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74º Encontro 08/10/22 9ªAdmoestação - Da Dileção

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    Frei
  • 8 de out. de 2022
  • 11 min de leitura



Da dileção


1ª parte




Enquanto, na Admoestação anterior, Francisco exorta os Irmãos para que não sufoquem a ação do Espírito Santo, através do pecado da inveja, agora vai exortá-los a que, seguindo o mandamento maior do seu Senhor, façam o oposto,: que cada um ame também seu inimigo. Vejamos o texto.



DA DILEÇÃO


Diz o Senhor: “Amai vossos inimigos [fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam]” (Mt 5,44).


Ama, pois, de verdade seu inimigo quem não se dói pela injúria que lhe é feita, mas se abrasa pelo amor de Deus por causa do pecado de sua alma. E mostra-lhe dileção “em obras” (Cf. Tg 2,18).



1. Título


Antes de mais nada, deve-se notar que, por três vezes, no texto de suas Admoestações, Francisco toca no tema da dileção: aqui, na IX (Da dileção), na XXIV (Da verdadeira dileção) e, enfim, na XXV (idem). Por que? Certamente porque foi assim que aconteceu. Isso demonstra a importância que ele referendava ao novo mandamento do amor. Por isso, também, os colecionadores e editores desses textos, movidos pelo anseio da fidelidade, não só ao pensamento, mas também à história, os mantiveram separados. Da mesma forma, também nós vamos tratá-las em separado, uma após a outra.


O título “dileção” soa para nós um tanto estranho. É palavra de pouco uso em nossa linguagem diária, falada ou escrita. Tanto que muitos tradutores, como os da tradução portuguesa e mesmo os da tradução Vozes-FFB, não se sentiram muito à vontade para ser fiéis ao original de Francisco, que usa a palavra latina “dilectio” e não “charitas” (caridade), muito menos “amor” (amor).


Juntamente com o problema do desgaste do sentido das palavras, problema que abordaremos mais adiante, na reflexão da XIV Admoestação, nós brasileiros enfrentamos também o problema da pobreza de nossa língua, principalmente quando se trata de traduzir termos fundamentais de nossa existência ou espiritualidade cristã e franciscana. Entre esses está, justamente, a palavra latina dilectio, substantivo, e seu verbo correspondente diligere.


Acerca dessa dificuldade, transcrevemos aqui a nota 108 do nosso livro “Irmãos e Irmãs da Terceira Ordem Regular de São Francisco”, 2011, pág. 97: Deste verbo latino “diligere”, o português guardou, entre outros, o pouco usado substantivo “dileção”, no latim “dilectio” e o adjetivo, um pouco mais comum e usado, “dileto”. O grego, por sua vez, usa “agápe” ou o verbo “agapáo”, que significa o modo de amar no vigor da gratuidade da paixão a ponto de levar a pessoa à alegria de sacrificar com jovialidade a própria vida em favor da pessoa amada. Por isso, era com esse nome que os primitivos cristãos designavam a refeição sagrada que antecedia a Missa e, posteriormente, a própria Eucaristia, isto é, a bela doação da gratuidade ou, mais popularmente ainda, a oração da bela ação de graças.


Francisco, seguindo a tradição da Sagrada Escritura, em especial do Novo Testamento, sempre, quando usa o verbo diligere é para expressar o amor de Deus e amare ou amor para se referendar ao amor do homem. Ora, foi com esse verbo que Jesus se dirigiu aos Apóstolos na Última Ceia. Não ordena que apenas se amem, mas ut diligatis invicem, sicut dilexi vos, isto é, que vos ameis uns aos outros com dileção, como Eu vos amei com dileção!”


Como o português não tem um verbo próprio para o verbo latino diligere sempre se traduz e se compreende esse mandamento com o nosso conhecido e já surrado e desgastado verbo amar. Com isso corre-se o risco de perder o suco do mandato de Jesus.


