83º Encontro - 10/12/22 - 11ª Admoes - Que ninguém se corrompa pelo mau exemplo de outrem - 3ª parte
- Frei
- 12 de dez. de 2022
- 12 min de leitura
Que ninguém se corrompa por causa do pecado e mau exemplo de outrem
3ª parte
Entre a caridade de Deus e o mal do próximo: a pobreza do não-ressentimento
Vejamos mais uma vez o texto:
Nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado. E se uma pessoa pecar, seja qual for o modo e, se por esta razão e não por caridade, o servo de Deus se perturbar e se irritar entesoura culpa para si (Cf. Rm 2,5). Vive retamente, sem nada de próprio, aquele servo de Deus que não se irrita nem se conturba diante de alguém. E feliz é quem não retém algo para si, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Introdução
Se na Admoestação VIII São Francisco fala da inveja, pela qual nós nos entristecemos pelo bem do próximo, nesta nos ensina sobre o modo como convém nos comportar com o mal do próximo, advertindo-nos que é preciso cuidar para que este mal, isto é, seu pecado, não nos leve a nos corromper; se na Admoestação IX nos ensina a amar os inimigos e a mostrar-lhes dileção e se na Admoestação X que o inimigo decisivo não é nenhum outro ser humano nem é algum demônio ou o diabo, mas é o corpo do pecado em nós, isto é, o nosso eu indolente, arbitrário e tirânico, nesta Admoestação XI ele nos adverte para não nos deixar corromper pelo pecado do outro ser humano, lembrando-nos que somos responsáveis pelas repercussões que o mal do outro, isto é, sua culpa ou pecado, têm sobre nós.
Lembremos, também, de nossa chave de leitura das Admoestações. Elas nos dão a pensar. E tudo o que nos dão a pensar tem a ver com a ideia, isto é, com a iluminação primordial que o Evangelho concede, no discipulado de Jesus Cristo, o Deus encarnado e crucificado: Deus é caridade. As Admoestações ensinam, a cada novo passo, esta verdade evangélica fundamental e procuram convidar-nos à pobreza e à nobreza do espírito, que nos possibilitam a liberdade para nos deixar reger por esta iluminação em todos os nossos relacionamentos, com o todo da vida, e, assim, conosco mesmos e com os outros, bem como com todas as criaturas. Vejamos, pois, o que São Francisco nos dá a pensar nesta Admoestação.
1. Nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado
Primeiramente, São Francisco enuncia um princípio: “nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado” (v. 1). O que isso dá a pensar?
Em primeiro lugar, para o “servo de Deus”, isto é, para o discípulo de Jesus Cristo crucificado, que se fez o servo de Deus e o servo dos homens, em virtude do seu amor-gratuidade, da sua caridade, não há nenhum mal que deva ser tomado como mal a não ser o pecado. O mal da culpa, o mal do pecado, é o mal que realmente traz em si a marca da maldade, do mistério da iniquidade. É o mal como esquecimento de Deus, de seu amor primeiro. É o mal como aversão a Deus e conversão às criaturas, uma conversão que corrompe, pois nela as criaturas são tomadas não a partir do mistério da gratuidade, mas sim em função de nossas cobiças egoísticas; é o mal como rebelião à regência do amor-caridade e à sua ordem. Este mal é o que deve desagradar ao discípulo do Deus de Jesus Cristo. Ao aderir a este mal, pela desobediência, isto é, pela incapacidade de escuta discipular e filial, o ser humano nega sua própria dignidade de filho no Filho, de ter sido criado para ser conforme a imagem do Filho segundo o corpo e para ser semelhança ao Pai segundo o espírito.
Em segundo lugar, para o “servo de Deus” tudo o mais que os seres humanos costumam tomar como um mal, isto é, todas as penas, todas as perdas, todas as privações, todas as dores, todos os sofrimentos, todas as desventuras, são tomadas como portadores de um bem, isto é, como chances de amar, de florescer e frutificar nas obras do amor.
