76º Encontro 22/10/22 25ªAdmoesta. - Da verdadeira dileção
- Frei
- 22 de out. de 2022
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Da verdadeira dileção
Na xxv Admoestação, Francisco retoma o tema da verdadeira dileção, já abordado na Admoestação anterior. Só esse fato já demonstra a importância que ele dava a essa virtude: a maior de todas as outras virtudes (DE 3,1), segundo Frei Egídio. Por isso, também, o mesmo Frade a coloca logo depois da fé. A semelhança entre as duas Admoestações é tanta que parte da tradição franciscana as une numa só. Todavia, críticos mais balizados, como Esser e Carlo Paolazzi, em vista da razão acima apontada, as mantem em separado. As diferenças são poucas, mas significativas. Ao amar o irmão, da Admoestação XXIV, acrescenta temer e, em vez de um irmão enfermo, agora põe o caso de um irmão ausente. Vejamos o texto:
Admoestação XXV: Idem - Da verdadeira dileção
Bem-aventurado o servo, que tanto ama e teme o Irmão, quando está longe dele, como quando está com ele. E não diz atrás dele o que não pode dizer com caridade diante dele.
Introdução
Em ambas as Admoestações, a exortação de Francisco à verdadeira dileção – o máximo, o sumo da caridade-doação evangélica – pode-se sentir o perfume dos ideais cavalheirescos do jovem assisense, agora temperados, ungidos com a dileção evangélica. Vale recordar o quanto se esmerava em sua atenção e cuidado para com os doentes e fracos bem como sua lealdade, cortesia, cordialidade e franqueza para com todos. Durante sua prisão em Perusa, por exemplo, permaneceu alegre e jovial e bem dado com todos, até mesmo com um colega que ofendera os companheiros. Depois, em sua viagem para a Apúlia desfaz-se de sua armadura, cara e preciosa, para doá-la a um cavaleiro mais pobre que ele.
De fato, Francisco, embora não fosse de família nobre, sempre aspirou ardentemente viver os nobres, belos e elogiáveis ideais da cavalaria. Foi esse um dos seus propósitos mais ardentes na juventude. No começo tentou realiza-lo servindo e lutando contra os perusinos em favor de Assis, sua cidade, sua gente, sua religião. Depois, pôs-se à procura de um grande senhor a quem pudesse oferecer seus préstimos e realizar seu desejo de tornar-se um grande cavaleiro. Mas, quando teve a graça do encontro com o Crucificado, em São Damião, descobriu que aí estava o grande senhor que procurava. E então, para segui-lo e servi-lo da melhor maneira possível, despojou-se de tudo, da própria família e do mundo. E o fez com tanto desprendimento (pobreza) que pôde amar e servir o próximo e todas as criaturas com tamanha alegria, diligência e jovialidade como poucos humanos até hoje o conseguiram.
1. Amar e temer o irmão
Como na Admoestação anterior e em outras, da mesma forma, também aqui, Francisco começa com um bem aventurado. Acerca da riqueza dessa qualificação evangélica já vimos quando analisamos a Admoestação XXIV. Vem, então a novidade. Se na Admoestação anterior falava apenas em amar com dileção, agora acrescenta temer o irmão.
Na Sagrada Escritura percebem-se duas formas de temer ou dois tipos de temor: o sagrado, em relação a Deus e o moral, em relação ao homem. A qual dos dois Francisco estaria se referindo, gostaríamos nós de perguntar ou saber? Para ele, porém, a pergunta carece de sentido, pois, a partir do mistério da Encarnação o homem deixa de ser tão somente homem para ser deificado ou cristificado. Assim como não existe mais homem somente homem, pois a partir do mistério da encarnação todo homem é um em Cristo, por Cristo e com Cristo, também seus atos não são mais atos somente humanos, mas deificados, cristificados.
Por isso, a razão pela qual Francisco exorta os frades para que temam o irmão é muito simples e sagrada: é porque em toda e qualquer outra pessoa está Cristo. Por isso, todo outro deixa de ser um outro para ser um irmão, de modo que tudo o que for feito a ele é feito a Cristo (Cf. Mt 25,37-40). Dessa forma, temer o irmão é temer a Cristo, temer a Deus. Logo, um temor sagrado.
