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90º Encontro - 18/03/23 - 14ª Admoes - Da pobreza de espírito

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 19 de mar. de 2023
  • 11 min de leitura



Da pobreza de espírito




Introdução


Nas Admoestações anteriores, Francisco exorta seus Irmãos para a humildade, a paciência e para a paz na alma e no corpo, virtudes não apenas essenciais para um seguidor de Cristo, mas também uma espécie de termômetro para saber o quanto está se empenhando para segui-Lo. Agora, vai voltar-se para aquela que se constitui o fundamento, o princípio de todas as virtudes, aquela sem a qual as demais não existiriam: a pobreza de espírito. Vejamos o texto:


Bem-aventurados os pobres de espírito’, porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3). São muitos os que insistem nas orações e nos ofícios e fazem muitas abstinências e aflições em seus corpos. Mas, por causa de uma só palavra que lhes pareça injuriar seus corpos, ou por causa de alguma coisa que se lhes tire, ‘escandalizados, imediatamente’ (Mt 13,21), se perturbam. Estes não são pobres de espírito. Porque quem é verdadeiramente pobre de espírito odeia a si mesmo e ama os que lhe batem no queixo (Mt 5,39).



1. Pobreza, a virtude das virtudes


Estamos diante da virtude das virtudes, a primeira e a mais radical de todas para o cristão e em especial para o franciscano, uma vez que ela, a pobreza, se constitui o coração, a alma de sua identidade ou carisma. E isso porque o próprio Senhor a distinguiu com essa honra e dignidade, pois, é com ela que Ele dá início à nova Aliança, ao seu Reinado no conhecido Sermão da Montanha. Por isso, a santa pobreza foi constituída por Ele mesmo como o fundamento e a guardiã de todas as demais virtudes; a virtude que melhor prepara no homem um lugar e uma morada para Deus e mostra o caminho mais excelente e mais rápido para se ir e chegar até Ele (SC). E quem garante essa primazia é o próprio Senhor. Pois, se para todas as demais virtudes, diz que o Reino dos Céus só chegará depois, no futuro, como floração, para os pobres de espírito garante que deles é o Reino dos Céus.


Talvez, por isso, ela se tenha tornado a questão mais controvertida de toda a história da Ordem e da própria Igreja. Por um lado, por ela, milhares e milhares de santos e bem aventurados enobrecem o Povo de Deus, a Ordem, a começar, na Igreja, pela Virgem Maria e, na Ordem, pelo próprio seráfico pai; por ela multiplicaram-se e multiplicam-se ainda hoje os devotos e seguidores de São Francisco, dando origem a muitos novos Institutos, Ordens e Congregações franciscanas, cada qual revelando novos aspectos ou carismas desse insondável mistério de Deus. De fato, a pobreza que São Francisco nos legou é de tal envergadura que nenhuma de suas Instituições e, muito menos, nenhum de nós, sozinhos, de antemão, não podemos saber ou dizer o que ela seja.


Mas, por outro lado, em nome ou por causa dessa virtude, criaram-se, também, muitas tensões, levantaram-se muitas discussões e estabeleceram-se muitas e intermináveis rixas na Ordem; alguns, até, levados pela soberba, tomaram-na como pretexto para se separar da Igreja, preferindo a amargura do sectarismo à alegria da sagrada comunhão, a estreiteza da seita à universalidade da Ordem e da Igreja.


As Legendas revelam com que fervor e clarividência Francisco, movido pelo Mestre, sempre viveu e defendeu a radicalidade da observância desse conselho evangélico. Importa recordar que foi movido por esse provocante mistério de Deus, escondido na pessoa do pobre que ele, ainda jovem, na casa paterna, começou a sentir os primeiros atrativos e a sofrer as primeiras provocações e transformações; foi a partir do encontro com o Cristo pobre e crucificado, na igrejinha de São Damião, que trocou a vida do mundo e prometeu segui-Lo, vivendo despojado de tudo; e foi para imitar seu Mestre até o fim que quis morrer nu sobre a terra nua.


Mesmo assim, o que para Francisco era um mistério de profunda clarividência para nós se apresenta como um enigma que nos questiona e inquieta: qual seu conteúdo ou quando é que realmente, em concreto, somos pobres? Francisco responde: quando formos pobres em espírito. Mas, o que é viver a pobreza em espírito, ser pobre espiritualmente? E, nesse caso, como fica a pobreza material? Pode-se viver uma sem a outra? Qual a relação entre ambas? A história de 800 anos demonstra o quanto é desafiadora essa questão. E é bom que assim o seja a fim de que nos mantenhamos sempre sequiosos, peregrinos e mendicantes dessa pérola, a mais preciosa, do Reino dos Céus.



2. Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3)


Antes, porém, de entrar na abordagem direta da resposta dada por Francisco precisamos ter presente o problema da fragilidade ou pobreza de certas palavras. Infelizmente, espírito, hoje, é uma das palavras que tem perdido muito de seu vigor originário. Para evitar esse perigo é preciso levar em conta que nessa Admoestação, a palavra espírito ainda conserva a força mordente do frescor da Boa Nova, o Evangelho de Jesus Cristo vivido por seu fiel observador São Francisco. Poderíamos, assim, dizer que “em espírito”, para Francisco, significa, sem mais e nem menos: segundo, a modo ou no vigor de Jesus Cristo crucificado ou seja: como Jesus Cristo foi e é pobre no Presépio, na Cruz e na Eucaristia. Ora, Cristo se fez tão pobre que se despojou da própria vontade para fazer, em tudo e com todos, a vontade do Pai até à morte e morte de cruz. Nesse sentido “em espírito” significa numa doação, numa entrega total, absoluta de tudo e de toda a sua alma, de todo o seu coração, de toda a sua mente, de todas as suas forças ao bem querer do Pai e de seus filhos, os homens. Belo e sublime sinal dessa doação vemos quando, sobre o altar, no pão e no vinho, nas mãos do sacerdote se faz presente “o Cristo, o Filho do Deus vivo (CO 26). Eis o espírito de pobreza em sua origem, em sua raiz.


Um olhar sobre a proclamação dessa bem-aventurança, certamente vai nos ajudar a melhor compreender essa virtude. Jesus a proclamou não para toda a multidão de seus ouvintes, mas apenas para o pequeno grupo dos discípulos que por Ele foram chamados, um por um e nominalmente, a fim de segui-lo mais de perto, numa intimidade ímpar. A esses foi dada a graça de conhecer os segredos do Pai e de participar de sua missão até o martírio. Por isso, foram chamados de seus apóstolos ou testemunhas. Movidos por tão grande dádiva, abandonando tudo o que há de mais caro e precioso, neste mundo, a própria família, aproximaram-se Dele no monte para ouvi-Lo e segui-Lo, mais de perto, numa intimidade familiar de todas as horas de cada dia.


Até bem pouco não havia nenhuma distinção ou separação entre eles e o povo. Antes do chamado e da convocação em nada se distinguiam da grande massa de pessoas. A partir de então, passam a pertencer única e exclusivamente a Ele, convivendo com Ele e acompanhando-O onde quer que vá. Eis o diferencial entre eles, - os convocados - e os demais. A força e a alegria da gratuidade desse chamado leva-os a deixar família, barcos, propriedades, amigos, profissão, etc. para possuir unicamente a Ele, seu Senhor, seguindo seus passos, seu Evangelho. O vigor desse chamado os liberta de tudo e de todos e os libera para amá-Lo, acima de tudo e de todos, de todo o coração, de toda a alma e mente, e com todo o vigor (1Ct Fi). Eis a pobreza em espírito! A virtude que prepara uma habitação para Jesus, seu mestre, uma morada para o Pai! Pois onde está Jesus está também o Pai. Eis porque o pobre em espírito já é bem aventurado aqui na terra e neste mundo: a perfeita alegria do Meu Deus e tudo! (Atos 1).


Essa é, pois, a razão de serem bem-aventurados, felizes: o fato de haverem sido vistos, queridos e escolhidos pelo Senhor para serem sua habitação, já aqui e agora, nesse mundo. E essa é também a razão de quererem ser pobres, famintos e sedentos de justiça, isto é, sedentos das medidas que vem desse chamado ou seguimento de seu Senhor. Seria pecado de graves consequências querer inverter essa ordem, isto é, considerá-los felizes e bem-aventurados por serem pobres, famintos e sedentos. Carência e privação, choro e lágrimas, dor e sofrimento, por si sós, jamais se tornaram causa ou fonte de alegria, de realização, felicidade ou, enfim, de qualquer bem-aventurança.


