82º Encontro - 03/12/22 - 11ª Admoes - Que ninguém se corrompa pelo mau exemplo de outrem - 2ª parte
- Frei
- 3 de dez. de 2022
- 12 min de leitura
Que ninguém se corrompa por causa do pecado e mau exemplo de outrem
2ª parte
Da corrupção e de seus remédios
Introdução
No último encontro começamos a ler e refletir a XI Admoestação cujo texto transcrevemos de novo, aqui:
Ninguém se corrompa pelo mau exemplo de outrem
Nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado. E se uma pessoa pecar, seja qual for o modo e, se por esta razão e não por caridade, o servo de Deus se perturbar e se irritar entesoura culpa para si (Cf. Rm 2,5). Vive retamente, sem nada de próprio, aquele servo de Deus que não se irrita nem se conturba diante de alguém. E feliz é quem não retém algo para si, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Após a análise do título desta Admoestação e com ele o fenômeno da corrupção, sua origem e consequências, passemos a olhar as frases que compõem o texto.
1. Tudo é bom, menos o pecado
A primeira frase reza assim: Nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado. Parece soar a ordem do Senhor a Adão: “Podes comer de toda árvore do paraíso. Mas, da árvore do conhecimento do bem e do mal não deves comer” (Gn 2,16-17). Ou seja, Francisco está nos convocando para o exercício de nosso dom maior: a liberdade ou responsabilidade.
O acento da exortação está no senão. Ou seja, Francisco começa nos recordando que, para um seguidor de Cristo, tudo deve ser visto com o olhar tomado pela pureza do coração de um filho muito querido de seu Pai do Céu; tudo acolhido e vivido como resposta a um grande benefício, um grande ato de fé, amor e confiança. Vale lembrar, aqui, o que já dizia o Apóstolo Paulo: Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação ou a angústia, ou a perseguição ou a fome ou a nudez ou o perigo ou a espada? Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia: fomos reputados como ovelhas para o matadouro. Mas, em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou (Rm 8,36-37). Ou seja, fora do pecado, aconteça o que acontecer, o franciscano deve ver e tratar tudo e todos com a pureza do olhar do Pai, amando e acolhendo tudo e a todos como graça, como presente que o Senhor nos oferece para edificação do nosso novo Eu, nascido com a graça do encontro e de seu chamado. Novamente, porém, devemos notar e anotar que aqui não se trata apenas de pecado moral, mas religioso, isto é, de tudo aquilo que pode nos afastar do princípio, da fonte de nossa vocação e de nossa nova identidade que tem sua origem com a graça do encontro com o Eterno e seu amor conosco; de tudo que possa diminuir ou apagar o fervor, o entusiasmo originário da graça do chamado a ser filhos de Deus em seu Filho bem amado, na e pela Igreja, na e pela Ordem Franciscana, em nosso caso.
2. Ao contrário do filho mais velho, não se irritar com a misericórdia do Pai
Para Francisco, o fenômeno de nossa perturbação e irritação, diante do pecado e mau exemplo do outro, esconde uma compreensão inadequada e falsa acerca da atitude de Deus em relação ao pecado e ao pecador, atitude essa revelada por Jesus Cristo e que deve ser amada e imitada pelos seus seguidores. No fundo, não aceitarmos que Deus não intervenha e não impeça que aconteçam tais escândalos e pecados. Gostaríamos que nosso Deus fosse um “deus todo-poderoso”, “justo”, “correto” e não o Deus misericordioso, paciente e fiel, capaz de esperar até o último suspiro a conversão do pecador; capaz de perdoar setenta vezes sete, como nos ensina nas parábolas da misericórdia (Lc 15,1-32). Custa-nos ver e acolher um Deus que se assenta e come com os moralmente doentes, os pecadores públicos, não tanto para curá-los de suas doenças, mas tão somente para ser um deles e com eles, vendo-os, ouvindo-os e amando-os, sentindo e comungando de suas alegrias e tristezas, esperanças e desesperos. É essa atitude que os cura e liberta e não vice-versa.
