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91ºEncontro 25/3/23 14ª Admoestação - Da pobreza de espírito - 2ª parte

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 25 de mar. de 2023
  • 10 min de leitura


DA POBREZA DE ESPÍRITO


ESPÍRITO COMO LUTA CORPO A CORPO DA VIDA




Nesta segunda reflexão acerca da XIV Admoestação queremos analisar a Pobreza de Espírito como luta, empenho. Daí o título:


ESPÍRITO COMO LUTA CORPO A CORPO DA VIDA


Vejamos de novo o texto:


’Bem-aventurados os pobres de espírito’, porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3). São muitos os que insistem nas orações e nos ofícios e fazem muitas abstinências e aflições em seus corpos. Mas, por causa de uma só palavra que lhes pareça injuriar seus corpos, ou por causa de alguma coisa que se lhes tire, ‘escandalizados, imediatamente’ (Mt 13,21), se perturbam. Estes não são pobres de espírito. Porque quem é verdadeiramente pobre de espírito odeia a si mesmo e ama os que lhe batem no queixo (Mt 5,39).



1. Uma pobreza que tem sem ter


Na Admoestação XIII, Francisco diz que a paz se põe em obra pela paciência e humildade. Em nossa reflexão, vimos que a pobreza de espírito é o vigor de ser que possibilita tal orientação de vida e tal comportamento por parte do “servo de Deus”, isto é, do discípulo de Jesus Cristo Crucificado. Na Admoestação XIV São Francisco aprofunda esse tema. E, na última meditação, tomamos em consideração a pobreza do espírito como o vigor do deixar-ser que conduz à serenidade da paciência. Vimos que no “deixar-ser” o mais importante não é o “deixar”, compreendido de maneira apenas privativa e negativa, mas o “ser”. A renúncia do “deixar” é um anúncio do poder-ser, do vigor de ser, da pobreza. A pobreza do espírito, a pobreza evangélica, é vigor de ser que deslancha, é bem-sucedido e torna feliz quem dele participa. A renúncia do “deixar” é novo e originário anúncio do ser. “A renúncia não vive primordialmente de rejeição, mas se alimenta de aceitar transformação[1].


Mas, em que consiste esta aceitação da transformação? Em deixar ser o ser e o não-ser de todo o vir a ser da realidade, nos encontros e desencontros com o mundo, com os outros, consigo mesmo, com Deus. É ser disponível para o ser e o nada de tudo o que está sendo e não sendo no vir a ser da vida. Nesta disponibilidade, neste despojamento, neste desprendimento, não vigora a mera negação, mas a negação da negação. Tudo é acolhido livremente, de boa vontade, na positividade do amor-gratuidade, em paciência e humildade. Pobreza do espírito é esta pobreza de ser. Trata-se de uma pobreza essencial, ontológica (como vigor de ser de um “deixar-ser”). Vamos repetir uma passagem de um texto do professor Emmanuel Carneiro Leão a respeito desta pobreza ontológica:


O mal radical tem suas raízes na pretensão de excluir o nada de dentro do mundo. O mal radical está na ilusão de o homem ater-se aos haveres para, com a multiplicação do ter, pretender assegurar-se ser sem não ser. A autenticidade do viver mora na virtude de uma pobreza ontológica: a pobreza que tende exponencialmente a ser sem ter, enquanto a riqueza de bens é sempre ôntica e tende exponencialmente para ter sem ser. A ilusão da inautenticidade reside em buscar a propriedade e posse de tudo. A fantasia reinante liga-se à onipotência de tornar-se proprietário da totalidade do real e do universo das realizações para, assim, poder fugir do não ser. Por isso também, a sede da propriedade é insaciável, o desejo sem fim de substituir o ser pelo ter, contando com que ter tudo dispensaria ser, por excluir todo não ser [2].


