79º Encontro - 12/11/22 - 10ª Admoes - Do castigo do corpo - 2ª parte
- Frei
- 11 de nov. de 2022
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Amigo que é inimigo e inimigo que é amigo
Francisco está falando para companheiros que, como ele, prometeram e se comprometeram trocar sua identidade pela identidade de seu Senhor e Mestre, Jesus Cristo crucificado. Nessa tarefa há o inimigo que parece amigo, mas que é inimigo e o amigo que parece inimigo, mas que, na verdade, é amigo.
Vejamos de novo o texto:
Muitos são os que, quando pecam ou recebem injúria frequentemente lançam a culpa sobre o inimigo ou sobre o próximo. Mas não é assim: porque cada um tem o inimigo em seu poder, a saber, o corpo, pelo qual peca. Por isso, feliz aquele servo (Mt 24,46) que sempre mantiver preso em seu poder tal inimigo e dele sabiamente se guardar; porque, enquanto fizer isso, nenhum outro inimigo, visível ou invisível, poderá fazer-lhe mal.
1. Na estruturação do pequeno eu o culpado é sempre o outro
Diferentemente de quase todas as demais Admoestações, aqui, Francisco parte direta e imediatamente de uma situação muito comum em nosso cotidiano: diante da experiência de nossos pecados ou de injúrias que recebemos, quase sempre disparamos as armas do nosso ego ferido contra os outros, seja para nos defender ou para agredir. Nessa estruturação, erros, fracassos, males e pecados, o culpado é sempre o outro enquanto que nos sucessos, acertos e vitórias os merecimentos são sempre nossos. É dessa estruturação que nascem os ressentimentos, as invejas, a soberba, a prepotência, o ódio, a dominação, a vingança, a guerra, etc. Por isso, diz Francisco: Muitos são os que, quando pecam ou recebem injúria, frequentemente lançam a culpa sobre o inimigo ou sobre o próximo.
Francisco fala em pecado: Muitos são os que pecam... Pecado, aqui, mais que um ato ou falta moral, está se referindo a um modo de estruturar a vida, afastado, desligado de sua origem e rompido com sua fonte; um modo de ser que, a exemplo dos fariseus acarreta o prejuízo de uma grande descomunhão consigo, com os outros e com o Pai.
Mas, onde está o princípio desse pecado, dessa desestruturação? Quem nos dá uma bela resposta é nosso Papa Francisco:
O grande risco do mundo atual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado (EG 2).
Assim, em vez de mover-se a partir da dinâmica libertadora da graça do chamado, da convocação de ir ao encontro do Mestre, fazendo-se seu discípulo; de procurar auscultar a magnânima cordialidade do seu grande e novo Eu, que vem do Pai do céu, prefere enclausurar-se cada vez mais para dentro dos estreitos, obscuros e funestos parâmetros de sua subjetividade. Vale aqui a frase do Senhor: Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder sua vida por minha causa e pelo Evangelho salva-la-á! (Mc 8,35).
Há, pois um pseudo amigo (tudo o que favorece nosso “ego”, nosso “amor-próprio”) que, na verdade, é nosso inimigo e um inimigo (tudo o que fere, maltrata e contraria nosso pequeno “eu”) que, na verdade, é nosso grande e verdadeiro amigo. Por isso, logo em seguida, Francisco acrescenta que a coisa não é assim porque cada um tem o inimigo em seu poder...
Como seria, então, conduzir-nos de modo inteligente, sábio e correto a fim de escapar das amarras e garras desse inimigo? A primeira coisa é não deixar-nos orientar ou conduzir pelo nosso pequeno eu. Se fizermos isso vamos entrar para um caminho difícil, árduo, sim, mas libertador. Aos poucos vamos descobrir que o pequeno eu, com suas medidas de saber, poder, querer e fazer, não é o tudo da nossa vida e que, na verdade, ele é falso porque está escondendo e sufocando um outro EU, maior, mais aberto, magnânimo e generoso, do qual, ele próprio, o pequeno “eu” nasce e depende; vamos perceber que esse nosso “eu”, nem sequer poderia existir sem a graça do grande “Eu”.
2. Bem-aventurados quando libertos das cadeias do nosso ego
A partir dessa descoberta, então, não apenas vamos desejar que nosso pequeno eu apanhe, seja castigado, mas, até, faremos todo o possível para que isso aconteça. Assim, tudo aquilo que antes era recebido com contrariedades e revoltas, porque visto como inimigo, agora passa a ser visto com alegria, e acolhido com gratidão como benefício e graça com o qual só nos resta colaborar. É isso que o texto mais adiante pretende assegurar quando diz: feliz aquele servo que sempre mantiver preso em seu poder tal inimigo – o corpo - e dele sabiamente se guardar (2 e 3). Essa experiência Francisco a teve através do encontro com o leproso, chegado a proclamar: “O que me era amargo, ver leprosos, se tornou doçura da alma e do corpo”.
