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89º Encontro - 11/03/23 - 13ª Admoes - Da Paciência - 3ª parte

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 10 de mar. de 2023
  • 11 min de leitura



DA PACIÊNCIA


3ª. Parte: A bem-aventurança da paz no exercício da paciência e

da humildade



Introdução


Em nossa última reflexão, vimos que Cristo é o princípio da paciência porque ninguém como Ele soube acolher e amar até à morte e morte de Cruz a vontade, o bem querer do Pai em favor dos homens. Por isso, se quisermos ser seus seguidores precisamos exercitar-nos diariamente nessa virtude. Eis o tema dessa nossa reflexão. Tomemos de novo o texto da XIII Admoestação.


”Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). O servo de Deus não pode saber quanta paciência e humildade tem em si, enquanto está satisfeito consigo. Quando, porém, chegar o tempo em que os que deveriam satisfazê-lo, fazem-lhe o contrário, quanta paciência e humildade aí tiver, tanta tem e nada mais.


Bem-aventurado é aquele no qual o projeto da existência humana caminha, alcança êxito, se sai bem. Por isso, o caminho da bem-aventurança requer um olhar que encare com fé o futuro e um coração corajoso para acolhê-lo com amor. Ao mesmo tempo, precisa que retorne ao passado essencial, que busca sempre de novo o vigor do ponto de partida da própria história. O ser humano precisa sempre de novo reelaborar as condições de seu próprio viver; lutar com as necessidades, contrariedades, adversidades, confiando que esta luta poderá lhe conduzir a um bom êxito do projeto de sua existência. Caminhando assim, seu fazer e seu sofrer alcançam uma unidade de sentido e o poder-ser se robustece. O projeto da existência, da vida, então, passa do mero deslanchar para o êxito em tarefas particulares. E quando, aos poucos, o projeto da existência se dirige ao todo e não se restringe a interesses particulares, mas ao bem comum, então a existência se sai bem, frutifica, tornando-se feliz [1].


O primeiro aspecto da bem-aventurança trazido à memória por São Francisco nas suas Admoestações é o da paz. Mas, não basta ter a paz, é preciso também criá-la, pô-la em obra. Pacífico é aquele que cria, que põe em obra a paz [2]. O discípulo de Jesus prefere sofrer o mal do que fazer o mal. Ele vence o mal com o bem. Nisso, ele carrega a cruz e participa da paixão salvadora de Jesus. Nisso, ele se mostra não só discípulo de Jesus, mas seu irmão, pois mostra que tem a origem de seu ser, de seu viver, de seu agir e de seu sofrer no Pai que está no céu. E é digno, neste sentido, de ser chamado “filho de Deus”, com Jesus, em Jesus, como Jesus.


São Francisco entende o pôr em obra a paz, a criação da paz, como paciência e humildade. Ele diz: O servo de Deus não pode saber quanta paciência e humildade tem em si, enquanto está satisfeito consigo”.


Nos “Louvores ao Deus Altíssimo” (LDA), São Francisco diz ao Deus de Jesus Cristo e seu Deus: “Tu és a paciência” (Cf. Sl 70, 5). O Pai não só é paciente, mas Ele mesmo é paciência.


Santo Agostinho, num livrinho dedicado ao tema da paciência (De Patientia) [3], diz a “paciência é um dom de Deus tão grande que nós falamos de paciência referindo-nos àquele que a doa”. Deus é paciência sem “padecer”, isto é, ele tolera nossos males na paz, sem ficar perturbado com eles ou irritado conosco. A paciência humana é tanto mais excelente, quanto mais o ser humano imita a excelência da paciência de Deus. Assim, o ser humano manifesta-se como filho de Deus, quanto mais ele é capaz de suportar os males, as adversidades, as contrariedades, as insuficiências, na paz. Essa paciência não é um mero aguentar de má vontade. Ela é um manter-se equânime e com boa vontade no suportar o mal. O paciente suporta o mal que sofre sem deixar de olhar e de amar para o bem que nele se oculta.


