78º Encontro - 05/11/22 - 10ª Admoes - Do castigo do corpo - 1ª parte
- Frei
- 6 de nov. de 2022
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Do castigo do corpo
Depois de ter exortado os Irmãos à observância do mandamento maior, “amar os inimigos”, Francisco vai tratar, agora, de exortá-los a combater seu inimigo maior e número um: o próprio corpo, o amor a si mesmo, ao eu de sua própria subjetividade.
Leiamos:
Muitos são os que, quando pecam ou recebem injúria frequentemente lançam a culpa sobre o inimigo ou sobre o próximo. Mas não é assim: porque cada um tem o inimigo em seu poder, a saber, o corpo, pelo qual peca. Por isso, “feliz aquele servo” (Mt 24,46) que sempre mantiver preso em seu poder tal inimigo e dele sabiamente se guardar; porque, enquanto fizer isso, nenhum outro inimigo, visível ou invisível, poderá fazer-lhe mal.
1ª. Parte
Nosso corpo pelo corpo de Cristo
Introdução
Numa época, como a nossa, em que, tanto na família como na escola e na sociedade em geral, ainda estão muito vivas as marcas dos castigos físicos e morais; numa época em que tanto se valoriza o corpo físico-biológico, falar em castigo do corpo, certamente, não atrai muitos admiradores.
Todavia, deixando de lado exageros, abusos e práticas decadentes de um passado não muito distante, nenhum educador que se preze, mestre, pai ou mãe que, em sã consciência, pensa em dispensar absolutamente o castigo, embora, e talvez, se fale ou se use, hoje, formas bem mais amenas. Enfim, ninguém tem coragem de deixar uma criança, um filho ou um súdito que persista em seguir o caminho, os hábitos que bem entender, quando contrários à natureza ou ao bom senso. De qualquer forma o caminho humano, em todas as suas idades ou expressões, necessita da correção e correção não se faz sem castigo, isto é, sem o rigor, a dureza, as exigências de uma disciplina. Além do mais, não são poucas as pessoas que, em nome de uma beleza meramente estética, são capazes de submeter-se a grandes sacrifícios corporais como malhação, cirurgias, abstinências ou ingestão de comidas e bebidas, até certo ponto, nada agradáveis.
1. Castigar é purificar
Novamente, somos prejudicados pela pobreza de nossa língua, pois castigo, no latim “castigatio”, significa, propriamente, empenho, esforço, trabalho de limpar, purificar, tornar castiço, fortalecer. A admoestação soaria melhor, portanto, se traduzíssemos por “castigação”, isto é, trabalho de tornar casta, pura, sadia a busca do nosso humano, do nosso seguimento de Cristo. Ora, entendida dentro dessa proposta havemos de concordar com Francisco o quanto se faz necessário o castigo do nosso corpo se queremos realmente ser e manter-nos fiéis à pureza originária dessa nossa vocação maior. Por isso, o Bem aventurado Frei Egídio, depois de dizer muito cruamente que nossa carne é como o porco porque corre avidamente para a lama e se deleita em ficar nela, diz: É impossível que o homem chegue até à graça, se não lançar fora de si a carnalidade. O homem que tem um animal, mesmo que este trabalhe muito, carregando grandes fardos e, mesmo que o homem o alimente bem, ele animal não vai pelo caminho certo sem a vara da correção. Assim é com o corpo do penitente (DE 9,7-8).
Mas, por que castigar o corpo e não a alma ou o espírito?
A pergunta trai nossa compreensão de humano, entendendo-o como uma composição de duas partes: uma físico-biológica e outra espiritual. Francisco, como para todo bom medieval, quando fala em corpo está pensando num todo, que as ciências humanas de hoje costumam denominar com a palavra “ego”. Ou seja, corpo indica simplesmente o “eu” em torno do qual cada um de nós faz girar o todo de sua vida com suas lutas, aspirações, buscas, projetos, sucessos e fracassos, alegrias e tristezas, etc. E esse, para Francisco, é o único inimigo do homem. Um inimigo que não está nem longe e nem fora de nós. Por isso, quem tiver em suas mãos as rédeas, isto é, a direção desse inimigo nada e ninguém poderá prejudicá-lo. E Francisco mesmo revela como se faz isso. Primeiramente, diz ele, devemos odiar nossos corpos com seus vícios e pecados, porque, diz o Senhor no Evangelho: Todos os males, vícios e pecados provêm do coração. E logo acrescenta: Devemos amar nossos inimigos e fazer o bem aos que nos odeiam. Devemos observar os preceitos e os conselhos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Devemos também abnegar-nos a nós mesmos e pôr os nossos corpos sob o jugo da servidão e da santa obediência, assim como cada um prometeu ao Senhor (1CFi 37-40).
Os medievais, entre eles, Francisco, quando tratam do cuidado (formação, educação) do humano são sempre muito reais e concretos, imediatos e finitos. Por que? Porque assim é que somos, assim é nossa natureza. Corpo é aquilo que não permite que nos iludamos, pensando ou desejando ser infinitos e todo-poderosos. Isso o provamos todo dia e a toda hora. Depois de um dia ou semana de trabalho, por exemplo, precisamos de uma noite, de um domingo para descansar pois, do contrário, logo logo sentiremos os abalos que se abaterão sobre nosso corpo e nosso espírito. O mesmo vai acontecer se vivermos na preguiça e na ociosidade. Nesse caso os reflexos se farão sentir não apenas no corpo físico como moleza, frouxidão, obesidade, etc., mas, também no espírito, principalmente em termos de depressão, mau humor, indiferença, desânimo, etc. Corpo é pois essa realidade (verdade, identidade, modo de ser) engraçada e maravilhosa do nosso humano, a mais real, próxima e concreta que está à nossa disposição. Por isso mesmo, precisa de contínuo cuidado, impedindo que se corrompa e desmesure nem para o mais e nem para o menos, mas fique dentro de suas reais medidas e possibilidades. Consequentemente, como nos animais, se chicotear demais ficam esgotados e se de menos caem na moleza e na apatia.
