as criaturas se nutrem do ser de Deus para serem. Neste sentido, Deus se deixa usar, ele serve. Todas as criaturas podem tomar para si a Deus e se servir dele. E Deus é o senhor de tudo na medida em que ele é o servo de tudo. Para Deus, ser senhor não é dominar no sentido de oprimir e explorar. Ser senhor é dominar no sentido de cuidar da “domus”, ou seja, da casa; é cuidar, nutrir, promover o ser, a vida, em tudo e em todos, por toda a parte e em todo o tempo.


Jesus Cristo, a Palavra de Deus, o Filho, que assumiu a mortalidade e a passibilidade de nossa carne, deu expressão a este modo de ser de Deus, que é amor, amor que serve com humildade, que serve até o mais ínfimo, até o último. Ele mostrou que a bondade de Deus não tem por quê. Ela é gratuita, superabundante, sem condições e sem restrições. Ele mostrou com seu nascimento, com suas palavras e com as suas obras, com sua paixão e morte de cruz, com sua ressurreição, que sua bondade é tal que nele se pode fiar e confiar, inabalavelmente, serenamente. Jesus ensinou com palavras e mostrou com obras, com o que ele fez e sofreu, que o senhorio, o domínio e a glória de Deus consistem justamente em servir a tudo e a todos, com amor, no amor, com a gratuidade superabundante e nela. Ele mostrou que a nobreza maior consiste em cuidar de tudo e de todos com tal amor-gratuidade, em servir a tudo e a todos assim. Ele, o Altíssimo, se faz o menor, o ínfimo, o mínimo. Ele, o primeiro, se põe no último lugar, para tudo e todos possam ser cuidados, nutridos, fortalecidos no ser, na vida. Ele, o Bom Pastor, não tira a vida das suas ovelhas, antes, ele dá a sua própria vida, sua própria pele, sua própria carne e o seu próprio sangue, para que todos tenham vida e a tenham em abundância. Assim, Ele esteve entre as suas criaturas, como aquele que serve. Ele, o Senhor. Ele, o mestre. E ensinou-nos que o que nos torna feliz a vida é fazermos o mesmo que ele fez. É ter o seu jeito, o seu modo, de ser, de viver, de compreender, de amar.


São Francisco foi alguém que viu isso com muita clareza e que não deixava perder de vista esta evidência do Evangelho. É maior quem se faz menor a serviço de tudo, especialmente dos menores, dos ínfimos, dos últimos. Servir a tal Senhor equivale, pois, a servir a todos aqueles que Ele serve, do mesmo modo em que ele serve. Ser Senhor não é oprimir e explorar, tirar a vida do outro para sustentar e potencializar a própria vida. A vida é, antes sustentada e potencializada somente quando se ama servindo. O verdadeiro poder se expressa como a fraqueza e a ternura do amor que serve. Passa-se por impotência. O verdadeiro poder é o amor que serve. A verdadeira autoridade é a capacidade que o amor serviçal tem de aumentar o vigor de ser, a vida, em tudo, em todos. Ser senhor é, portanto, ser servo. Só quem se faz servo com Deus, ao modo de Jesus Cristo humilde e crucificado, reina com Ele no reino d’Ele. Só quem serve assim é nobre em seu reino. São Francisco, que na juventude deseja tornar-se nobre, acabou descobrindo, por revelação e inspiração divina, que nisso consistia a verdadeira e própria nobreza: no serviço humilde do amor, em tornar-se irmão menor de tudo e de todos. Ele descobriu que Jesus Cristo era o verdadeiro e próprio “homem nobre” e quis ser nobre com Ele, como ele.