Para nós modernos, acostumados a valorizar ao máximo o corpo e o próprio eu, esta afirmação nos escandaliza. O que leva Francisco a fazer-nos um alerta tão radical e, aparentemente, tão negativo acerca do corpo, do nosso “ego”?
Ora, segundo São Francisco, nosso pequeno eu é nosso inimigo porque, a exemplo dos anjos maus, não admite seguir o caminho, isto é, o modo de ser, o espírito traçado pelo Criador à sua criatura e abraçado por Jesus Cristo em sua encarnação: o caminho finito, pobre, desprezado e desprezível, de servo e não de senhor. E ainda, a exemplo daquelas criaturas celestes – os anjos maus - nosso pequeno eu quer bancar o herói, o super-homem enquanto que na encarnação Jesus Cristo segue o caminho inverso: o da kénosis, do esvaziamento, da servidão.
Segundo esse princípio, a espiritualidade franciscana não existe para tornar-nos mais perfeitos, mais poderosos, santos, piedosos, heróis, etc. Existe, antes, para, a exemplo de Cristo, fortalecer-nos na disposição de acolher com boa vontade a impossibilidade humana de entender a impotência divina diante de todo tipo de finitude humana, como doenças, injustiças, opressões e até do próprio pecado, bem como de todo tipo de catástrofes e calamidades naturais e a própria morte. Cristo, Deus, nada pode fazer diante da condenação e da Cruz que os homens lhes impõem, senão a acolhê-las como a graça de poder amar mais uma vez e ainda mais o próprio Pai e os homens, principalmente aqueles que o estavam condenando e crucificando.
Por isso, o mal, presente na história dos homens e da natureza, está intimamente ligado ao pecado, isto é, ao desligamento, desprezo e afastamento do homem do bem querer de Deus. Na tradição bíblica e cristã esse afastamento se expressa em “não fazer a vontade de Deus” para fazer a própria vontade. Mas, apesar de tudo isso e das aparências, o homem não escapa das mãos cuidadosas, providenciais e misericordiosas de Deus. Se é verdade que todos pecamos, negando Deus, mais verdade ainda é que o nosso mal tem agora um destino: a misericordiosa e providencial acolhida de Deus: O Reino dos céus que veio para o meio de nós, através de Jesus Cristo crucificado, fato que levou o apóstolo a proclamar: Onde abundou o pecado, superabundou a graça [1].
Assim, para um cristão, todos os acontecimentos devem ser lidos, assumidos e trabalhados a partir e de dentro do mistério da Encarnação e Crucificação de Cristo, porque só aí, mediante esse mistério, encontrará a salvação de todas as suas finitudes e limitações, inclusive, do pecado.
Esse cuidado, evidentemente, não nos dispensa de buscar e analisar as causas que dão origem e sustentam o pecado e todo tipo de males, tanto pessoais como coletivos e da própria natureza. Isso, porém, não para condenar quem quer que seja, mas para descobrir e assumir a responsabilidade que nos toca. Por isso, o foco de nossa atenção, deverá estar sempre voltado para nós mesmos para ver o mal que está e nasce de dentro de nós a fim de castigar-nos e disciplinar-nos com a dinâmica da conversão evangélica, isto é, com o vigor do toque da boa nova do chamado que liberta nosso pequeno eu da prisão de seu egocentrismo.
Não deixar o próprio eu solto, mas conduzi-lo e reconduzi-lo sempre de novo na dinâmica da cordialidade do grande Eu, que nasce da gratuidade do encontro com o mistério da vida, de Deus, que vem a nós de mil e uma forma, seja nas pessoas que nos querem bem, como nas demais que nos agridem e injuriam, seja nos acontecimentos favoráveis como nos adversos, eis o método da busca da perfeição evangélica descoberto por Francisco e exposto nessa Admoestação intitulada “Do castigo do corpo”.
Por isso, recordemos mais uma vez que castigo significa, aqui, a ação de tornar limpo, casto, puro nosso pequeno eu, nosso corpo. Em vez de castigo poder-se-ia falar também de disciplina, entendida como o vigor do discípulo que em tudo quer seguir e imitar seu mestre ou senhor. Este método consiste em manter sempre esse nosso eu, em todas as suas manifestações e transformações, sob a luz sábia e animadora da afeição originária. Por isso, Francisco, inspirado no Evangelho, exorta para cada qual ter e manter em seu poder seu inimigo, o próprio eu por meio do qual peca.
