64º Encontro 30/7/22 6ª Admoestação Da imitação do Senhor - Do "fazer obra" - Algumas considerações
- Frei
- 31 de jul. de 2022
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Da Imitação do Senhor
Do "fazer obra" - Algumas considerações
Nossa reflexão de hoje vai retomar a Admoestação VI, mas, desta vez, para repensar “A imitação do Senhor” como trabalho artesanal, como “fazer obra”. Vejamos mais uma vez o texto.
[6. Da imitação do Senhor]
Atendamos, Irmãos, o Bom Pastor, que para salvar as suas ovelhas suportou a Paixão da cruz. As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e em tudo o mais; e disso receberam do Senhor a vida sempiterna. Por isso, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham feito obras e nós queiramos receber glória e honra apenas por citá-las.
No texto nós vemos um contraste muito claro. Há, por um lado, o fazer obra e o receber a vida sempiterna e, por outro lado, o recitar as obras alheias e receber glória e honra por isso. Qual a diferença entre uma atitude e outra? Talvez possamos dizer: o fazer obra é real, verdadeiro, o recitar os feitos de outros é irreal, falso; a vida sempiterna é real, o receber glória e honra por recitar os feitos alheios é ilusório, uma vaidade. “Fazer obra” tem, assim, o sentido de um engajamento real, corpo a corpo; um insistir na vida concreta, real.
Esta Admoestação VI retoma, assim, de certo modo, o mesmo teor da Admoestação V, que faz contrastar a via da soberba, isto é, da inflação, do falso crescimento numa identidade humana apenas aparente, e a via da humildade, isto é, da verdade da vida real, que São Francisco chama de “se gloriar na cruz do Senhor”. Aqui, porém, a via da soberba aparece como a via da recitação das obras dos outros, enquanto a via da humildade, ou seja, da pobreza do espírito, aparece como:
- o engajamento real do fazer obras, a saber, da disposição persistente e permanente de Cristo que, como o bom pastor, sustentou a paixão da cruz para salvar a vida das suas ovelhas;
- a disposição persistente e permanente dos discípulos, aqui chamados de “ovelhas do Senhor”, que o seguiram na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e em outras vicissitudes desta espécie.
Enfim, o “fazer obra” aparece, sobretudo, como a paciência do amor, como capacidade de sofrer, de suportar, sustentar o dom, o peso da vida. Tendo em mente isso, tentemos nos concentrar nisso: como é o “fazer obra” quando se trata de seguimento/imitação de Cristo?
1. O “fazer obra” por excelência: fazer-se filho no Filho
O medieval, e também Francisco, entendia o viver do homem como um trabalho artesanal, uma arte. “Arte” diz, aqui, um saber que é um poder criar, um poder “fazer obra”. De fato, o ser humano é, essencialmente, determinado pelo modo de ser da arte. No entanto, “arte” aqui não tem o sentido de artístico, muito menos ainda de estético, mas do modo de conduzir-me e de responder à graça de uma possibilidade de ser que a vida me oferece. Nesse sentido a existência humana é sempre im-perfeita e o homem um ser criativo, criador. No “Grande Sertão: Veredas”, Riobaldo diz: “Tempo é a vida da morte: imperfeição”. Por isso, o ser humano precisa se engajar, sempre de novo, na ação inútil e necessária de perfazer-se. Este engajamento, esta insistência na liberdade real, que só acontece como libertação do si-mesmo pela e para a verdade da vida, é transcendência. Viver é um transcender-se, sempre novo e de novo.
Esse modo de compreender o viver do humano como trabalho artesanal, isto é, como “fazer obra” encontra sua expressão maior e melhor, isto é, exemplar e perfeita, na dinâmica da criação ou do Criador. Se há alguém que é mestre por excelência na arte do bem fazer, no “fazer obra” é Deus: “E Deus viu tudo quanto havia feito e achou que tudo estava muito bem” (Gn 1, 31). Deus é o sumo bem, sumamente difusivo de sua bondade. Ele é o Amor primeiro (1Jo 4, 19), a Doação originária que tudo fez com o cuidado de Pai. Suas obras são crias de seu amor, do seu vigor e da sua ternura. Cada uma, em sua singularidade, é uma concreção de sua Linguagem, Pensamento e Desejo que vèm à fala uma única vez.