Amar com dileção (“diligere”), ou seja, amar como Ele ama, significa amar com cuidado, atenção, devoção, reverência, humildade, simplicidade, no vigor da doação total de alguém que, tomado pelo vigor da graça da paixão, é capaz de dar sua vida pela pessoa amada. Trata-se, enfim, de amar sem finalidades e sem limites, sem nenhuma prepotência, discriminação ou interesse particular, coisa que só Deus é capaz de fazer, como se pode ver com toda a clareza em Jesus Cristo, Maria, Apóstolos, o próprio Francisco e tantos outros. É preciso, pois, estar atento porque nessas Admoestações Francisco está usando sempre o verbo diligere e não amare.



2. Diz o Senhor: Amai vossos inimigos


Mais uma vez, Francisco começa com um “diz o Senhor”. Essa forma de dar início à exortação aos frades é sempre de suma importância porque nos convoca para a postura de fundo do discípulo: estar atento porque o Mestre vai falar. E, não se trata de qualquer mestre, mas do meu mestre e senhor; aquele que é o meu tudo; aquele que fala com autoridade porque ele próprio, antes de ensinar, viveu e testemunhou. Ou seja, o que esse mestre viveu e praticou, agora, Ele, através dos Apóstolos, o transmite a nós seus discípulos em forma de ordenamento ou ordenação: Amai vossos inimigos... A partir de então, esse mandamento tornou-se a obra ou vocação-missão mais desafiadora da existência cristã, sua principal herança, a alma, o coração de sua nova identidade, a seiva com a qual deve animar toda a sua vida.


“Novo”, aqui, não tem o significado de renovado ou recauchutado, mas, de originário, nascivo ou nascente. Trata-se de algo inaudito, nunca visto e completamente fora de nossa imaginação e, principalmente, fora do nosso alcance. E “mandato”, por sua vez, é mais que simples mandamento, ou mera imposição semelhante a uma tarefa imposta por uma autoridade a um subalterno seu, como faz um patrão, por exemplo, em relação a seu empregado. Trata-se, antes, de uma espécie de unção que alguém, de ordem superior, confere, transmite, “impõe” a outrem de ordem inferior a fim de dignificá-lo e capacitá-lo com o vigor de sua identidade para ser o seu “vigário”, isto é, aquele que deverá, depois, fazer no lugar dele: cumprir a missão, realizar a obra que ele, o mestre e senhor realizou.


Ao ordenar seus discípulos para o mandamento do seu amor, Cristo lhes comunica, também, o vigor de sua jovialidade, do seu espírito. Consequentemente, os primeiros beneficiados são eles mesmos porque além da honra e da glória que essa ordenação lhes confere passam a ser comungantes do fogo de sua paixão (Cf. Ad. I). Por isso, a partir de então, começam a viver e a agir sempre em nome, isto é, no vigor e na autoridade daquele que os envia.


A Igreja chama esse testemunho de “querigma” e sua admirável eficácia pode ser vista nos Atos dos Apóstolos bem como nos “Atos do Bem Aventurado Francisco e dos seus Companheiros” ou I Fioretti”. Ao longo da narrativa de todos esses atos, feitos ou “fioretti” sempre brilha o protagonismo do Espírito do Senhor Crucificado-Ressuscitado que vem sendo derramado, infundido nos corações dos discípulos de outrora e de sempre. Nem o Apóstolos, nem os cristãos, nem Francisco e nem os Frades vivem ou agem sozinhos, muito menos em seu próprio nome. É sempre em e com o Espírito do seu Senhor.


Dos Apóstolos e primeiros cristãos o próprio Pedro diz que eles em vez de embriagados de vinho estavam embriagados, tomados pelo Espírito de Deus (Cf. At 2). Quanto aos outros, a tradição franciscana notou e anotou claramente que, tanto Francisco como seus companheiros, foram chamados por Deus, da cruz e para a cruz e que, por isso, ele e os seus demais Bem-aventurados primeiros companheiros eram, com razão, vistos como, e de fato eram, homens do Crucificado. Carregando a cruz no vestir e no comer, e em todos os seus atos, desejavam mais os opróbrios de Cristo do que as vaidades do mundo e as lisonjas enganosas; por isso, alegravam-se pelas injúrias e entristeciam-se pelas honras. E iam pelo mundo como peregrinos e forasteiros, nada levando consigo a não ser Cristo (Atos 4).