Assim, o temor ao irmão nasce da experiência de estar diante do Absoluto, do Tudo de tudo, do Todo de todos, do meu Deus e tudo (Atos 1). É a experiência de tantos homens e mulheres de Deus, como, por exemplo, Abraão que, por ordem do Senhor, não hesitou em sacrificar-lhe o próprio filho. Por isso, recebeu Dele a honrosa e confidencial confirmação: “Agora sei que temes a Deus!” (Gn 22,12) e, da tradição religiosa, o título de “o temente a Deus”. Nessa experiência, o temor se torna o princípio, a sabedoria que ordena a vida e a conduta do homem. Por isso, diz o Eclesiástico: Quem teme o Senhor estará bem até o fim e será abençoado no dia de sua morte. O princípio da sabedoria é temer o Senhor (Eclo 1,11-14). Já, o Bem aventurado Frei Egídio dizia: O temor de Deus rege e governa o homem e o faz chegar à graça do Senhor; e, se o homem a tem, o temor de Deus a conserva; se não a tem, o faz chegar a ela. Todas as criaturas racionais que caíram nunca teriam caído, se tivessem tido este dom (DE 5,3-4).
Nisso está, pois, a fundamental diferença entre o temor de Deus e o temor do homem: enquanto o primeiro nasce da graça do encontro com Deus, o segundo nasce da mera expectativa humana; enquanto o primeiro vem do alto, do céu, do eterno, o segundo vem de baixo, da terra, do humano e, por isso, destinado ao medo, à morte, ao vazio, ao nada.
Por tudo isso, Francisco é um dos poucos homens que conseguiu ver a nova dignidade do homem. De fato, poucos cristãos conseguiram compreender e assimilar tão bem e tão profundamente a mensagem evangélica acerca da nova e definitiva presença de Deus no homem, no próximo, como Francisco. Pois, para ele, pelo mistério da Encarnação o homem tornou-se filho de Deus no Filho muito amado do Pai, Jesus. Por isso, tudo o que é dito Dele deve-se dizer também e de modo semelhante do homem. Desse princípio nasce toda a nova conduta do homem com seu semelhante: deve conduzir-se, relacionar-se com ele assim como se conduz e se relaciona com seu Senhor e Criador, Jesus Cristo e seu Pai, Deus. Ou seja, para ele, Deus faz do irmão o lugar, o sinal (sacramento) privilegiado para viver aqui no mundo e participar de nossa história.
O anúncio, a Boa Nova de Jesus: Tudo o que fizestes a um desses mais pequeninos, que são meus irmãos, é a mim que o fizestes (Mt 25,40) nunca encontrou um coração tão acolhedor, tão crente, feliz, entusiasmado e dedicado como o de Francisco. Recordemos como foi expressiva essa sua experiência crística com os leprosos. Foi a partir deles que o Senhor lhe deu a graça da conversão evangélica. Por isso, não diz que foi o leproso que o converteu, mas Ele, o Senhor (Test). A presença desse mistério era tão clara e comovedora que os chamava com o carinhoso codinome de meus irmãos cristãos (CAs 64).
Estamos, portanto, diante do temor religioso, nascido da graça do encontro, do amor e não do temor como medo por estar diante da justiça, que pode nos condenar ou diante de alguma autoridade que pode nos punir ou de mim mesmo cuja consciência me oferece mil e uma razão para me recriminar. Por isso, quem trilha o caminho dessa sabedoria – o temor – aos poucos tudo e todos, principalmente o irmão, passa a ser visto como dom que o Senhor lhe dá (Test) e tratado com admiração, alegria e gratidão, fé e confiança.