A paciência é o vigor da insistência e da persistência no bem, em meio ao mal. Santo Agostinho lembra que os maus são capazes de suportar muitas contrariedades para fazer o mal. Estes não são pacientes. A esperança do bem maior leva o paciente a suportar os males. A esperança, porém, se nutre da espera do e no inesperado. “O inesperado, também, é esperado na e pela paciência” [4]. A paciência traz consigo uma dimensão ontológica, isto é atinente ao mistério do ser, da realidade.


A realidade é mistério, pois doa-se nas realizações limitadas, restritas, do real, subtraindo-se, retirando-se enquanto realidade, enquanto abismo e infinitude. O ser humano caminha entre o inesgotável do mistério da realidade e as limitações, restrições, deficiências das realizações do real, seja em si, seja nos outros, seja no mundo.


São Francisco diz que o “servo de Deus”, isto é, o discípulo, amigo e irmão de Jesus Cristo Crucificado, não pode conhecer quanto tem de paciência e de humildade enquanto estiver satisfeito consigo. É que este conhecimento só se dá como experiência. É a experiência que revela, a cada vez, em cada nova situação, quanto de paciência e quanto de humildade ele mantém em meio às deficiências das realizações humanas e das criaturas. Pertence à finitude humana nunca poder ser plenamente satisfeito e contente com as realizações do real em si mesmo, nos outros, no mundo. Esta insatisfação, este descontentamento, está na raiz da condição humana finita:


O homem é um ser descontente por natureza. Não se contenta nem com o que ele é, nem com o que ele não é. Um apelo incontentável de dever ser atravessa-lhe todo o ser. Desde tempos imemoriais os homens são levados a transformar para dentro e para fora tudo que receberam ao nascer [5].


Suportar a insatisfação, o descontentamento, consigo mesmo, em se relacionando com as insuficiências e deficiências de si, dos outros, do mundo, é exercício de paciência. Isso implica renunciar à onipotência e acolher a finitude. A paz, isto é, a serenidade da paciência é a maturação deste acolhimento. Isso implica também abdicar de reivindicar que os outros possam nos satisfazer a todo o tempo, em cada situação, ainda que ele tivesse o dever de nos satisfazer. Frei Harada ilumina essa experiência assim:


Satisfazer é "fazer cheio", estar pleno naquilo que se deseja, naquilo que se considera necessário possuir. Quando se tem o que compete por direito, se está satisfeito. Quando não se está cheio, se está carente naquilo que se deveria ter por direito. Há cargos e tarefas que devem de fato "satisfazer" certas necessidades, como por ex. um professor, que deve ser professor, colega que deve ser colega: pessoas que devem de fato dar conta daquilo que são.


Acontece, porém, muitas vezes que os que deveriam ser segundo o desejo de nosso coração ou segundo a responsabilidade de sua ta­refa, não o são! Neste momento vem fora a verdade de nós mesmos, a verdade do vigor vital que nos anima: diante do comportamento impróprio do pai vem fora a verdade do vigor real do "filho"; diante da insuficiência do padre vem fora o vigor real do "fiel"; diante da injustiça da sociedade vem fora o vigor real do "sócio-companheiro".


A paciência nasce da aceitação do não-ser no ser, das deficiências e insuficiências do real em meio às suas realizações. Aceitar o não-ser, o negativo, o privativo, no vir a ser das realizações leva o ser humano a abrir-se ao acolhimento do mistério da realidade, de sua transcendência. A serenidade da paciência cresce nesta aceitação e neste acolhimento. É exercício de desprendimento, de pobreza do espírito. Na maturação deste exercício, que deixa de ser meramente negativo, para se se assumir como positivo, é que se encontra a serenidade. A mística cristã medieval chamou este exercício de “deixar-ser” (cf. Mestre Eckhart – o sein lassen, deixar-ser, da Gelassenheit, serenidade).