3. Ama, pois, de verdade seu inimigo quem não se dói pela injúria...


Na segunda frase de sua Admoestação, Francisco vai nos dizer como ou quando é que se ama de verdade o inimigo: quando não se dói pela injúria que lhe é feita...


Usualmente, quando isso acontece somos tomados pelo desânimo, pela irritação quando não pela revolta. Isso acontece porque vivemos esquecidos do vigor, do entusiasmo da unção apostólica que nos são incutidos na graça de nossa iniciação à vida cristã e franciscana, principalmente pelo Batismo, pela Profissão e ingresso na Ordem. Em vez disso, preferimos uma vida cômoda, sem provocações e desafios, sem a riqueza da graça que nos advém do confronto com os diferentes e inimigos. Ignoramos o exemplo que nos deixaram os primeiros cristãos e franciscanos. Aqueles, iam ao encontro dos inimigos como seus maiores amigos e benfeitores; esses, quando foram para a Alemanha, para a Normandia e Norte da África, sentiam-se felizes quando maltratados e injuriados como ladrões, assaltantes e corruptores da fé. Quando não se educa para ver e amar a riqueza do discipulado cristão-franciscano que nos é oferecida nessas situações adversas, a vida interior facilmente se fecha nos próprios interesses, deixando de criar espaço para os outros, muito menos para os inimigos.


Segundo Santa Clara, a causa ou origem de toda essa decadência não é outra senão o esquecimento do seu ponto de partida, ou melhor, do seu princípio: a graça do encontro com Jesus Cristo e São Franciso, encontro a partir do qual nasceu um novo “Eu”. Esquecidos desse dom maior, geralmente e ilusoriamente, corremos atrás do nosso pequeno e falso “eu”. Esquecemos que a Boa Nova consiste, justamente, no vigor da alegria pela libertação de todas essas amarras que nos impedem de ver e de assumir o grande EU que vem da imensidão infinita do céu, da bondade insondável de um Pai que a todos e a tudo vê e contempla com os olhos da compaixão e da misericórdia, fazendo cair a chuva benéfica, tanto sobre justos como injustos, os raios fecundos e fecundantes do sol sobre bons e maus.


Pois bem, diz Francisco, esse grande EU do nosso Deus e Pai está a nossa disposição. Essa é a Boa Nova que Cristo veio nos trazer e oferecer de graça, de mão beijada a todos os homens de boa vontade; é o Reino de Deus que está no meio de nós, isto é, no íntimo mais profundo do nosso pequeno eu; a graça de ser como Deus. Por isso, diz Francisco, deveríamos amar muito nossos inimigos pelos ódios, pelas perseguições, calúnias e injúrias que nos infligem porque estão nos oferecendo de graça a graça de acolher e cultivar, sempre de novo, nosso verdadeiro e amável EU (Cfr. FRNB 1). É a resposta ao mandamento do Senhor que nos ordena a amar a nós mesmos. Por isso, todas essas adversidades ou adversários que costumamos chamar de inimigos, em verdade, são nossos maiores e melhores amigos. Inimigo mesmo temos um só: nosso “euzinho”, pequenino, frágil, insignificante, pobre e mortal.



4. Mas, se abrasa pelo amor de Deus por causa do pecado de sua alma


Continuando sua exortação diz Francisco: Mas se abrasa pelo amor de Deus por causa do pecado de sua alma.


Quando contemplamos os homens de Deus, como os Apóstolos, São Francisco, Santa Clara, vemos que todos eles estão tomados por um fogo abrasador que, a exemplo de Moisés, queima sem se consumir, clareia suas mentes, orienta suas decisões e seus passos fazendo-os transpor os maiores empecilhos de sua vocação e missão. O primeiro dentre todos é o próprio Senhor que chamou seu traidor Judas de “amigo”. E, longe de nós pensar que Cristo estivesse fazendo cena. Judas, juntamente com os demônios, que no deserto tentaram demover Jesus do caminho da finitude humana e da cruz, foi quem realmente O ajudou a percorrer, jubiloso, seu caminho nos braços da misteriosa vontade do Pai e não na vontade de seu próprio eu.


