97ºEncontro 06/5/23 17ª Admoestação - Do humilde servo de Deus - 1ª parte
- Frei
- 7 de mai. de 2023
- 9 min de leitura
DO HUMILDE SERVO DE DEUS
Como nas demais Admoestações, também nesta, o título nos aponta e nos conduz para dentro de mais uma das principais virtudes do seguidor de Cristo: a humildade. Leiamos:
"Bem-aventurado aquele servo” (Mt 24,46), que não se exalta mais pelo bem que o Senhor diz e opera através dele do que pelo bem que o Senhor diz e opera por outro. Peca o homem que quer receber mais do seu próximo do que não quer dar de si ao Senhor Deus.
1. Humildade, virtude que a tudo e a todos sustenta
Os dicionários de nossa língua mãe, o latim, dizem que os termos humilde, humildade vêm de “húmus” e que significa terra, chão, solo e que dessa palavra nasceram outras muito conhecidas, como homem, humor, humidade, etc. Assim, podemos dizer que o título nos faz olhar e contemplar o modo de ser da mãe terra, um modo de ser fecundo, que a tudo e a todos oferece, gratuitamente, seus frutos; que a tudo e a todos acolhe, com a generosidade e a alegria de mãe; que a tudo e a todos retribui incansável e generosamente com seus alimentos, sem jamais se queixar ou esgotar.
Por ser um vigor de fundamento ou de raiz ela, a humildade, se coloca debaixo, na base de todas as coisas. É por isso que tudo o que é verdadeiramente grande ou fundamental não se eleva, mas se “humilha”. Segundo as leis da natureza jamais se viu a raiz das árvores ou o fundamento dos edifícios se lamentarem porque devem permanecer debaixo da terra enquanto que os ramos e o teto se elevam e aparecem altaneiros sobre todos e sobre tudo, ou, ao contrário, esses dizerem: “Vejam como somos importantes, como estamos acima de vocês!” Na verdade, para a arquitetura as partes mais altas são de importância bem menor do que as mais baixas, que devem sustentar todo o edifício. Quanto mais se sobe, tanto mais se depende do fundamento. O mesmo diga-se da árvore.
Todo esse modo de ser da natureza em geral e da mãe terra em especial, vale também para o mundo do espírito. Por isso, o vigor, a virtude do cristão que, a modo de fundamento ou de raiz, se coloca debaixo de tudo e de todos para a tudo e a todos poder servir chama-se humildade. Pode-se dizer que a humildade é o tempero, a essência do amor, da caridade que é Deus ou Jesus Cristo crucificado. Sem a humildade o amor ou a caridade cristã transforma-se facilmente em filantropia e o cristão num bom e excelente fariseu, mas nada mais que um fariseu. Por isso, a tradição cristã sempre considerou a humildade como mãe de todas as virtudes.
Compreende-se, então, porque o bem-aventurado Frei Egídio, depois de dizer que o caminho para ir para cima é ir para baixo, acrescenta: Todos os perigos e todas as grandes quedas que aconteceram no mundo, não aconteceram senão através da elevação da cabeça, assim como se manifesta na queda daquele que foi criado no Céu, e em Adão e no fariseu do Evangelho e em muitos outros. E todos os grandes bens que aconteceram, foram feitos pela inclinação da cabeça, como se manifesta na Bem-aventurada Virgem, no publicano, no santo ladrão e em muitos outros (DE 4).
2. Bem-aventurado
Também nessa Admoestação Francisco começa com um bem-aventurado. Já vimos nas Admoestações anteriores que bem-aventurado é a palavra que nos remete para as bem-aventuranças evangélicas. Nela encontramos a palavra “ventura” que, em latim, significa “as coisas que hão de vir” e a preposição “a”, também do latim “ad” que significa movimento de abertura, de exposição. “Bem”, finalmente, significa o vigor de quem amadureceu e por isso chegou ao estágio da plenitude, da felicidade, da realização.
Assim, bem-aventurada é a pessoa que está bem assentada, firme e segura diante das coisas que hão de vir. Trata-se, pois de um modo de ser aberto e esperançoso diante da grande ventura, a vida; o modo de ser da pessoa amadurecida e provada pelo cadinho das adversidades, mas, por isso, satisfeita, firme e segura. Esse modo de ser, diz Francisco, reportando-se ao Evangelho, brilha e se consolida, especialmente, no humilde servo de Deus.