O método é muito eficaz e prático porque leva a pessoa a ser médica e mãe de si mesma. Mãe porque começa a descobrir e conhecer os meandros e as manhas até mesmo de sua “vontade”, as tentativas de escapar da verdade de si mesmo e dos outros, de esconder a agressividade na mansidão, etc.; e médica porque, conhecendo-se como ninguém, está em condições de proporcionar ao seu pequeno eu o verdadeiro e único tratamento que lhe cabe: inseri-lo cada vez mais para dentro da jovialidade e do frescor daquele seu novo Eu, nascido juntamente com a graça do encontro e do chamado. Assim, a convivência com os outros e com os acontecimentos da vida, em vez de empecilhos, desgraças e inimigos tornam-se nossos grandes amigos, auxiliares, benfeitores e mestres. E, por mais paradoxal que pareça, a exemplo do próprio Mestre, esses tornar-se-ão nossos melhores amigos e mestres como se expressa a seguir.
3. Ao discípulo, liberto de si, nenhum outro inimigo poderá fazer-lhe mal
Francisco conclui dizendo que enquanto fizer isso, nenhum outro inimigo, visível ou invisível, poderá fazer-lhe mal (vs. 5). Em outras palavras, para quem, na graça ou na desgraça, no elogio ou nas injúrias, no sucesso ou no fracasso, no acerto ou no pecado, procura colocar-se sempre no vigor do amor de quem o amou por primeiro, todas as coisas revertem para o bem, como nos ensina o apóstolo [2].
Deus, ao criar o homem criou-o igual a Ele na liberdade, no amor. Mas, nesta igualdade há uma desigualdade: a liberdade, o amor de Deus são infinitos e os do homem finitos. Assim na igualdade há desigualdade, na semelhança dessemelhança. Graças à essa semelhança dessemelhante é que temos a graciosa honra de poder participar de sua deidade e de seu poder criador a ponto de o próprio salmista proclamar que somos deuses [3]. Por isso, a melhor obra que podemos desenvolver ou criar não é em relação às demais criaturas ou aos outros, mas ao nosso próprio eu. Castigar nosso corpo significa, pois participar da obra criadora de Deus na elaboração de nossa própria pessoa. Eis o que significa ser criatura.
É nessa elaboração que vai aparecer o peso, a dor, o padecimento de toda nossa fragilidade, nossa cruz de cada dia, que precisamos carregar como jugo suave e peso leve, uma vez
É nessa elaboração que vai aparecer o peso, a dor, o padecimento de toda nossa fragilidade, nossa cruz de cada dia, que precisamos carregar como jugo suave e peso leve, uma vez que ela encerra o tesouro de nossa grandeza, de nossa glória: a grandeza e a glória de sermos participantes do poder criativo do próprio Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Entrar na dinâmica dessa vocação-missão, mantendo-nos disciplinados, limpos, puros, castiços ou “castigados” no seguimento de Jesus Cristo crucificado, eis o sentido primeiro, único e último de nossa vida.
É nesse mesmo tom que Francisco fala em sua Segunda Carta aos Fiéis: Não devemos ser “sábios” e prudentes “segundo a carne”, mas antes, sermos simples, humildes e puros. E tenhamos nossos corpos em opróbrio e desprezo, porque todos, por nossa culpa, somos míseros e pútridos, fétidos vermes, como diz o Senhor pelo profeta: “Eu sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e a abjeção da plebe”. Nunca devemos desejar sobrepor-nos aos outros, mas antes, “por causa de Deus”, devemos ser servos e súditos “de toda a humana criatura”. E todos aqueles e aquelas, enquanto assim fizerem e se perseverarem até o fim, “repousará sobre” eles “o espírito do Senhor” e “neles fará habitação e morada”. Assim serão “filhos do Pai” celeste, cujas obras fazem. E são esposos, “irmãos e mães” de Nosso Senhor Jesus Cristo. Somos esposos, quando no Espírito Santo, a alma fiel se une a Jesus Cristo. Somos irmãos, quando fazemos “a vontade do seu Pai que está no Céu”. Somos mães, quando O levamos no coração e em nosso “corpo” por amor e com consciência pura e sincera; geramo-Lo por santa “operação” que “deve luzir” em exemplo para os outros (2CFi 45-53).
E conclui Francisco: Oh, quão glorioso, santo e grande ter nos céus um Pai! Oh, quão santo, consolador, belo e admirável ter um esposo! Oh, quão santo e dileto, benfazejo, humilde, pacífico, doce e admirável e sobre todas as coisas desejável ter tal irmão e filho que “entregou sua alma por suas ovelhas” e orou ao Pai por nós dizendo: “Pai santo, conserva em teu nome os que me deste”. Pai, todos “os que me deste no mundo eram teus e Tu os deste a mim” (idem, 54-37).
Para pensar e compartilhar:
1. Por que nosso pequeno “eu”, nosso “ego”, é nosso primeiro, grande e único inimigo?
2. Em que ou como nós somos semelhantes e quase iguais a Deus?
Paz e Bem!
Fraternalmente, Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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