Aceitar transformação é deixar de querer sermos proprietários do real e das realizações, da vida, do mundo, dos outros e de nós mesmos, de Deus. Somente na medida em que deixamos de ser propriedades e deixamos ser a gratuidade da realidade no ser e no não ser de tudo o que está sendo e não sendo em todo o vir a ser é que nós somos apropriados pelo mistério do bem que se comunica em tudo. É então que somos ricos. Ser rico nada tem a ver com ter posses, com ser proprietário; ser rico tem a ver com receber a dádiva de ser a partir da inesgotabilidade de sua gratuidade. Quem é pobre de uma tal pobreza essencial é, por si mesmo, imediatamente, rico no vigor de ser do bem que se difunde sumamente em todas as coisas, é rico pelo amor-gratuidade, é rico pelo “reino dos céus”. A admoestação XIV começa recordando justamente esta primeira bem-aventurança do Sermão da Montanha, a primeira por ser a fundamental, a originária e originante, a primordial: ’Bem-aventurados os pobres de espírito’, porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3).


2. Pobreza de espírito, caminho para a liberdade de espírito


Essa pobreza essencial, ontológica, que não consiste em restrições, no sentido privativo do não-ter o necessário para sobreviver, nem na mera atitude negativa da rejeição implicada na renúncia, mas que é pura positividade da liberdade, no acolhimento do ser e do nada de tudo, é chamada por São Francisco de pobreza de espírito. Ela é a verdadeira ascese, isto é, o verdadeiro exercício de dispor-se para a liberdade do espírito. É que alguém pode se dedicar a diversos exercícios corporais e espirituais, mas em vista de fortalecer o seu próprio eu, e não em vista de se disponibilizar para o amor-gratuidade nos encontros e desencontros com o mundo, com os outros, consigo mesmo, com Deus. Tal ascese é, então, ineficaz, vã. São Francisco aponta para outro método ascético, que o frei Hermógenes Harada assim caracterizou, ao tratar da Admoestação X, da “castigação do corpo”:


Com isso torna-se evidente o método de São Francisco lidar consigo mesmo (corpo-eu); ele chama este método de "castigatio", i. é, ação de tornar casto, límpido, ele mesmo na sua identidade última e maior, o corpo-eu. Este método consiste em manter o eu sem­pre preso em próprio poder, guardar-se sapientemente dele, perceber as muitas transformações que ele toma, para se posicionar com cuidado e trabalhar naqui­lo em que se acredita e que o Mestre, Nosso Senhor Jesus Cristo, propõe.


Em vez de fortalecer o eu com exercícios que aparentemente contrariam o eu, o mais eficaz consiste em aceitar os desafios e os confrontos que nos advêm e sobrevêm na própria dinâmica da vida real, nos nossos encontros e desencontros sobretudo com os outros que não nos satisfazem e que nos ofendem. Então, continua Frei Harada:


De repente você começa a ficar clarividente. Começa a gostar das pessoas de que antes não gostava; talvez houvesse pessoas que lhe agradavam muito, mas engordavam muito o seu eu, enquanto outras, meio chatas, mesmo sem querer ou até querendo lhe fazer mal, no fundo estavam ajudando. Então você começa, no seu crescimento, aproveitar melhor de uma "injúria" do que de um elogio. Este é o sentido de "vigiar o eu, ter o eu sob custódia".


Se poderia objetar: isso vai dar numa tensão danada, não vai dar pa­ra dormir tranquilo! Mas é bem aqui que o método de São Francisco é suave: não é de se ficar em cima obsessivamente, mas de lembrar continuamente, pois o es­forço de bater em cima do eu você não precisa fazê-lo: a vida se en­carrega de fazê-lo a toda hora. Tomar uma atitude assim é amar a Deus, ao próximo e a si mesmo.