Não é muito difícil ver aqui a exortação de Paulo aos Filipenses: tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz (Fl 2,5-8).
3. Servo
Mais uma vez, estamos diante de uma das palavras mais preciosas da nossa espiritualidade e, por isso, muito frequente na Sagrada Escritura e em São Francisco. Além do que já dissemos, quando refletimos as Admoestações anteriores, é importante começar libertando-nos de uma compreensão um tanto negativa, que vem pesando em nossa espiritualidade, sempre quando ouvimos essa palavra. É que há séculos vem se considerando servo como escravo ou, no mínimo, como alguém que, sob a dimensão social, pertence a uma classe inferior e que, por isso, tem de viver submisso a outrem, que pertence a uma classe superior. Daí a compreensão de que servo é igual a súdito, sem poder, escravo, dominado e senhor, ao contrário, significa superior, chefe, detentor do poder, dominador.
Mas, há também a experiência de servo que que vem ou nasce da alegria da gratuidade do encontro ou do encontro da gratuidade. Nesse sentido, clássico é o exemplo de Maria. Diante da graça da visita e do anúncio do Anjo não podia exclamar, revelar outro sentimento mais profundo e admirável: “Eis aqui a serva do Senhor!” Nesse caso de Maria, servo é aquele que se sente na obrigação de devotar-se generosamente ao outro, movido pelo vigor da gratuidade da afeição do encontro. Por isso, o outro passa a ser seu senhor e, consequentemente, servi-lo sua “obrigação”, sua alegria, honra e realização. Não é à toa que outrora o esposo considerava e chamava sua esposa de “minha senhora” e vice-versa. Na humildade tudo o que há de bem vem e é do outro e tudo o que há de mal vem e é de si. Por isso, o olhar de Deus e do servo é sempre para baixo e do fariseu para cima. O verdadeiro humilde é tão humilde que nem imagina, nem sabe ou pensa que seja humilde. Se o soubesse ou se assim se considerasse, já estaria se vangloriando de sua humildade. Teria já, no caso, se tornado um fariseu.
A citação de Francisco, nessa Admoestação, está relacionada à conclusão do discurso de Jesus aos fariseus aceca da necessidade e da importância da vigilância operativa ou da operação vigilante do servo do Senhor: Feliz o servo que ao voltar o senhor o encontrar agindo desta forma, isto é, dando comida aos demais servos, no momento oportuno (Cf. Mt 24,45-46). Como não pensar, aqui, em Jesus Cristo, o Pão nosso de cada dia, o Servo dos servos, que, em nome de seu Pai, sempre, ininterruptamente, está se dando em alimento aos seus irmãos, seja como Pão vivo descido do Céu, principalmente na Eucaristia, seja como Palavra viva e eficaz quando a ouvimos, lemos ou meditamos!?
4. Que não se exalta
Para melhor compreender o que seja ser humilde ou humildade, olhemos o seu oposto: o vaidoso ou a vaidade. O termo vaidade vem de vão, vazio, oco e que se revela, principalmente, no modo avoado de quem vive na superficialidade sem muito comprometimento e responsabilidade. Por isso, a dinâmica do vaidoso é a exaltação de si mesmo, ou seja, a pretensão de ser o que não é.
Para os antigos e medievais não havia pecado ou caminho mais desastroso do que o da vaidade porque a verdade de cada um, cedo ou tarde, virá à tona. E ai, então, do servo que na hora da prestação de contas tiver que apresentar-se diante de seu senhor com as mãos vazias, sem nenhum fruto dos dons ou das graças de amizade, amor, atenção e afeição com que foi cumulado ao longo dos anos de sua vida. Sofrerá como o condenado e lançado ao fogo do inferno do desamor onde só haverá choro e ranger de dentes. Como um esfomeado, nada tendo para comer, não lhe resta outra coisa senão ranger os próprios dentes. Eis o único e grande perigo do qual todo seguidor de Cristo deve se precaver.
Por isso, dizia Frei Egídio: Um alto grau de humildade no homem é reconhecer que é sempre contrário ao próprio bem. Julgo ser também um ramo da humildade devolver as coisas alheias e não apropriar-se delas, i. é., atribuir a Deus todos os bens, de Quem eles são, e os males a si. (DE 4).
5. Pelo bem que o Senhor diz e opera através dele
A primeira frase termina com esta sentença: do que pelo bem que o Senhor diz e opera através dele. Podemos considerar essa frase como o centro dessa admoestação e a palavrinha através de, o centro da frase. É que o latim, em vez de “por” tem “per” cujo sentido mais preciso é “através” de.