Dessa mesma forma, o temor leva-me a ter e a fazer de meu irmão um senhor e um mestre: meu senhor e meu mestre, merecedor, por isso, de minha honra, respeito, reverência e obediência. Quem ama e teme seu irmão apraz fazer-lhe a vontade em tudo, menos naquilo que for contra sua alma ou Forma de Vida (RB 10; Adm 3). Por isso, diz Frei Egídio: Este temor faz obedecer humildemente e inclinar a cabeça até o chão sob o jugo da santa obediência. (DE 5). É o que podemos ver em Cristo que fez de seus discípulos, dos doentes, pobres, pecadores e até mesmo de seus carrascos e traidores seus senhores e mestres: obedeceu reverentemente a Judas, seu traidor, a Pilatos, Herodes e demais autoridades que o condenaram à morte, bem como ao Pai que o abandonou na Cruz. Quem faz o contrário, isto é, quem não teme mostra não ter nada a perder (DE 5). Por isso, costuma trilhar o caminho da impiedade, do orgulho, da soberba do amor próprio, enfim, o caminho da tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho (EG 2).
Por isso, quando se está tomado pelo vigor do dom do temor não importa nem a presença e nem a ausência do irmão porque quem os une não é o amor de suas subjetividades, mas o amor de Cristo que se empenha todo para fazer-se presente com sua dileção, tanto num como no outro. Por isso, o temor do irmão conduz para a verdadeira caridade ou dileção que se opõe terminantemente ao amor anímico.
O amor anímico ama o outro por amor a si mesmo e não porque o outro é um presente que lhe é dado por Deus e amado por Ele, como muito bem diz o Senhor no Sermão da Montanha quando insiste para que sejamos justos, pacíficos e misericordiosos por causa Dele. Na tradição cristã se costumou chamar esse segundo amor de espiritual porque é animado pelo fogo do amor divino, o Espírito Santo.
O teólogo protestante Bonhoeffer descreve com muita precisão a diferença entre esses dois tipos de caridade: O amor anímico ama a outra pessoa por amor a si mesmo; o amor espiritual ama a outra pessoa por amor a Cristo. Por essa razão, o amor anímico procura o contato imediato com o outro, não o ama em sua liberdade, mas como aquele que está preso a ele. Quer ganhar o outro, conquistá-lo por todos os meios; assedia o outro, mostra-se irresistível, dominador. O amor anímico não dá valor à verdade; relativiza-a porque nada, nem mesmo a verdade, deve perturbar a relação com a pessoa amada. O amor anímico deseja o outro, sua comunhão, seu amor, mas não lhe serve. Ao contrário, antes o deseja também quando parece estar servindo. [...] Por isso sua busca é a da auto satisfação e nada mais [1].
No fundo, o amor anímico é um ladrão, pois quer o outro, o irmão para si, para sua satisfação. Por isso, o religioso que quiser fazer jus ao ordenamento do amor e do temor com os quais Cristo ungiu os Apóstolos deve passar também ele, como aqueles, pelo processo da conversão evangélica, isto é, passar do amor anímico, assentado no vigor da natureza, da carne, da lei e das demais conveniências pessoais para o amor espiritual, a verdadeira dileção.
2. Do pecado da detração, de sua gravidade e de como evitá-lo e corrigi-lo
Na segunda e última frase, Francisco exorta os irmãos para que não apenas evitem o pecado da detração ou maledicência, mas dá-lhes também o remédio, o caminho para libertar-se dele: não dizer atrás do irmão o que não pode dizer com caridade diante dele.
A detração faz parte dos assim chamados “peados da língua” (mentira, calúnia, difamação, maledicência). Sua malícia é denegrir a fama, acima de tudo pela divulgação, sem justa causa, de um pecado, vício ou defeito, mesmo que verdadeiro, do próximo. Além do mais, a detração vem acompanhada pelo pecado da covardia, pois quase sempre atinge o irmão que está ausente ou não pode se defender. Por isso, Francisco diz que o caminho para evitar tão execrável vício é de sempre falar do irmão como se estivesse diante dele. Pois, como vimos acima, o irmão sempre nos transporta para o mundo do mistério da transcendência, do sagrado, do divino, enfim, do próprio Senhor. Ora, quem em sã consciência, ousará detrair seu Senhor, principalmente em sua própria presença?