Amar o inimigo, fazendo dele um amigo e benfeitor, significa, também, sentir e sofrer com ele, e por ele, porque está prejudicando seu verdadeiro Eu e amargurando uma existência infeliz e desventurada. Daí o grito mais de dor e sofrimento, do que de condenação, de nosso Senhor em referência a Judas: mas ai daquele por quem o Filho do homem é traído! Melhor seria para esse homem se não tivesse nascido (Mt 26,24).


Amar na dinâmica da magnanimidade do Pai do Céu nos leva, pois a estar sempre atentos para perceber e captar o grande Eu de todos os homens, que é o Eu de seu Filho muito amado, Jesus Cristo, o Homem de todos os homens, pulsante em cada pessoa ou acontecimento que nos cerca ou envolve, principalmente nos adversos. Por isso, com o tempo, as injúrias ou maldades que nos são imputadas, para nós, cristãos, são vistas e sentidas como graças e bênçãos enquanto que para os outros que no-las infligem são um mal uma vez que sufocam seu grande Eu em vista do pequenino eu, frágil e mortal. E, por isso, por serem nossos irmãos, sofremos por eles e com eles na paciência e na esperança de que a graça do grande Eu, que é Cristo, um dia, os comova e converta.


Essa visão grande e acolhedora do universo, das pessoas e dos acontecimentos é o que Cristo chama de dileção ou caridade divina, a seiva, o coração da vida cristã.


O discipulado cristão e franciscano, portanto, não tem outro trabalho senão esse de, aos poucos, ir convertendo nosso pequeno eu no grande Eu do Pai do Céu, inaugurado por Cristo no coração de cada pessoa. Eis o sentido de todas as dificuldades que nos sobrevêm a toda hora, o carregar a nossa cruz todos os dias.


Segundo o espírito da dileção evangélica, portanto, a compaixão maior não é com o injuriado e sim com o injuriador. Isso porque quando alguém cede à tentação da injúria está se privando da grande Caridade que é Deus. No vigor dessa virtude, a maior de todas, como proclama São Paulo, tudo pertence a Deus, tanto o injuriado como o que comete a injúria. Mas, o maior e único prejudicado é o injuriador porque está se privando de vir a ser cada vez mais uma imagem viva de Deus. Por isso, amar o inimigo significa não ter mais inimigo porque o inimigo virou, realmente, amigo que nos ajuda a esquecer do pequeno eu a fim de transformá-lo no grande EU, nascido da gratuidade do chamado e do encontro com o EU de Jesus Cristo e de Francisco. No dicionário do coração do Pai do Céu não se encontra a palavra “inimigo”. Tão somente “filho muito querido”.



Da Dileção, hoje


Para sentir mais de perto a radicalidade do novo mandamento do amor de Jesus nada melhor do que ouvir alguém do nosso tempo, no caso, o pastor luterano alemão, Dietrich Bonhoeffer, que o testemunhou pelo martírio, causado pelos nazistas. Depois de citar o salmista (Sl 133,1): Oh! Como é bom e agradável os irmãos viverem juntos! Escreve:


Não é natural para o cristão poder viver entre cristãos. Jesus Cristo viveu em meio a seus adversários. Por fim todos os discípulos o abandonaram. Na cruz encontrou-se em solidão total, cercado de malfeitores e zombadores. Para isso viera: para trazer a paz de Deus aos inimigos. Assim também o lugar do crente não é a vida monacal, mas em meio aos inimigos. É ali que tem sua missão, sua tarefa: “O Reino tem que ser estabelecido em meio aos inimigos. Quem não quiser sujeitar-se a isso, esse não pode ter parte no Reino de Cristo, mas quer viver cercado de amigos, viver num mar de rosas, na companhia de gente piedosa, jamais de maus. Ó blasfemadores de Cristo! Se Cristo tivesse procedido como vós quem se salvaria (Vida em Comunhão, Dietrich Bonhoeffer, Sinodal, 1986, pág. 7).


E nosso Papa Francisco falando da ilusão e do desfortúnio dessa busca do pseudo amor da auto satisfação, assim se expressa: O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo crucificado (EG 2).



Para pensar e compartilhar:


1. Por que o nosso verbo amar ou o substantivo amor, não expressam a riqueza do maior mandamento de Jesus?

2. Por que Jesus chama esse seu mandamento de “novo”?



Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes





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