Expor-se aos golpes da vida, sobretudo aos golpes que nos advêm e sobrevêm por parte dos outros, daqueles que não nos satisfazem e que nos ofendem, eis a ascese da pobreza do espírito. O método, isto é, o caminho da libertação que a pobreza do espírito oferece consiste em aprender a não se escandalizar e a nem se perturbar com a “adversidade e perseguição” (cf. Mt 13, 21), com as aflições da vida fática, real, aceitando as transformações que nos levam a amadurecer para a liberdade originária, a do mistério da gratuidade, a da gratuidade do mistério, que Jesus evocou com o nome de “Pai”.



3. A alegria de vencer ou lucrar perdendo


São Francisco evoca o ensinamento de Jesus no Sermão da Montanha, a respeito de não resistir ao mau. O pobre de espírito, o discípulo de Jesus Cristo Crucificado, não se rege pela dinâmica e pela lógica do revide em seu relacionamento com o mau, isto é, o malvado. Este é o modo de vencer o mal radical que destrói e aniquila o vigor de ser, a vitalidade, dos seres humanos sobre a terra. Esta atitude de não revide aparece no ensinamento de Jesus como “oferecer a outra face”, em vez de buscar agir segundo o princípio do “olho por olho”. A pobreza de espírito dos discípulos de Jesus leva-os a abdicar do direito de vingança, isto é, de replicar golpe com golpe. O modo de agir e de se conduzir dos discípulos consiste em “suportar com paciência o golpe para que não acrescente mal ao mal” [3]. O discípulo não se toma como possuidor e proprietário do direito de revidar, de vingar, de defender-se a qualquer custo. O discípulo é livre de toda a propriedade e de toda a posse, também deste direito. Seu único vínculo é com Jesus Cristo Crucificado. Ele anuncia e denuncia a maldade como maldade, mas não segue a dinâmica e a lógica da reação, da oposição, da resistência. Sua dinâmica e sua lógica é da paciência e da humildade. Ao malvado ele dá em troca o amor. No suportar pacientemente e humildemente o golpe, ele participa da paixão de Jesus Cristo, mostrando que o amor-gratuidade, misericórdia, é o vigor de ser que vence toda a maldade do mundo. Com isso, a maldade não é justificada. A maldade é vencida, relacionando-se com o malvado a partir da paciência e humildade. Para o discípulo de Jesus, a justiça mais excelente, mais generosa, é aquela que vai além e acima do direito, é a justiça do amor-gratuidade, da misericórdia. Amar a quem nos bate no queixo, diz São Francisco, nisso consiste a radical pobreza do espírito. O homem que assim age e sofre fica vazio do eu e de suas pretensões, para deixar-ser o vigor de ser do bem, que é o mistério da gratuidade e a gratuidade do mistério. Ele é essencialmente rico, nobre, livre.


A expressão “no espírito” de “ser pobre no espírito” significa “de verdade”, “para valer”. O espírito não é o imaterial e o incorpóreo. Não é o abstrato, mas o concreto da vida. O espírito é o vigor de ser da vida vivida como vida real, no realismo da humildade. O espírito aparece como luta corpo a corpo da e na vida real, na concreção da vida fática, no realismo da humildade. Nesta luta, aquilo que nos golpeia, que nos “bate na face”, que nos advém e sobrevém como um “soco no queixo”, é sempre chance, oportunidade, para a disponibilidade para a liberdade do mistério do amor-gratuidade. Frei Harada comenta:


Para ser bom mes­mo na pobreza, i.é, para ser pobre em espírito conforme o Evangelho, é ne­cessária uma luta travada concreta e realmente em todo o meu ser. Portanto, essa busca não é para aparecer, para se sentir melhor e mais autêntico; não é uma vivência de auto-satisfação, não é nenhuma das realizações que cheiram granfinagem ou burguesia espiritual, por mais sublimes que sejam. É antes uma luta selvagem, assumida com gosto, com amor, uma luta terra a terra, a dentes e unhas, uma luta real e perigosa, na qual se arrisca a deparar em realidades que me quebram o queixo. Só quem tem a­mor a essa maneira de lutar é bom mesmo na pobreza evangélica, i.é, é tido pelo espírito de pobreza ensinado por Jesus no Evangelho.