Tendo isso como premissa, fica fácil de entender porque, para São Francisco, é bem-aventurado o servo que é encontrado humilde entre os seus súditos, como quando estivesse entre os seus senhores. Para São Francisco, ser superior é ter a responsabilidade de servir a todos. É ser colocado como serve do bem de cada um, de todos, do todo. Para ele, cada superior, cabeça, chefe, líder, é mais radicalmente servo. Todos os seus súditos são seus senhores. Em todos, em cada um, lhe é dirigida uma palavra, uma reivindicação, uma solicitação de cuidado. O superior é o que se põe na condição de ínfimo, o primeiro é o que se põe na condição de último, para que todos cresçam no vigor de ser, de viver, de compreender e amar. Este é um princípio de exercício do poder e da autoridade, que vem do Evangelho, do seguimento-discipulado de Jesus Cristo, que revoluciona toda a convivência humana. É o princípio de um exercício quenótico, isto é, vazio de pretensão de opressão e de exploração, pobre, humilde, em que toda a plenitude é a do amor-gratuidade.


Por outro lado, este princípio muda também radicalmente a concepção do que é ser súdito. Ser súdito é, vice-versa, ser senhor. Isto quer dizer: um súdito assume de modo mais genuíno o ser súdito quando ele se sente e se sabe partícipe do todo da vida da fraternidade, da comunidade, da sociedade, e, como tal, corresponsável por este mesmo todo. Isto quer dizer: naquilo que lhe está ao alcance, dentro de sua competência e responsabilidade, ele cuida do todo. Ele tem o modo de ser autêntico do senhor, que é o modo de ser do servo, do cuidador. Assim, podemos dizer que, na ótica de São Francisco, a diferença de superior e súdito, de senhor e servo, se desfaz. Em última instância, todos são igualmente servos, como o Senhor de todas as coisas e de todos é.


Pensemos o quanto este princípio, se compreendido, pode mudar a práxis na convivência humana. Na família, os pais são servidores dos filhos. Na escola, os mestres são servidores dos aprendizes. Nas instituições, os coordenadores são servidores dos coordenados. No Estado, os líderes são servidores dos cidadãos. Na Igreja, os pastores são servidores dos fiéis. E, de outro lado, na família, os filhos são corresponsáveis pela vida doméstica e familiar. Na escola, os aprendizes são corresponsáveis pelo medrar do processo do aprender, por meio do estudar. Nas instituições, os coordenados são corresponsáveis para que o bem a que a instituição serve seja realizado e alcançado a serviço da sociedade civil. No Estado, os cidadãos são corresponsáveis pelo bem comum, seguindo as exigências da justiça e as chamadas da amizade social.  


 

2.  Humildade como ser na verdade da realidade


A segunda bem-aventurança diz:


2Bem-aventurado o servo que permanece sempre sob a vara da correção. 3Servo fiel e prudente (Cf. Mt 24,45) é aquele que, em todas as suas ofensas, não tarda em punir-se interiormente pela contrição e, exteriormente, pela confissão e satisfação da obra.


Nesta segunda bem-aventurança da Admoestação XXIII é retomado o tema da Admoestação XXII, a correção. 2Bem-aventurado o servo que permanece sempre sob a vara da correção. Como refletimos ao tratarmos dessa Admoestação XII, a correção é um processo de vida e de liberdade, em que quem nele se engaja e a ele se submete se reconstitui sempre de novo, tornando-se cada vez mais propriamente o que ele essencialmente é, crescendo no vigor de ser e tornando-se ereto e reto na vida. É o caminho para se articular com justeza no todo da vida. A vara da correção é algo assim como uma régua, que indica como traçar o próprio traçado de maneira mais direta, isto é, mais bem direcionada ao escopo. É um modo de se aprumar, de recobrar o prumo na vida. A disciplina, a acusação e a repreensão que vem dos outros, independente de qual seja a sua intenção, é tomada por aquele que quer servir e que quer se tornar cada vez mais competente no seu serviço, cada vez mais útil aos outros e ao todo da convivência humana, na família, na comunidade, na sociedade, uma oportunidade de se aprumar, de se erguer e ficar de pé na vida de modo mais genuíno, mais autêntico. É uma oportunidade de se medir com uma medida mais justa e mais generosa na responsabilização pela vida. Também é uma oportunidade de deixar esvanecer as ilusões, os enganos, que nutrimos a respeito de nós mesmos. É uma chance de cair na real, de pormos os pés no chão, na realidade, na verdade. E isso é a humildade. Frei Harada dizia:


Como é então a humildade?  É aquilo que é verdadeiro, pra valer, que é real. Real não é aquilo que está na minha frente, mas aquilo que assumo pra valer e se torna fundamento, chão de toda minha existência. Por isso humildade é senso do real e não da aparência. O senso do real, do fazer realmente, era para o medieval a base de todas as outras energias, de todas as outras virtudes. Por isso o medieval dava importância enorme à humildade.


Seguindo essa dinâmica de estar bem fincado e assentado no chão da realidade, de ficar firme na consistência da verdade da vida, é que podemos talvez compreender algo do que São Francisco diz logo em seguida: . 3Servo fiel e prudente (Cf. Mt 24,45) é aquele que, em todas as suas ofensas, não tarda em punir-se interiormente pela contrição e, exteriormente, pela confissão e satisfação da obra.


Se antes se fala de ser servo, agora se fala de ser servo fiel e prudente. Fiel é aquele servidor em que se pode fiar, e se pode fiar porque é constante em sua competência. É que aquele, por assim dizer, não deixa os outros na mão, a ver navios. Prudente é aquele servidor que age com inteligência, com visão longa, que é capaz de, com circunspecção, levar em consideração o fim da ação e as circunstâncias que concorrem para que ele seja alcançado. Prudente é, ainda, aquele que tem esperteza, astúcia, sagacidade, e que recorre a ela em suas escolhas, não em vista de seus próprios interesses, dos interesses parciais e egoístas (o que seria a “prudência da carne” de que fala a Escritura), mas em vista do bem comum, do bem de todos, do bem do todo. Fiel e prudente é o servidor que não declina de sua responsabilidade para com o todo e para com cada um. Quando ele ofende, isto é, quando ele causa alguma lacuna, algum oco ou buraco, alguma privação no vigor de ser do todo, ele não tarda a autocorrigir-se, para o bem desse mesmo todo, pelo qual ele se sente e se sabe corresponsável.


 

3. Humildade como senso da liberdade


Somente quem tem o senso de realidade e de liberdade pode não se furtar a uma autocorreção ligeira, rápida, direta, sem subterfúgios e autocomplacências, assumindo com coragem sua responsabilidade de ser parte e ser todo. Este senso de realidade e de liberdade é a humildade.


Aqui São Francisco fala da autocorreção como autopunição. Mas é preciso entender bem o tom desta fala. Não se deve entender essa fala no sentido moralista, da moral do ressentimento. Autopunição não é, aqui, uma atitude alimentada por um ressentimento que se volta contra si mesmo. Não é uma atitude autodestrutiva, autoaniquiladora, fundada no ódio contra si. Tal ressentimento e ódio que se volta contra si mesmo camufla a soberba. Não é algo da humildade. O soberbo não pode assumir que errou, que ofendeu a vida dos outros e da comunidade. Ele não é capaz de suportar confrontar-se com sua falibilidade e pecabilidade. Sua autopunição nasce dessa incapacidade. Já a autopunição de que fala São Francisco é a de alguém que, com o senso de realidade e de liberdade, chama-se a si mesmo para si mesmo em causa, chama-se a si mesmo para assumir a responsabilidade que antes fora negligenciada.