”De” ou “em espírito”, na expressão evangélica pobre de (em) espírito, nada tem a ver, portanto, com carência, “falta (ausência) de”. Indica, pelo contrário, movimento de busca, de crescimento naquilo que se quer e se deve ser, no caso, seguidor de Jesus Cristo. É preciso, pois esforçar-se para entender essa palavra não como indicadora de uma realidade tipo “coisa” imaterial, chamada 'espírito', diferenciada, no caso, de outra entidade, chamada 'corpo' ou material, mas como a realidade das realidades, “aquilo” que rege e sustenta cada criatura, acontecimento, enfim, o universo todo.


'Pobre', por seu lado, nessa expressão e nessa perspectiva, não indica uma experiência de privação, nem um estado social de penúria e nem mesmo uma virtude-ornato de uma piedosa santidade, mas sim o vigor do ser, o qual o discípulo busca, de corpo e alma, como a riqueza suprema de sua identidade. Trata-se, pois de um princípio de perfeição, de realização, de plenitude humana. Perfeição é a ação ou empreendimento que me leva a ser per-feito. Perfeito é o que se fez, o que se consumou `per'. Essa preposição, vinda do latim, significa “através de”. Per+feito, indica, portanto, um longo processo, bem planejado, trabalhado com ardor, inteligência e dedicação, do começo até o fim, isto é, até chegar à culminância de sua identidade: o feito através de: o per+feito.



3. São muitos os que insistem nas orações e nos ofícios...


Para ser pobre de espírito, i. é, para ser bom mesmo, no vigor do chamado à pobreza evangélica, é necessária muita boa vontade, muita persistência no trabalho e nos exercícios de aprendizagem próprios desse modo de ser. É necessário que se insista nas orações, nos ofícios divinos; que se façam muitas abstinências e aflições em seu próprio corpo (vs. 3), isto é, com todo o seu ser, de corpo e alma. Mas, só isso não basta.

Por isso, agora, passa a descrever dois modos ou posturas de vida. De um lado estão os que insistem nas orações e nos ofícios, etc. Esses, diz Francisco, não são pobres de espírito. Do outro lado, temos os que odeiam a si mesmos e amam os que lhes batem no queixo... Esses, sim, são verdadeiramente pobres de espírito.


No primeiro caso estamos diante de pessoas que, embora muito zelosas e muito esforçadas, estão numa busca mal orientada. Em vez de se preocuparem com a Vida religiosa estão mais interessadas em si mesmas, no engrandecimento da pessoa de sua própria subjetividade. Se parecem mais com os heróis desse mundo que buscam as glórias do primeiro lugar no pódio da fama, da honra, das vantagens pessoais do que, propriamente, com os santos ou discípulos do Senhor, cujo único desejo é de estar com Ele, de viver com Ele e como Ele, carregando todos os dias a cruz do seu chamado, como Ele carregou a Dele, até à morte e morte de Cruz.


Nessa dinâmica, tudo o que vem destruir as expectativas ou ideais de minha subjetividade, do meu eu, será um grande benefício que devo acolher com alegria e gratidão. Por isso, amar os que me batem no queixo é igual a empenhar-me para ser pura disposição, pura doação, pura boa vontade. Se algo de mim ou dos outros me tira dessa disposição, diz Francisco, não devo perturbar-me, mas redobrar, ainda mais, minha boa vontade para estar com o Senhor, pois só Ele tem força para me libertar das amarras do meu eu mesquinho e egocêntrico (Ad X).


'Orações', 'ofícios divinos’, ‘abstinências' e 'aflições' indicam os exercícios reais e bem trabalhados para libertar, purificar e dispor todo o ser do homem para a busca de sua identidade. São o que há de melhor do seguimento de Cristo. São Francisco diz, então, mais ou menos o seguinte: pode haver pessoas que se esforçam e se exercitam doidamente, dia e noite, na busca de sua identidade mais profunda, empregando os melhores exercícios que há nessa Escola do Senhor e, no entanto, todo esse zelo e empenho ainda não são nenhuma garantia de que sejam bons mesmo na busca da pobreza evangélica, do seguimento de Cristo. Pois, em tudo isso pode-se estar imbuído pela dinâmica do ensimesmamento, interessado apenas em engrandecer seu próprio eu, de tal sorte que qualquer coisa que venha a feri-lo cai com facilidade no desânimo, na raiva ou na vingança. Nesses casos, é evidente que não está sendo pobre de espírito, de alma. Pode rezar no fervor do seu próprio eu e não na busca do Eu do seu Senhor; pode fazer tanta caridade para sua auto satisfação que nem se lembra do Senhor que é a Caridade em pessoa; pode, a exemplo dos fariseus, se dedicar tanto à observância do sábado, do jejum e das abstinências que esquece o Senhor do sábado, do jejum e da abstinência.