O sentido cristão de criação só se desvela como filiação. Nós, todas as criaturas, somos filhos e filhas de Deus. Somos obra do Amor primeiro. Nosso ser, nosso existir, é concreção desse Amor primeiro. Já o simples fato de ser proclama o ardente e terno amor do Deus de Jesus Cristo, do Deus a quem Jesus Cristo chama de “Pai”. O ato criador de Deus, porém, continua hoje, aqui e agora. O mesmo ato criador de Deus está vigorando agora em todo o universo, em cada criatura. É do amor abissal de Deus que todo o universo está emergindo e se sustentando no ser, aqui e agora, graças a este seu ato criador. Não se trata de outro ato criador, mas do mesmo, narrado no livro do Gênesis. Trata-se do ato criador inaugural, que se renova a cada momento com novo frescor e com novo ardor divino. E este amor se dirige a cada uma das criaturas, na sua singularidade, a cada vez, em cada nova vicissitude do seu existir. A existência artesanal é a dádiva e a tarefa de o ser humano se engajar na imitação desse bem-fazer de Deus. Em tudo o que o homem faz ou deixa de fazer, ele é convidado a deixar aparecer o modo de ser do bem-fazer de Deus, do seu bem-querer, do seu Amor Primeiro, Amor Misericordioso, isto é, cheio de ternura e de cuidado pela fragilidade da vida.
De Jesus Cristo nós lemos no Evangelho: “fez bem todas as coisas” (Mc 7, 37). É por isso que São Francisco, nesta Admoestação VI, convida-nos a prestar atenção em Jesus Cristo. Ele é o mestre, o Fliho sem igual do bem-fazer do Pai. O seu fazer e o fazer do Pai são um só. Traz a mesma habilidade e fecundidade do Espírito. Seguir a Jesus Cristo é deixar-se conduzir sob o toque do sentido de ser deste bem-fazer. É, em todo o nosso fazer e deixar de fazer, estar sob o toque da inspiração de Jesus Cristo, isto é, sob o toque do Sopro do Espírito que nele vigora; sob o toque da criatividade inesgotável e abissal do Pai. É por isso que São Francisco fala de “imitação do Senhor”.
Na dinâmica da existência artesanal, assumida como discipulado de Jesus Cristo, o seguimento aparece como imitação. O seguimento é uma busca positiva de operativa e real identificação com Jesus Cristo, a Suma Obra do Pai, o Filho primogênito de toda a criação, à imagem do qual fomos criados segundo o corpo, como nos lembrava a Admoestação V. Imitar é investir todas as forças de nosso corpo e de nossa alma nesta busca. A imitação não é um “como se fosse”. A imitação é um engajamento corpo a corpo de real identificação com o amado. Se no conhecimento aquilo que conhecemos se assimila a nós, isto é, se torna presente em nós, a nosso modo, no amor acontece o contrário: nós nos tornamos semelhantes ao que amamos, nós nos identificamos como o que é ou com quem é amado, numa identificação real, operativa. Sim, no amor nós nos tornamos iguais ao que ou a quem é amado, sem, no entanto, perder nossa singularidade, nossa diferença. Pelo contrário, é aí que nossa singularidade, nossa diferença, se configura em sua originalidade e originariedade.
2. Um em muitos ou muitos nUm
Quando olhamos a história do povo cristão, há uma multidão de indivíduos que se engajaram de corpo e alma nesta identificação real com Jesus Cristo no amor. Notemos como nisso, quanto mais eles se engajaram realmente, eles não perderam, antes encontraram sua originalidade e originariedade. Cada um veio a ser aquele pensamento único que ele era em Deus, quando era gestado por Deus na eternidade. É que a imitação, na existência artesanal e no amor, nunca é mera repetição exterior de um padrão, mas é, sim, o único caminho para alcançar a originalidade e a originariedade criativa, criadora. Em se engajando por fazer bem o mesmo que o Mestre fez vem à tona uma imensa variedade de concreções. Não acontece despersonalização, pelo contrário, é aí que se pessoaliza a pessoa. Por isso, São Francisco gostava de comparar sua Ordem como uma selva onde cresce, em perfeita harmonia, toda espécie de árvores e animais (Cfr. VE 30).
Assim, o “fazer obra” aparece como florescimento, atos, feitos, frutos. Lembremos os “Atos dos Apóstolos” ou os “Atos do Bem aventurado Francisco e dos seus Companheiros, os famosos I Fioretti. A essência dessa ação enquanto “fazer obra” ou operação, chamamos de pro-dução.
Produção, em seu sentido mais original, porém, significa ação de trazer para frente ou para fora uma realidade que se faz presente, mas de modo velado, oculto e que nós costumamos chamar de toque, graça, inspiração. Assim, o “fazer obra” significa deixar-se conduzir por uma dimensão anterior e maior do que a nós, um sopro vital que chamamos, também, de vida; significa pôr-se a serviço de corpo e alma, para que essa possibilidade de ser nasça, cresça e floresça. Esse sentido original se distingue radicalmente do sentido que hoje se costuma dar à produção. Hoje a produção foi reduzida ou abaixada a um mero agenciamento maquinal, sem o cuidado com o cuidado do amor, ao ponto de o próprio homem ter virado peça de uma grande máquina.