A admoestação está aí, portanto, para questionar nossa compreensão de um Deus “poderoso”, que pode tudo, ou um Deus “mágico”, segundo os princípios do mundo, solucionador de nossos problemas e dificuldades. Nessa concepção, toda a vez que Ele não responde aos nossos anseios de perfeição, deixando-nos no meio do pecado e dos pecadores, ficamos perturbados e irritados, criando um ambiente de inferno e não de céu. Esquecemos, ou melhor, não confiamos que o Reino dos céus já está no meio de nós, isto é, de nossa vileza física, moral e religiosa, tanto individual como comunitária. Lembremos as parábolas do joio no meio do trigo (Mt 13,24-46). Como bom médico, Deus gosta de estar com seus pecadores, cuidando de suas feridas, mais do que estar com os justos que não precisam de misericórdia. Deus, para ser o que é, Misericórdia, tem de estar no meio da mixórdia humana.
Esquecemos ou custa-nos entender, e nisso consiste nosso pecado, que o Deus de Jesus Cristo é um Deus “novo”, inteiramente fora dos parâmetros deste mundo e do alcance de nossa inteligência; um Deus nunca visto nem imaginado, mas, agora revelado pelo seu Filho crucificado que amou estar e morrer entre ladrões. Eis a “Boa Notícia”, algo inteiramente diferente e inaudito, inefável; uma maneira inteiramente nova e totalmente revolucionária de entender Deus e sua mensagem acerca do sentido de nossa vida (Ad I). Um Deus Médico que ama estar com seus enfermos para, como bom Samaritano, tão-somente poder recolhê-los e reerguê-los de suas quedas e curar-lhes as feridas. E, tudo isso, não para tê-los pra Si, mas tão somente para que pudessem andar livremente!
3. Só por caridade
Segundo São Francisco, a irritação e a perturbação conhecem uma única exceção: a caridade. Em outras palavras, há a possibilidade de ficar perturbado e irritado, mas somente por causa do “amor-caridade que a pessoa tem” por Deus. Movida pelo amor que ela tem por Deus.
Usualmente entendemos “por caridade” como se fosse uma virtude ou vigor nosso. Nesse caso, a irritação e a perturbação nasceriam do amor, da compaixão que eu tenho para com essas pessoas que escandalizam e pecam. Mas, talvez, Francisco esteja falando não da nossa caridade, mas da caridade que é Deus. Neste caso a irritação e a perturbação estariam nascendo do amor com que Deus está amando os pecadores. Ou seja, diante de situações degradantes – pecados, maus exemplos – o cristão não pode reagir movido pelo seu amor, pela sua caridade, que são sempre muito limitadas e imperfeitas, por vezes nada “caritativas”, mas enraizado no amor, na caridade que é Deus. Foi o que fez Jesus no famoso episódio da expulsão dos vendilhões do templo. Agiu não a partir de si, mas do Pai e sua casa.
Movido pelo fogo desse zelo sofria porque os vendilhões viviam na casa de Deus não para adorá-lo e reverenciá-lo, mas para explorá-lo em benefício próprio. O que, convenhamos, é uma das piores corrupções e mais grave ofensa que se pode fazer a quem nos ama. Mas, sofria também porque sentia e via a desgraça em que haviam se metido aqueles seus fiéis, pela ruptura com esse amor, impedindo-se, assim, de poder desfrutar da graça de sua presença. Em vez de estar contemplando e adorando seu Senhor, ávidos, contemplavam e admiravam seus ídolos, o dinheiro, a mercadoria, o lucro.
4. Um tesouro falso e ilusório
Francisco encerra seu primeiro dito afirmando que, nesse caso, a pessoa entesoura culpa para si. Ou seja, quem se escandaliza com o mal de outrem, a ponto de se irritar e se perturbar, no fundo, está acumulando para si o peso daquela falta ou pecado que o outro cometeu: um tesouro falso que o ilude acerca de sua bondade e santidade.
Mas, onde está a culpa se ele não fez nada? Justamente nisso: por não fazer nada em si e muito menos em relação ao outro que pecou. Em si por não cuidar bem de sua inocência e pureza de coração, de seu entusiasmo originário, permitindo que entrasse nele a soberba, o puritanismo, a irritação, a perturbação e a maledicência pensada e ou falada. Em relação aos outros por não ser misericordioso e paciente como Deus é misericordioso e paciente, dando mais importância ao pecado que ao pecador.
No fundo, a culpa, aqui, está no fato de acomodar-se diante do mal, tirando o corpo fora, sem exercer o maior de todos os dons com os quais o Senhor nos ornou: a capacidade de responsabilizar-se não apenas pelo seu pecado, mas também pelo pecado de outrem. É o pecado que, segundo o Padre Vieira, se faz não fazendo. Nesse caso, a culpa do outro passa a ser também sua. Por isso, diz: entesoura culpa para si. Tentemos entender essa exortação com um exemplo.