4. Perturbação, sinal de que não se é pobre de espírito


Agora vem a chave de ouro para saber se um cristão ou franciscano está ou não no segmento de Cristo, isto é, no caminho da pobreza evangélica, da pobreza em espírito.


Segundo Frei Harada, para ser bom mesmo, para valer, no seguimento de Cristo, na pobreza, i. é. para ser pobre de espírito, segundo a explicação dada acima, é necessária uma luta, corpo a corpo, de vida ou morte, travada concreta e realmente, na carne nua e crua de todo o nosso ser. Portanto, essa busca não é para a gente aparecer, se sentir melhor e mais autêntica; também, não é uma vivência de auto satisfação ou a busca de uma realização que cheira à grã-finagem ou burguesia espiritual, por mais sublime e zelosa que seja. É, antes, uma luta no estilo dos antigos cavaleiros, assumida com gosto, amor e paixão; uma luta terra à terra, com unhas e dentes, real e perigosa na qual se arrisca a ter como mestres realidades que quebram o queixo (Sl 3,7) do nosso pequeno eu. Só quem tem amor a essa maneira de lutar é bom mesmo na pobreza, i. é, será tomado pela “Potência” da Cruz, o espírito de pobreza. Agora vem, então, a chave de ouro para saber se realmente isso está acontecendo. Ouçamos, de novo, Francisco:


Mas, por causa de uma só palavra que lhes pareça injuriar seus corpos, ou por causa de alguma coisa que se lhes tire, ‘escandalizados, imediatamente’ (Mt 13,21), se perturbam. Estes não são pobres de espírito. Porque quem é verdadeiramente pobre de espírito odeia a si mesmo e ama os que lhe batem no queixo (Mt 5,39).


Essas duas últimas frases contém um não e um sim. O não aponta para o sinal de quando não se é e o sim de quando se é pobre de espírito.


Escândalo, significa aquilo que leva ao mal, à queda, à corrupção, ao pecado. Mas, o objeto do escândalo não precisa necessariamente ser um mal. O próprio Deus, Jesus são motivo de escândalo para os judeus como Francisco o foi para o pai e muitos de seus conterrâneos. Tanto lá com os judeus como aqui, nessa Admoestação, a causa do escândalo está na pouca ou na total falta de fé, de confiança em Jesus. Estão mais empenhados em salvar e seguir seu próprio eu do que a Jesus e seu Evangelho. São tão frágeis que, diante de uma simples palavra que lhes pareça ferir seu ego ou diante de algo que se lhes tire, logo tropeçam, desanimam, se perturbam e desistem.


Mas, qual a causa da perturbação? A falta de fé, de confiança. Por isso, aos discípulos perturbados por causa do escândalo da Cruz, diz-lhes Jesus: “Não se turve o vosso coração! Crede em mim!” (Jo14,1). A causa do escândalo e da perturbação está, pois na sensação de estar só, abandonado, perdido. Por isso, seu único remédio é a confiança, a Pobreza da Cruz que é a essência do seguimento de Cristo. Ora, quem está nesse mistério não pode ter outra segurança senão a segurança de Cristo que, por sua vez, põe toda sua fé e segurança na vontade do Pai. Por isso, longe de quem está nesse mistério ou caminho querer se promover, se defender, se valorizar. A única coisa que o pobre em espírito pode e deve fazer é não poder ser outra coisa senão pobre, isto é pura exposição, na total fraqueza de si mesmo, à semelhança de Jesus Cristo crucificado, pão, vinho e água: Eucaristia.


Daí a conclusão de Francisco: Porque quem é verdadeiramente pobre de espírito odeia a si mesmo e ama os que lhe batem no queixo (Mt 5,39).



Para pensar e partilhar:


1. Por que Francisco amou tanto a pobreza de espírito a ponto de pô-la como fundamento de toda a sua Ordem?

2. Como, segundo São Francisco, alguém pode saber se está ou não no vigor da virtude da pobreza de espírito?



Paz e Bem! Fraternalmente, Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes

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