A propósito disso podemos recordar o ensinamento do dominicano Mestre Eckhart, no livro que escreveu para a rainha Inês da Hungria, cujo marido tinha morrido, cujo pai tinha sido assassinado e cuja vida tinha sido reduzida ao desprezo, à solidão e à penúria – livro este que foi intitulado “O livro da divina consolação”. O dominicano lhe escreve:
Diz Santo Agostinho: Para Deus nada é distante ou demorado. Se queres que nada seja distante nem demorado para ti, conforma-te a Deus, pois ali mil anos são como o dia de hoje. Da mesma forma digo eu: Em Deus não há tristeza, nem sofrimento, nem desventura. Se queres ver-te livre de toda desventura e sofrimento, segura-te e volta-te com lealdade a Deus somente. Por certo, a fonte de todo sofrimento está em não te converteres para Deus somente. Com efeito, se lá estiveres, informado e nascido na justiça somente, coisa nenhuma te faria sofrer, assim como nada faz sofrer ao próprio Deus justo [1].
Para o servo de Deus, que é um homem de boa vontade, todas as coisas se tornam boas, mesmo as ruins. No modo como ele as recebe e as suporta dispõe-se à conversão para Deus e, assim, elas se lhe tornam um bem.
2. Como não deixar-se corromper
Entretanto, como se comportar para com o verdadeiro mal, o mal autêntico, genuíno, que é o pecado, em se tratando do pecado do outro? São Francisco ensina:
E se uma pessoa pecar, seja qual for o modo e, se por esta razão e não por caridade, o servo de Deus se perturbar e se irritar entesoura culpa para si (Cf. Rm 2,5).
A perturbação e a ira face ao pecado do outro são, elas mesmas, um entesourar culpa para si, um implicar-se e complicar-se com o pecado, à medida que nasce de uma atitude de julgamento do outro e de vindicação e ressentimento em relação a Deus. Quando nos colocamos como juízes dos outros e os condenamos, ficando, em nossos sentimentos, perturbados e irados com eles, nós nos consideramos superiores a eles. Tal atitude de julgamento e tais sentimentos de perturbação e ira mostram que já não nos encontramos no vigor da minoridade e da fraternidade em meio aos desafios e vicissitudes da convivência humana. Ao nos colocar nesta atitude, deixamos que o pecado do outro nos corrompa. Corromper-se quer dizer: declinar do vigor salutar do bem, que deixa e faz cada coisa chegar à plenitude de seu vigor de ser; bem como romper a unidade que o ser e o bem concedem, isto é, abandonar a harmonia, a paz. Corrupção é a perda da cordialidade da gratuidade e da jovialidade. É a perda da limpidez do ser, isto é, do viver, do sentir, pensar e querer.
Corrupção é apodrecimento. O que leva a vida humana a se estagnar, o que faz criar lodo na alma do homem e faz apodrecer suas energias vitais é o ressentimento. O ressentimento nasce de uma atitude vindicativa. O ressentido se põe a si mesmo como juiz de tudo e de todos, da vida, do mundo, de Deus e reivindica que a sua medida de justiça seja seguida. O ressentido quer endireitar o mundo, a vida, segundo suas medidas e seus padrões de valor, que são, no fundo, unilaterais e insuficientes. Deus mesmo é por ele julgado e condenado, na medida em que não corrige o mundo logo, na medida em que parece ausente, ou fraco diante da injustiça do mundo. Neste caso, o “servo de Deus” se esquece de ser “servo de Deus” e se coloca na posição de senhor de Deus e seu juiz. Ele exige que Deus mesmo preste contas de sua justiça e de seu poder, no seu modo de reger o universo, o mundo, a história. Frei Harada diz:
Pessoa perturbada, enraivecida tem uma concepção "mágica" de Deus; Deus para ela é aquele que resolve problemas. São Francisco, pelo contrário, pensa em Deus como aquele que é misericórdia, sensível diante da fragilidade moral, física, econômica, social do outro. Quem é mais Deus: um Deus que "resolve problemas" ou um Deus que ama os frágeis? Quando nos revoltamos contra a injustiça do mundo dizemos: como é que Deus, sendo todo-poderoso, não intervém? Numa concepção assim, "mágica" de Deus, cada vez que ele não responde ao nosso desejo de perfeição humana, ficamos raivosos e perturbados, nos fixando cada vez mais em valores de um sistema que diante de Deus não são nenhum valor, mas que dominam a todos fazendo a infelicidade de todo mundo. Sempre esquecemos que o Deus de Jesus Cristo é um Deus novo, uma experiência toda nova, uma maneira toda revolucionária de entender a Deus. O Deus de Jesus Cristo não é um "Deus que resolve problemas", mas um "Deus que ama!". São Francisco era muito forte em pesquisar a Deus e nos provoca a revisar a nossa compreensão usual de Deus.