Quando numa comunidade surgem escândalos ou decadências é muito frequente que muitos de seus membros comecem a desanimar, murmurar e falar mal. Alguns, talvez, até tentam melhorar a situação, mas como não são ouvidos e não veem resultados logo desanimam. Mas, se alguém for um pouco fiel à sua identidade religiosa, poderá, de repente, intuir a presença de uma força maior que todas as suas forças atuando na raiz da fraternidade e de cada um dos seus membros, santos e pecadores: a jovialidade do carisma comum. Assim, movido pela presença dessa graça poderá começar também ele a recobrar o ânimo e a fazer algo para que a situação melhore ou pelo menos para que não piore. Isso seria pagar a dívida. Talvez seja esse um dos sentidos da famosa exortação de Francisco: Irmãos, vamos começar a servir a Deus porque até agora pouco ou quase anda fizemos!
A frase, talvez, esteja dizendo que nada adianta gritar, reclamar ou perturbar-se porque o mundo vai mal, porque a humanidade “está perdida”, porque a Igreja está “caindo”. Ao contrário, do que precisamos é sair de nossa zona de conforto e, a exemplo de Francisco, começar, pedra por pedra, o ingente e urgente trabalho de reconstrução não só da criação, mas acima de tudo do coração do homem.
5. Viver retamente, sem nada de próprio
Esse modo de estar na vida “por caridade”, sem se perturbar nem se irritar diante do pecado, Francisco chama de viver retamente, sem nada de próprio.
Retamente significa de modo adequado, bom, certo, limpo na pureza e na inocência das crianças ou dos santos, livre das paixões de seu próprio eu e do mundo. Francisco chama esse modo de viver de ser menor ou, então, de viver sem nada de próprio, a modo de servo inútil, que faz tudo o que deve e que ainda, no fim, se proclama devedor. Nesse modo de ser, a exemplo da criança ou do pobre de espírito, ninguém fica com raiva, ninguém reclama, ninguém se irrita ou xinga, mas, livre de todas essas culpas, no vigor da pobreza evangélica, isto é, da experiência da filiação divina, começa a colaborar na construção do reino de Deus que está no meio de nós, também, e principalmente, onde vige o joio e a vileza da maldade humana. Cristo foi mais longe! Sem jamais ter cometido qualquer pecado, fez-se pecador e morreu por isso.
6. A César o que é de César e a Deus o que é de Deus
Francisco, depois de recordar que, segundo o Mestre, bem aventurados são os pobres de espírito, apresenta, logo em seguida, o caminho que se deve seguir para alcançar essa bem aventurança: dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Com esse dito Jesus está apontando para dois caminhos, limpos quando mantidos em separado e espúrios quando misturados. Não se trata de separar fé, Deus e prática religiosa, mas de dizer que há coisas que pertencem a César e outras a Deus; que não se pode corrompê-los usando um em benefício do outro. Assim, corrompe-se a política quando usada para promover Deus e corrompe-se Deus quando usado para promover a política. César havia-se corrompido, usurpando o nome de Deus e fazendo-se de Sumo Sacerdote. Esquecia que adoração só se presta a Deus e que o homem e todas as coisas pertencem somente a Ele, ficando a ele, o imperador, apenas sua administração; esquecia que os impostos são para bem servir as necessidades do povo e não para proveito próprio e de uma pequena elite.
Estamos diante de dois modos, caminhos ou mentalidades, completamente antagônicos: o de César ou do mundo e o de Deus. O primeiro caracteriza-se, principalmente, pelo oposto ao caminho da pobreza de espírito, isto é, pelo modo de ser no qual impera a soberba do homem com seu saber, seu poder, seu querer e fazer. Mas, como este modo de ser sempre se mostra imperfeito, finito e limitado, o ambiente, o mundo que dele nasce e floresce, vem marcado pela inquietação, irritação, perturbação, descontentamento, descambando, quase sempre, em conflitos, brigas e guerras.