A mãe diz para a criança arteira: deixa de brincar com fogo. O pai diz para a filha adolescente: deixa de cavilação. De quem entrou para o mosteiro, ou do anacoreta, que foi para o deserto, costuma-se dizer, que deixou o mundo. Nestes casos, deixar, lassen, é verbo transitivo, e significa renunciar, abandonar. Prevalece, então, o lado negativo do fenômeno de deixar; ao menos aparentemente. Trata-se do aspecto mais claro e evidente, embora menos essencial e decisivo na experiência de deixar. Pois esta só se completa e conclui se, implícita ou explicitamente, se acrescentar ser, deixar ser, como, no apelo, que muitas vezes, se faz a um adulto invasivo: deixa a criança ser criança. É que o adulto se incomoda tanto com ele ser criança que tenta e busca não ser criança na criança [6].


Neste exemplo, aparentemente, o adulto está insatisfeito com o ser-criança da criança, mas isso é só uma aparência, na verdade, ele está insatisfeito consigo mesmo, com o seu próprio ser-criança. A dificuldade de aceitar as insuficiências da criança na criança trai e denuncia as dificuldades de aceitar as insuficiências da criança nele mesmo, que é adulto. Talvez seja por isso que São Francisco escreve sobre o “servo de Deus” não estar satisfeito em relação a si mesmo ao estar insatisfeito com os outros (... dum satisfactum sibi).

Enquanto no deixar-ser nos concentramos somente nodeixarnós nos mantemos numa atitude e numa valoração negativa da renúncia e do desprendimento. Somente na medida em que nós nos atentamos para o ser do “deixar-ser é que somos capazes de passar para uma compreensão, valoração, sentimento e atitude positivos da renúncia e do desprendimento, isto é, da pobreza de espírito, no exercício da paciência.


Deixar-ser remete não apenas para uma renúncia, mas para a vigência de ser e não ser, aquém de toda intervenção da parte do sujeito. A renúncia não vive primordialmente de rejeição, mas se alimenta de aceitar transformação [7].


A maturação da aceitação da vigência de ser e não ser em nosso vir a ser, da aceitação da transformação, é a serenidade da paciência. Ela é a paz com a própria condição humana finita, de ser e não-ser a cada instante. É paz com o cheio e com o vazio da vida. É reconciliação com a unidade de vida e morte em nossa condição de seres mortais. Viver é aprender com a experiência da vida, com o que ela traz de plenitude (cheio, satisfeito) e de vazio, de nada. É um constante exercício de pobreza de espírito, isto é, de pobreza essencial, de ser, ontológica:


O mal radical tem suas raízes na pretensão de excluir o nada de dentro do mundo. O mal radical está na ilusão de o homem ater-se aos haveres para, com a multiplicação do ter, pretender assegurar-se ser sem não ser. A autenticidade do viver mora na virtude de uma pobreza ontológica: a pobreza que tende exponencialmente a ser sem ter, enquanto a riqueza de bens é sempre ôntica e tende exponencialmente para ter sem ser. A ilusão da inautenticidade reside em buscar a propriedade e posse de tudo. A fantasia reinante liga-se à onipotência de tornar-se proprietário da totalidade do real e do universo das realizações para, assim, poder fugir do não ser. Por isso também, a sede da propriedade é insaciável, o desejo sem fim de substituir o ser pelo ter, contando com que ter tudo dispensaria ser, por excluir todo não ser. No mundo feito da inconstância de ser, a inautenticidade está em ater-se ao bem dos haveres para desvencilhar-se de não ser, e a autenticidade do viver consiste em libertar-se da ilusão do mal, isto é, da ilusão de o ter vir a preencher o vazio de não ser. Na iluminação do insight, não-ser se transfigura, deixando de ser a máxima limitação, para vir a ser a máxima realização do ser. Ser no superlativo da autenticidade é não ser, isto é, não ter nem mesmo o ser [8].


A paciência é a virtude (vigor) desta transformação, em que o não-ser, o nada, o vazio, é acolhido com o ser, o tudo, o cheio, mas em que também mostra como experiência superlativa, excelente, de ser. Assim, a paciência suporta com boa vontade o mal e os males e descobre que são chances de uma maturação para um bem maior, para a transcendência do próprio bem.