Por isso, segundo Tomás de Celano, Francisco mostrava-se sempre muito rigoroso e intransigente com os detratores, como podemos ver nesta passagem:
Execrava os detratores com horror, mais que outra espécie de viciosos, e dizia que tinham “veneno na língua” e envenenavam os outros. Por isso, como nós mesmos vimos, evitava e repelia os maldizentes, pulgas que picam quando falam, e desviava os ouvidos para não manchá-los.
Certa vez ouviu um frade denegrindo a fama de outro. Virou-se para Frei Pedro Cattani, seu Vigário, e proferiu este terrível juízo: “A Ordem corre grande perigo, se não neutralizar os difamadores. Bem depressa ‘o perfume suavíssimo de muitos começará a cheirar mal se não forem fechadas as bocas’ fétidas dessa gente. Levanta-te, levanta-te, examina tudo com diligência e, se descobrires que o frade acusado é inocente, inflige uma correção tão dura no acusador que os outros nunca mais vão se esquecer. Se tu mesmo não o puderes punir, entrega-o nas mãos do atleta Florentino!” (Chamava de lutador o Frei João de Florença, homem de ‘grande estatura’ e muito forte). “Quero que tenhas o maior cuidado, tu e todos os Ministros, para que essa peste não se alastre”.
Às vezes, achava que devia ser espoliado da túnica quem tivesse espoliado seu Irmão da glória da fama e que não poderia ‘elevar os olhos’ para Deus enquanto não devolvesse o que tinha tirado. Foi por isso que os frades daquele tempo abominaram esse vício de maneira especial, e estabeleceram firmemente que haveriam de evitar, com todo cuidado, qualquer coisa que diminuísse a honra dos outros ou que soasse a desprezo. Na verdade, isso é correto e ótimo! Que é o detrator senão o fel dos homens, o fermento da maldade, a desonra do mundo? Que é o falador senão o escândalo da Ordem, o veneno do claustro, a desagregação da unidade? (2C 182).
Ainda, segundo o mesmo companheiro de Francisco, detrair o irmão é ofender a Deus e por isso, digno de morte (DE 5,8). Eia a razão porque devemos temer sempre! (DE 5,20)
Da dileção, hoje
Nunca, como hoje, a Igreja tem consciência da urgência do testemunho da dimensão universal do amor, da dileção de Jesus Cristo, isto é, de seu amor aos inimigos. Por isso, o Papa Francisco, depois de, por diversas vezes, evocar a memória de São Francisco de Assis e de propô-lo como modelo para o homem de hoje e, depois de, na sua Exortação apostólica Fratelli Tutti, falar da necessidade de pensar e gerar um mundo aberto, escreve:
O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de si mesmo» aos outros. E não chega a reconhecer completamente sua própria verdade, senão no encontro com os outros: «Só comungo realmente comigo mesmo, na medida em que comungo com o outro (FT 87).
E logo em seguida, continua o Papa:
A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós «uma espécie de lei de “êxtase”: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser». Por isso, «o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar (88).
Por isso, todos os dias a Igreja faz o memorial da origem desse novo ordenamento para a Humanidade inteira, para o mundo e a criação toda, através da Santa Missa. Anuncia, renova e atualiza esse novo mandamento, essa nova, primeira, maior e última vocação-missão de todos os homens e de toda a sua história. Ouçamos
Na noite em que ia ser entregue, Ele tomou o pão, deu graças e o partiu e deu a seus discípulos dizendo: ‘Tomai e comei! Isto é meu o Corpo que será entregue por vós!’ Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice com vinho, deu graças novamente e o deu a seus discípulos, dizendo: ‘Tomai e bebei! Isto é o cálice do meu sangue! O sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados! Fazei isso em memória de mim!’ Eis o mistério de fé!
Eis o mistério da Fé significa, vejam e acolham a obra da confiança, da entrega, da doação, do sacrifício, da dileção que é o próprio Deus, vivo e verdadeiro!
[1] Vida em Comunhão, Dietrich Bohoeffer, Sinodal, pg. 24
Para pensar e compartilhar:
1. Por que Francisco volta ao tema da dileção?
2. Por que ordena que, além de amar, também se tema o Irmão?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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