A comunhão dos santos é a prova cabal do contrário, isto é, do fazer sem espírito da produção maquinal. O Cristo amado e imitado pelos Apóstolos é bem diferente na pessoa e na figura de um Pedro, de um Paulo, de um João, de um Tiago, de uma Madalena, de uma Marta, de um Francisco, de uma Clara de Assis, etc. Em todos estes está vigorando uma mesma e única forma, isto é, uma mesma e única doação de ser, criadora, que se encarna no corpo a corpo da existência de cada um, a cada vez, de modo inteiramente singular. E, no entanto, individuação não se dá, aqui, como individualismo; singularização não é, aqui, particularismo. Pelo contrário, quanto mais se individua, quanto mais se singulariza, o seguidor de Cristo se torna universal, católico, isto é, participante de uma dádiva e de uma tarefa comum, que diz respeito a todo o ser humano, a dádiva e a tarefa de ser filho no Filho. Todos estão sob o toque de uma mesma inspiração. Seguir esta inspiração, o toque, a percussão e repercussão da nova possibilidade de ser, original e originária, que Jesus Cristo deixou irromper na história como Boa Nova, é imitá-lo. Por ser a cada vez, em cada um, original e originária, esta possibilitação de ser tem inesgotável capacidade de pessoalização (ser pessoa) do ser humano. O seguimento de Jesus Cristo, sua imitação, é pessoal, sem ser individualista, particularista; é universal, sem ser generalista; é comunitária, social, sem ser coletivista e massificada.
Assim, a imitação de Cristo, entendida na dinâmica do discipulado, que é seguimento, não tira, antes dá à existência humana o seu ser próprio, inalienável. Nela acontece uma extrema individuação, que é, ao mesmo tempo, singularização e universalização. Singularização, pois cada pessoa, neste seguimento, aparece como obra única, sim, como Filho Único do Pai. Cada pessoa se torna, como Jesus Cristo, como o Filho e no Filho, o Unigênito, o Único do Pai. É universalização, porque em cada pessoa em que esta realização acontece se abre a medida universal, comum, que não exclui, antes inclui, todas as diferenças humanas, sem qualquer discriminação que seja. Nesta dinâmica, o “cultivo” da pessoalidade (ser pessoa) nada tem a ver com o “culto” da personalidade. Ao contrário, o culto da personalidade só acontece quando ou porque se esquece e se defasa o cultivo da pessoalidade.
A imitação de Cristo enquanto conformidade com Cristo nada tem a ver com padronização de comportamentos. Nada tem a ver com encaixe numa fôrma. Tem tudo a ver com formação em sentido essencial. No seguimento cristão, crístico, Cristo é formado em cada discípulo e cada discípulo é formado em Cristo. Formação é, aqui, porém, essencialização. É recepção de uma possibilidade de ser original e originária. É acolhimento do vigor de um poder-ser, que, a cada vez, emerge de modo novo, do abismo criador abissal do coração do Pai.
São Francisco, na Admoestação VI, acena para isso: os santos que seguiram Jesus Cristo, as ovelhas que seguiram o bom Pastor, sob o toque do amor e da gratidão, no corpo a corpo do enfrentamento de apertos, premências, necessidades, tais como tribulação e perseguição, vergonha e fome, enfermidade e tentação, mostraram na dinâmica do “fazer obra” como estavam em forma, isto é, no pique do vigor do ser filho no Filho e como o Filho. A existência dos santos nasceu, cresceu, se consumou como maturação de uma identificação real, fática, corporal, com Cristo – identificação entoada pelo toque, pela percussão e repercussão do encontro, do amor. Em tudo o que fizeram ou deixaram de fazer e sofreram, eles estavam tinindo nesta repercussão. Eles insistiram e persistiram nesta busca até o extremo. Deram tudo de si nisso...
Então, conclui São Francisco, vamos nos engajar nesta mesma busca, com todas as forças de nosso corpo e de nossa alma, nas vicissitudes de cada dia. Isto é o que a Admoestação V chama de “carregar cotidianamente a santa cruz do Nosso Senhor Jesus Cristo”. Que nossa glória e nossa honra consistam em realmente insistir e persistir nesta busca, na dinâmica do “fazer obra”, e não no recitar o que os santos fizeram. Que nosso seguimento seja real, corpo a corpo. Que não nos iludamos com nossas recitações sobre o ser cristão. A Admoestação VI é uma advertência contra a ilusão do ser cristão. Ela nos recorda que a identidade, a realidade, a verdade do ser cristão é vida real, corpo a corpo, terra a terra. Ela é, ao mesmo tempo, um convite a mergulhar, de corpo e alma, com todo o coração no fazer obra do engajamento desta busca. Mais que nos censurar, ela quer nos animar, incitar, convidar para que olhemos, contemplemos e admiremos o “Bom Pastor” e suas “ovelhas”. Entoada nesta admiração, a Admoestação VI é, pois, mais um convite para nossa entrega amorosa ao poder-ser do ser-cristão, do ser filho único no Filho Único.
Para pensar e compartilhar:
1. O que significa que o seguimento ou imitação de Cristo segue a dinâmica da arte?
2. Por que Francisco, ao falar da imitação de Cristo, gosta de mencionar suas ovelhas, os santos?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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