São Francisco ensina que quando chega o tempo da insatisfação, quando aqueles que deveriam, por direito, nos satisfazer não nos satisfazem, então é que aparece como vigora em nós o vigor (virtude) da paciência e da humildade. Paciência é vigor de aceitação, de receptividade, das transformações que a vida nos traz para que nos abramos para o seu mistério. Frei Harada comenta:


Paciência é dinâmica e vigor de recepção. Uma pessoa que tem capacidade de sustentar, de acolher situações que o contrariam, de ter resistência, esta pessoa é paciente. Somente nas contrariedades é que isso se torna visível. Como você "trabalha" as coisas que deveriam lhe satisfazer e não o fazem, isso deixa claro até que ponto você é "servo de Deus". A contrariedade vai contra o eu que quer se satisfazer. Mas esse eu que busca satisfação, não é importante para São Francisco; há um eu mais verdadeiro que a contrariedade pode ajudar a construir. O servo de Deus é aquele que, em situação de contrariedade, não considera a contrariedade uma carência, mas as encara com paciência e humildade, pois sabe que paciência e humildade são qualidades positivas de Deus Encarnado (Je­sus Cristo). Francisco tem delicadeza e nobreza tão grandes com o seu Senhor, que considera uma ofensa achar as coisas como carência, como negati­vo; para o "servo de Deus" estas também são graça do Senhor! São Francisco é muito corajoso e positivo, alegre; no fundo não há mais o "negativo" para ele!


São Francisco não está dizendo que se deve agüentar, en­golir e sofrer para depois receber a recompensa; quem assim faz, ainda não está vendo direito como é ser "servo do Senhor". A espiritualidade franciscana diz: "Senhor agora estou enfrentando esta carência, esta contrariedade, mas para mim não é carência nem contrariedade; é antes um convite positivo ao trabalho humilde, que busca descobrir e viver o húmus essencial da vida". Quando não há o desa­fio da contrariedade ficamos superficiais.


O vigor do humus essencial da vida chama-se humilitas, humildade. Por isso, São Francisco nomeia juntas a paciência e a humildade. A humildade é a verdade do ser. A humildade é o real. E o real da vida humana se mostra na sua finitude. A encarnação é o Filho de Deus assumindo este real com toda a sua boa vontade, com a boa vontade do amor. O amor de Deus foi manifestado em Jesus Cristo Crucificado como pura gratuidade. O espírito desse amor foi difundido em nossos corações. São Paulo disse que a caridade é longânime, é paciente, que ela suporta tudo (1 Cor. 13, 7).


Do realismo da humildade fala frei Harada. Sendo uma virtude, ela não é coisa de temperamento, de índole, mas é de trabalho, de operação:


São Francisco é muito realista; ele chama a atenção para o fato que o que se é realmente não fica manifesto nas coisas positivas; o real de nós mesmos aparece nas contrariedades. Há pessoas que quando contrariadas, no fracasso, na obri­gação de fazer na marra, brigam, xingam, se revoltam; mas na hora oportuna tem mais virtude do que outras de índole boa, cuja bondade não se sabe bem se é superestrutura ou dura conquista virtuosa. Francisco é vigoroso no seu realismo; seu estilo não tem treino sofisticado; ele vai diretamente para o embate da vida como treino o mais verdadeiro; ele parece ter um espírito esculpido pela própria tempestade da vida; e isso, longe de ser pes­simismo, é atitude muito positiva.


A flor da alegria franciscana só pode abrir-se à medida em que o ser humano se enraíza, pela paciência e humildade, no chão da vida.



[1] Cf. Rombach, H. Leben des Geistes, p. 289. Rombach fala do „Es geht“ (vai), do “Es gelingt” (alcança êxito) e do “Es glückt” (se sai bem ou mostra-se feliz) como três escalas do poder-ser da existência humana. [2] Cf. D. Bonhoeffer, Sequela, p. 105. [3] https://www.augustinus.it/latino/pazienza/index.htm [4] Emmanuel Carneiro Leão. [5] LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar II. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 37. [6] P. 253. [7] Idem. Grifo nosso. [8] P. 141.



Para pensar e compartilhar:


1. Por que a paciência exige paz e humildade

2. Em que sentido a paciência é uma virtude ativa e passiva?

Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes




Continue bebendo do espírito deste tema:


- indo ao texto-fonte: 89º Encontro - 13ª Admoestação - Da paciência - 3ª parte


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