Humildade é senso de liberdade. Liberdade, porém, não consiste, aqui, em uma mera independência. Muito menos consiste na arbitrariedade, no capricho do eu, de fazer o que bem entende, a seu bel prazer. Quem assim entende a liberdade não se compreende como servo de tudo e de todos, nem como senhor, no sentido de cuidador, mas sim como déspota, tirano. O humilde se submete à lei da liberdade, isto é, ele age como responsável por suas ações e omissões e como corresponsável pelo todo da convivência humana. Ele não fica parado num conceito negativo de liberdade. Seu conceito de liberdade é positivo. Para ele, mais que ser-livre de, o que está em jogo é ser-livre para... É ser capaz de comprometer-se... De comprometer-se com o próprio comprometimento com a realidade, com a verdade, com o bem. Neste sentido, sua autopunição é autocorreção, é reparação e reconstituição de seu ser para os outros, no amor. São Francisco fala de “não tardar” nessa autopunição. Tardar é ficar enrolando. A boa-vontade, a boa disposição, do humilde leva-o a não ficar enrolando, a não ficar buscando subterfúgios, álibis, autojustificativas, fugas. Seu modo de assumir a responsabilidade é simples, direto, reto.


Como realizar esta autopunição bem disposta? São Francisco diz: pela contrição e, exteriormente, pela confissão e satisfação da obra. De novo, aqui temos que limpar o conceito de “contrição”. A contrição do Evangelho não tem nada a ver com o mero remorso e com o arrependimento ressentido. Um coração contrito é um coração que não se deixa ficar presa do endurecimento, da insensibilidade, da indiferença da irresponsabilidade. É um coração sensível, acolhedor, receptivo aos golpes da vida. É um coração que não foge aos desgastes que o medir-se com a responsabilidade da vida traz. Nesse gastar e desgastar do coração, porém, vai acontecendo uma purificação e uma cura e, com isso, uma reconstituição. Um “coração contrito e humilhado” é um coração que retorna sempre de novo ao chão da realidade, sem autocomplacência, sem autoenganos, sem camuflagens e fugas. O mero remorso não é arrependimento. O arrependimento ressentido é um pseudoarrependimento. Ele camufla o amor-próprio ferido, o egoísmo, a soberba, a ira do eu por não ser onipotente.  A contrição nasce de um coração que se deixa tocar pelo outro, pelos apelos e exigências que nos advém dos outros, na responsabilidade de ser. A contrição é uma atitude nobre. O ressentimento é uma atitude vil. Esta atitude interior, da intenção do coração, que é a contrição, ganha concretude exterior com a confissão e a satisfação da obra. Confessar é uma atitude de humildade. Quem confessa liberta a verdade. Traz à luz seu próprio erro, a sua ofensa. Ao trazê-la à luz na confissão a malícia que se escondia até então, que se aninhava, é denunciada e com esta denúncia é aniquilada. Na vida cristã, a confissão se investe de um sentido adicional: o do encontro com o amor, a misericórdia, a ternura d’Aquele que nos amou por primeiro e que nos amou com um amor incondicional, na absoluta gratuidade. Na confissão, a miséria de quem erra se encontra com a misericórdia do Senhor que perdoa e, perdoando, dá nova chance de um novo começo. Ao abraçar-nos na sua misericórdia, ele nos recria, nos reconstitui, nos devolve ao vigor da vida. Assim, a satisfação da obra cumpre não só a sua função de reparação ou de preencher com a positividade da boa-vontade a lacuna que má vontade deixou, mas ela também expressa a alegria de ter sido perdoado, a alegria de poder encontrar-se com a possibilidade de um recomeço. A reparação, na experiência do evangelho, não é só um ato de justiça comutativa, isto é, de compensação, mas é, acima de tudo, um ato de encontro com a misericórdia.


Um servidor assim, fiel e prudente, vale à pena. Ele é bom, está bem curtido, bem sovado, bem trabalhado, dá para confiar nele. O servo fiel que tem esta disposição em referência a sua própria liberdade e respon­sabilidade é benéfico a tudo e a todos. É útil a tudo e a todos, como Deus.



Paz e Bem!



Continue bebendo do espírito deste tema:


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Da humildade

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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