3. Só por caridade
No dizer de São Francisco, entretanto, alguém pode se perturbar e ficar irado com o pecado do outro, mas por caridade. Tal perturbação e tal ira são, porém, de outo naipe. São afetos que surgem com a indignação vigorosa da caridade. Lembremo-nos, aqui, do Hino à Caridade, de São Paulo. Se ele diz que “a caridade é paciente, a caridade é benigna, não é invejosa”, que ela “não é orgulhosa, não se ensoberbece”, que “não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor”, por outro lado diz também que ela “não se alegra com a injustiça, mas se compraz com a verdade” (cf. 1 Cor 13, 4-6). O “servo de Deus” que se coloca como verdadeiro “servo de Deus”, isto é, como discípulo de Jesus Cristo crucificado, une a ternura e o rigor do amor. Mas este rigor não é o rigor do julgamento do outro. É o rigor da recusa do que é, segundo Deus – e não segundo nossas medidas – injusto e não verdadeiro. O cristianismo ensina a odiar o pecado, mas ensina, acima de tudo, a amar o pecador, isto é, a amá-lo com ternura, com misericórdia, a acreditar que todo o ser humano, por mais pecador que seja, traz em si a centelha divina, e que pode, por ser amado e amado gratuitamente, despertar para o amor que o amou primeiro: o amor de Deus, melhor, o Amor, a Caridade, que é Deus mesmo. Frei Harada comenta:
Há a possibilidade de ficar perturbado "por amor-caridade". Esta frase pode ter dois sentidos: "pelo amor-caridade que a pessoa tem por Deus", amor do qual surge o elo com Deus e com os outros, ou "pelo amor-caridade que Deus tem", em força do qual eu amo a Ele e aos outros. Usualmente entendemos no primeiro sentido; mas aqui se entende no segundo sentido. Diante de acontecimentos graves, você pode reagir a partir do amor-caridade que "você" tem, com todas as ambigüidades a que você está sujeito, ou ter uma indignação vigorosa que lança raízes no amor-caridade que Deus tem, como por ex. Jesus expulsando os vendilhões do tempo. O enraizamento no amor-caridade que Deus tem lhe dá certeza que sua perturbação é "de amor-caridade".
A ternura e o rigor, neste caso, pertencem, elas mesmas, à dinâmica do amor-caridade, que é Deus, e a partir do qual o “servo de Deus” sente, pensa, quer, sofre e age. Quando a ternura nasce do amor-caridade, ela não torna indolente e indiferente aquele que é amado. Quando o rigor nasce do amor-caridade, ele não desanima e não deixa prostrado aquele que é amado, antes, provoca à superação, ao melhoramento, de si.
4. A pobreza de espírito não julga e nem se irrita
Ao amor-caridade pertence a pobreza de espírito. São Francisco mostra como o homem que julga o seu próximo e que se perturba e se ira com ele por causa dessa atitude de julgamento e de ressentimento não é pobre de espírito: ele despreza o outro e, em alguns casos, despreza os seres humanos em geral, em suas fragilidades psíquicas e morais e, certamente, preza a si mesmo como justo. É a atitude da hipocrisia farisaica, tantas vezes denunciada e condenada por Jesus no Evangelho. Assim, ele entesoura, isto é, se faz rico para si. No entanto, esse tesouro aparece, diante de Deus, como um entesouramento de culpa, segundo o modo de falar de São Paulo. Em vez de acumular virtudes, ele acumula dívidas, como nos diz Frei Harada:
Uma pessoa que se escandaliza do mal e fica enraivecida e perturbada, no fundo está acumulando riqueza para si, mas riqueza que se chama culpa. Como entender isso? Culpa é dívida. De onde vem a perturbação? Do fato que perdi a confiança em Deus (então fiquei em dívida com ele!). Por ex., diante da situação de injustiça social generalizada, aos poucos desanimo e penso que não adianta se dedicar pois ninguém quer nada com nada. Mas de repente algo me diz que há uma força maior que cuida e o que eu devo é só fazer o que posso. Aí eu acordo e recobro o ânimo. Isto é pagar a dívida. São Francisco é atual não por causa da ecologia, mas porque tematiza aquilo que é próprio de "raça cristã": a crença na força maior que é Deus.
Quando o ser humano se põe nesta atitude de juiz e critério do bem e do mal, ele se apropria do bem, e assim, como ensina São Francisco na Admoestação II, tem que padecer o mal da pena. Tal homem não vive na pobreza do espírito, isto é, no “sine proprio”.