A frase está querendo despertar nossa atenção para aquilo que acontece quando se segue o Senhor a modo de servo: somos atravessados, penetrados por Deus assim como o sal atravessa toda a comida ou o fermento penetra em toda a massa do pão. Por isso, é bem diferente dizer através de ou por meio de. No segundo caso, a modo de instrumento, como, por exemplo, a caneta com a qual escrevo sobre o papel, nada acontece comigo. Além do mais, a caneta pode ser usada anos a fio, mas ela mesma continua sempre igual. Apenas sofrerá algum desgaste. O mesmo acontece com o servo quando serve a modo de meio ou instrumento. Não sofre jamais nenhum engrandecimento, apenas se desgasta e estressa sendo levado, muitas vezes, ao desânimo, ao comodismo, quando não à tristeza e à perda da fé e do sentido da vida. Por vezes, vira um bagaço ou, para usar um ditado popular, bananeira que já deu seu cacho.
Já no primeiro caso, quando, em seu serviço, o servo se deixa atravessar ou penetrar pela obra, dá-se fenômeno completamente oposto, contrário. Em vez de centralizar-se em sua pessoa, fazendo-se de intermediário ou gestor, ele é como que tomado, possuído e atravessado pelo vigor da bondade de seu senhor; colocando em jogo sua própria pele, seu próprio coração ver-se-á aos poucos não só revestido, mas também ungido e transformado naquele para o qual serve, seu senhor. Nesse sentido, por exemplo, Francisco jamais rezaria “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz” [1]. Diria, antes: “Senhor, atravessa-me todo inteiro para que tua paz possa aparecer em mim e no mundo”.
No fundo, nessa maneira de pensar, estranha para nós, esconde-se a experiência fundamental do medieval acerca do homem entendido como criatura. Francisco não apenas comunga dessa experiência, mas por ele é levada ao máximo de grandeza e profundidade como se pode ver no famoso Cântico do Irmão Sol: a experiência de que nós, por nós mesmos, não somos nada, mas somente pecado e carência. Por isso, se algo de bom acontece é porque Deus mesmo é que através de nós, isto é, através de nossa inteligência e vontade, diz e opera. O advérbio “através” tem tudo do verbo atravessar. Assim por exemplo, quando rezamos, se de fato rezamos, somos atravessados pela oração, por Deus; quando lemos, ouvimos ou pregamos sua palavra, se de fato lemos, ouvimos ou pregamos, somos atravessados pela sua luminosidade como os raios do sol que atravessam e clareiam as nuvens, os seres e todo o espaço do universo.
Para sermos atravessados por Deus, porém, é necessário que saiamos de nós mesmos. Quem não sai de si mesmo, em vez de ser mediador, torna-se pouco a pouco um intermediário, um gestor. A diferença é bem conhecida de todos: o intermediário e o gestor “já receberam a sua recompensa”. É que, não colocando em jogo a própria pele e o próprio coração, não recebem aquele agradecimento carinhoso que nasce do coração; e daqui deriva precisamente a insatisfação de alguns, que acabam por viver tristes, padres tristes e transformados numa espécie de colecionadores de antiguidades ou então de novidades em vez de serem pastores com cheiro das ovelhas (Homilia do Papa Francisco, na Quinta fira santa de 2013).
Essa maneira de pensar poderia induzir-nos à falsa ideia de que, se é assim, nós não precisaríamos fazer nada. Francisco pensa justamente o contrário: uma vez que nossa vocação de criaturas é a de sermos servos temos que trabalhar muito para tornar-nos transparentes podendo, assim, eliminar toda a resistência à ação de Deus em nós. Trata-se de um trabalho enorme, não no sentido de fazer alguma coisa, mas de receber. E convenhamos, receber é bem mais difícil que fazer ou dar, pois para receber o outro, o amor, é preciso que me coloque total, inteira e docilmente à disposição do Espírito do Senhor e seu santo modo de operar.
[1] Note-se que essa mui conhecida Oração não faz parte do acervo dos Escritos de São Franciso.
Para pensar e partilhar:
1. Por que, para Francisco, a humildade é de fundamental importância no seguimento de Cristo?
2. O que significa que Deus “através de nós” realiza em nós suas maravilhas?
Paz e Bem! Fraternalmente, Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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