Paulo falou da vida da e na fé, no seguimento de Jesus Cristo, como “combater o bom combate”. O bom combate é o combate ontológico, o combate do deixar-ser e de sua serenidade. Este combate por e para ser constitui a essência do humano. Ser pobre no espírito é combater este combate. Emmanuel Carneiro Leão, falando desse combate, lembra que


este é o sentido da passagem do mito do Gênese: “comerás o teu pão com o suor do rosto!”. O homem tem de ganhar a vida com o próprio esforço, em todos os níveis de usa realização, não apenas no nível econômico, mas sobretudo no nível da autenticidade de um sentido plural e polivalente [4].


São Francisco caracteriza o pobre de espírito como um homem que tem o “ódio de si mesmo”. Este ódio é o verdadeiro amor a si mesmo. O falso amor a si mesmo é o egoísmo. No egoísmo o eu tirânico se põe no lugar do si-mesmo nobre, que é o si-mesmo que é faz aparecer a imagem do Filho e a semelhança do Pai. O ódio desse eu é condição para amar este si-mesmo. Toda adversidade e perseguição, toda insatisfação com os outros e toda a injúria vinda dos outros contra nós, que nos fazem, por assim dizer, “quebrar a cara” e “cair na real” são chances de deixar morrer aquele eu tirânico, para deixar aparecer o si-mesmo nobre, o si-mesmo do Filho de Deus. Espírito é a luta corpo a corpo contra este eu tirânico, para favorecer a liberdade dos filhos de Deus em nós. Frei Harada comenta:


Pobreza evangélica pra valer é, por ex., amar aqueles que lhe quebram a cara. De repente se percebe que pobreza evan­gélica não tem nada a ver com ter ou não ter. Há pesso­as cheias de virtude, zelosas, santas, mas que ainda não são pobres em espírito, pois "é pobre em espírito quem deveras odeia a si mesmo e ama os que lhe batem na cara", diz São Francisco. Odiar a si mesmo é ter sob controle aquele eu que não entende que a essência da vida cristã é o amor misericordioso do Deus de Jesus Cristo, e que precisamos largar tudo para cultivar esse amor. O soco que levamos no queixo é soco nesse eu que não quer entender essa verdade essencial do cristianismo. Em nós, porém, há outro eu, aquele semelhante ao Deus de Jesus Cristo; nele ninguém consegue dar soco, não porque esteja acima dessas coisas, mas porque ele rece­be os socos como um convite para responder com amor gratuito. Quem entendeu isso é pobre pra valer, pois esta atitude é mais difícil do que aturar pobreza materi­al, do que ser campeão de pobreza ou de penitência.


Pode ser que não consigamos esta atitude; no entanto tomar uma decisão e dizer: "Esta é a mensagem de Jesus Cristo, essa é a nova humanidade que eu quero; nisso coloco a minha felicidade", e quotidianamente, humildemente, po­bremente, muitas vezes fraca e mediocremente trabalhar nisso, pois isso já é ser pobre em espírito e materialmente também!


Que nos seja dado, pois, seguir esta mensagem que é uma boa-nova e uma alegria para nós.


[1] Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 253. [2] Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 141. [3] Bonhoeffer, D. Sequela, p. 131. [4] Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 135.



Para pensar e partilhar:


1. Como entender que a pobreza de espírito é uma luta e caminho para a liberdade de espírito?

2. Nessa luta, como entender o “ódio de si mesmo”?



Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes




Continue bebendo do espírito deste tema:


- indo ao texto-fonte: 91º Encontro - 14ª Admoestação - Da pobreza de espírito

- 2ª parte - Espírito como luta corpo a corpo da vida


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