No terceiro versículo desta Admoestação XI, lemos:
Vive retamente, sem nada de próprio, aquele servo de Deus que não se irrita nem se conturba diante de alguém.
A pobreza do espírito, o viver sem se apropriar do bem, sem se erigir em critério e juiz do bem e do mal, dá ao ser humano a possibilidade de viver retamente, isto é, de viver de pé, de modo ereto, voltado para o alto, para a excelência do Deus-caridade. Este entra no vigor da justiça, isto é, da justeza da caridade. Por estar ajustado na justeza da caridade, este homem pobre no espírito vive em paz e “não se irrita nem se conturba diante de alguém”. Ele cobre com a ternura da misericórdia toda a fraqueza e toda a miséria humana. Este “servo de Deus” passa a viver, então, segundo a riqueza e a regência do “Reino de Deus”. A ele é dada, já na vida terrena, a riqueza do reino do céu, como nos diz, mais uma vez, Frei Harada:
São Francisco aponta como o cristão deve se colocar nesse mundo: ficar de pé, com retidão, diante de todas as situações, confiante na força maior que é Deus-amor; por isso o servo de Deus não se enraivece, nem se deixa perturbar por nenhuma coisa, nem por ninguém; ele vive retamente a bem aventurança da pobreza em espírito, e o Reino de Deus começa a ser o seu reino.
5. Não reter nada para si, mas dar a cada um o que é seu
Por fim, São Francisco diz:
E feliz é quem não retém algo para si, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
A justiça, diziam os medievais, é a retidão da vontade. É a vontade que se dirige ao Sumo Bem e que avalia, estima, aprecia todas as coisas segundo o modo e a medida dele, que é uma medida generosa, larga, universal. Os medievais lembravam também o ensinamento dos antigos, de que a justiça é dar a cada um o seu. Mestre Eckhart comenta num sermão a palavra da Escritura, que diz: “os justos vivem eternamente” (Sb 5, 16). Ele ensina: “Um escrito diz: ‘justo é aquele que dá a cada um o que é seu’; aqueles que dão a Deus o que é de Deus e aos santos e aos anjos o que é deles e ao próximo o que é dele” [2]. E completa ensinando que a Deus há que se dar a honra; aos santos e aos anjos, a alegria; aos que estão no purgatório, o sufrágio (auxílio); e aos que ainda vivem, o incentivo do bom exemplo. Quem vive assim, dando a cada um o seu, não retém nada para si, é desprendido, é pobre no espírito. E, no vazio desta sua pobreza, aflui para ele toda a riqueza da bondade fontal, do Sumo Bem.
São Paulo diz, no seu Hino já mencionado: “a caridade não é interesseira”. Ela não busca para si o seu interesse. Seu único interesse é dar a cada um o seu. Nisso, o homem que é regido pela caridade, que vive retamente, sem nada de próprio, tem a maior felicidade que o mortal pode ter. Sua alegria está em dar, de maneira generosa, dadivosa, movido pela gratuidade fontal de Deus.
Este homem não se apropria de nenhum bem. Vive retamente “sine proprio” (v. 3). Ele não reserva nada para si. Esvazia-se totalmente. E Deus pode entrar nele com toda a sua plenitude de bondade. Terminemos nossa reflexão com o comentário de frei Harada:
Quando você fica irado ou perturbado, por mais justo que isso pareça, ainda não está no ponto, ainda não entendeu bem a mensagem do Evangelho; ainda não vive "retamente", ainda não está de pé neste mundo de Deus. Para São Francisco a realidade maior é outra: ele entende que todo o bem que acontece nesse mundo, todo carinho de mãe, de pai, de irmãos, mesmo de um torturador que por um momento fica com pena e dá um copo de água ao torturado, todo este bem que acontece é a atuação de Deus no mundo. Deus atuando é caridade; se ele é caridade você não pode ficar irado. O que você pode é ficar triste porque um amor assim não é correspondido, mas isso é bem diferente de ficar irado.
Tomar esta atitude é "dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César".
[1] Mestre Eckhart. O livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 54-55. [2] Mestre Eckhart. Sermões Alemães I. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 69.
Para pensar e compartilhar:
1. Como entender o título dessa reflexão: A pobreza do não-ressentimento? Tem ela algo a ver com o que Francisco diz: entesoura para si culpa? Como, por quê?
2. O que é ou quando se dá a irritação por caridade?
Paz e Bem! Fraternalmente, Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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