São Francisco percebe que, muitas vezes, neste nosso ego ecoa uma tendência bela, importante e fundamental: aspirar a perfeição. Só que nos enganamos ao pensar que perfeição seria não ser finito, limitado, sem carências, defeitos ou pecados. Por isso, esse eu é sumamente importante, desde que cultivado ou guardado numa disciplina. Daí o título: Do castigo do corpo. Dentro dessa visão, Francisco procurou manter sempre um relacionamento muito próximo e familiar com seu corpo, chegando a brincar com ele chamando-o ora de burro ora de irmão. Por isso, também, no fim da vida, vendo que, por vezes, fora até rigoroso demais com ele humildemente pede-lhe desculpas.
Castigar o corpo significa, pois, aprender a sentir e acolher bem, com limpidez e naturalidade, alegria e gratidão esse modo de ser corporal que Deus nos deu. Depois, Francisco vai chamar esse modo de disciplinar-se de “ser menor”, “humilde” ou “vil”. Menor, humilde e vil, porém, nada tem a ver com pessimismo, algo negativo, desprezível, sem valor, muito menos com algo bonitinho, sofisticado, grã-fino; indica, ao contrário, um modo de ser, de lutar, trabalhar, terra à terra, grudado na única possibilidade que lhe é dada no momento. É desse nosso húmus, terra ou chão, que temos de tirar e fazer nossa vida como nos ensina Jesus Cristo que teve de aprender a obedecer à vontade do Pai através do sofrimento, fazendo-se o menor por excelência, vivendo sempre no aperto dos limites e finitudes do nosso humano até à morte e morte de Cruz.
2. Em nosso corpo a pérola escondida do seguimento de Cristo
Jesus fala muitas vezes desse tema, o cuidado que devemos ter de nossa vida, de nosso humano, através de parábolas como, por exemplo a da pérola preciosa, do tesouro escondido num campo para os quais tem que se vender tudo a fim de poder comprá-los. Isso porque em nosso corpo, em nosso “ego” esconde-se a pérola preciosa, o tesouro precioso que é a graça da filiação divina, ou melhor, a presença do próprio Jesus Cristo, o Filho muito amado do Pai, no qual todos somos chamados a nos transformar. É o que exclama São Pedro: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Porque, de acordo com sua extraordinária misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, por intermédio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos (1Pd 1,3).
Os cristãos da Igreja primitiva compreenderam muito bem a verdade do mistério dessa troca. Por isso iam ao encontro dos perseguidores com alegria e júbilo, pois sabiam que pela paciência em suportar as agruras e adversidades que lhes eram imputadas recebiam a graça da liberação do verdadeiro “Eu”, nascido da graça do encontro com Cristo e recolhido, ou melhor, escondido em seu corpo, em seu “ego” carnal. Mas, ao longo da história muitos outros também compreenderam a necessidade desse embate a fim de conquistar esta pérola preciosa: a filiação divina.
Santa Rosa de Lima, por exemplo, sabendo que o amor-próprio é o inimigo figadal de todos nós, contra ele dirigiu com todo vigor e sem tréguas os embates espirituais. Assim, por exemplo, diante dos inúmeros elogios que ouvia acerca de sua formosura juvenil, costumava fugir de tudo quanto pudesse ser ocasião de perder-se na ilusão das vaidades desse mundo. Dizia: “Ouvi, povos; ouvi, gentes. A mandato de Cristo, repetindo as palavras saídas de seus lábios, quero vos exortar: ‘Não podemos obter a graça, se não sofrermos aflições; cumpre acumular trabalhos sobre trabalhos, para alcançar a íntima participação da natureza divina, a glória dos filhos de Deus e a perfeita felicidade da alma’” (O Santo do Dia, Dom Servílio Conti, pág. 368).
E, mais adiante, continua a mesma jovem e santa peruana: “O mesmo aguilhão me impelia a publicar a beleza da graça divina; isto me oprimia de angústia e me fazia transpirar e ansiar. Parecia-me não poder mais conter a alma na prisão do corpo, sem que, quebradas as cadeias, livre, só e com a maior agilidade fosse pelo mundo, dizendo: ‘Quem dera que os mortais conhecessem o valor da graça divina, como é bela, nobre, preciosa; quantas riquezas esconde em si, quantos tesouros, quanto júbilo e delícia!’ Sem dúvida, então, eles empregariam todo o empenho e cuidado para encontrar penas e aflições! Iriam todos pela terra a procurar, em vez de fortunas, os embaraços, moléstias e tormentos, a fim de possuir o inestimável tesouro da graça. É esta a compra e o lucro final da paciência. Ninguém se queixaria da cruz nem dos sofrimentos que lhe adviriam, talvez, se conhecessem a balança, onde são pesados para serem distribuídos aos homens” (idem).
Enfim, não seria esse o significado da comunhão na Missa?! Quando o sacerdote nos diz “Eis o Corpo de Cristo!” respondemos: “Amém!” Em outras palavras, o rito não estaria nos dizendo: “Vejam que grande troca lhes é oferecida! Trocar seu corpo (eu) pelo Corpo (Eu) de Cristo, passando, assim, de filhos do homem, filhos de si, para filhos de Deus!?”
Para pensar e compartilhar:
1. Qual a compreensão de Francisco acerca do “castigo do corpo”?
2. Por que amar nossos inimigos e fazer o bem aos que nos odeiam nos faz bem?
Paz e Bem! Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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