Bem outro, porém, é o caminho, o modo de ser de Deus. Com aquela resposta Jesus quer que fique bem claro que sua mensagem é uma boa Nova, uma novidade inaudita dentro do velho esquema farisaico que divide os homens em bons e maus, justos e injustos; que Ele não veio para julgar e muito menos para competir ou condenar. Por isso, havia declarado a Pilatos: “Meu reino não é deste mundo”. Assim, Jesus revela que não veio para tirar do homem a liberdade e a responsabilidade de solucionar seus problemas. Veio, acima de tudo para algo bem maior e mais profundo: redimir o homem pela raiz, pelo bem querer do Pai. Isto é: o seu reino não é o do poder; é o da autoridade do não-poder. Não conhece outra potência que a do amor, da compaixão, da misericórdia, do perdão. Isso é o que redime o homem, o que desarma os corações evitando os conflitos; é o que revoga as divisões, o que reconduz à unidade originária. Sua sabedoria não é a astúcia do poder, mas a loucura da cruz. Exigir que Deus solucione os problemas humanos pelas vias do poder do mundo seria querer submetê-Lo aos nossos critérios de julgamento e maquinações. Seria querer substituir Deus e sua ação redentora pelos nossos ídolos com sua desastrosa inépcia.
Não se deixar corromper, hoje
Os fariseus argumentam com os direitos e com a imagem de César. Jesus responde com os direitos e com a imagem do Pai, a Cruz. O dito “Dar a Deus o que é de Deus”, o oposto de “dar a César o que é de César”, nada tem de obediência servil, mas convocação ao puro exercício da dignidade, da soberania, da liberdade dos filhos de Deus. Acima do homem não há nenhum outro homem, nenhuma outra autoridade ou poder, só Deus. Ele não é escravo de nada, de nenhum bem e de nenhum mal. César, isto é: todo o poder humano e seu império está sob seus pés. Pensemos nos mártires de Roma que em nenhum momento se deixaram corromper pelas ofertas dos poderosos deste mundo. Pensemos em Perpétua, em Felicidade. Mulheres frágeis, inclusive escravas, se mostraram bem mais soberanas que seus algozes imperiais! Um espetáculo que atraiu muitos ao cristianismo e enfureceu o Império Romano. Os cristãos, por isso, se tornaram o “odium generi humani” (o ódio, a vergonha do gênero humano).
No entanto, a Igreja de Roma, dos mártires corre, sempre, o risco de se deixar levar e corromper pela lógica do Império Romano... A universalidade (catolicidade) do amor pode ser afugentada pelo universalismo do poder. Então, o “romano” do catolicismo pode deixar de ser o “romano” da Igreja dos Mártires e transformar-se no “romano” do Império, do mundo com seus deuses, como o dinheiro, o prazer, a fama, o poder, etc. O aparecimento de um Francisco de Assis, de uma Teresa de Calcutá, talvez recorde aos cristãos, seduzidos pelo espírito de César, algo da liberdade dos filhos de Deus...
Vivendo assim, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, jamais romperemos os laços que nos unem às criaturas, aos irmãos e a Deus. Isto significa: ser irmão menor e servo de todas as criaturas e filho agradecido, obediente, e fiel a Deus Pai. Por isso, falando aos “dirigentes dos povos”, Francisco roga-lhes que jamais esqueçam o Senhor porque todos aqueles que O esquecem e se afastam de seus mandamentos acabam mal e serão esquecidos e abandonados por Ele. Chega a pedir-lhes que, através de um pregoeiro ou por outro sinal, todo o povo, todos os dias, rendesse louvores e graças ao Senhor Deus onipotente (CDir).
Segundo nosso Papa, a corrupção sempre tem um quê de podridão, de acidez, tanto no coração de quem a pratica como no de quem se deixa corromper. E conclui o Papa: “Quando alguma coisa começa a cheirar mal, é porque existe um coração preso sob pressão entre sua própria autossuficiência imanente e a incapacidade real de bastar a si mesmo; há um coração podre por conta da excessiva adesão a um tesouro que o aprisionou”.
Ainda, segundo o Papa, bom governante é aquele que sente sua fraqueza e a necessidade da ajuda do Outro, mais poderoso que ele; que intui que não é a última instância ou "o senhor de tudo. Enfim, quem governa deve ter a consciência da subalternidade; que existe um outro que tem mais poder que ele, o povo que lhe deu o poder e Deus” (Meditação matutina de 17 de setembro de 2017).
Para pensar e compartilhar:
1. Qual é a única exceção em que o cristão pode irritar-se diante do pecado de outrem e como entende-la?
2. Por que irritar-se com o pecado de outrem é entesourar culpa para si? O que isso significa?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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