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60º Encontro 2/7/22 - 5ª Admoestação A excelência da liberdade e da finitude humana

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 2 de jul. de 2022
  • 10 min de leitura

Parte 3 (I)


A excelência da liberdade e da finitude humana



Em cada admoestação de São Francisco há uma ideia central. A ideia não é propriamente uma representação conceitual. A ideia é um vislumbre, uma iluminação originária, que nos abre toda uma paisagem da vida humana. A ideia ilumina o mundo humano, isto é, o todo de tudo o que está a ser, em seu aparecimento. Ler as Admoestações é acolher a intuição da ideia e, assim, recolher o que está sendo dito no escrito à luz dessa intuição.


Em cada admoestação está em vigor a ideia fundamental do seguimento de Jesus Cristo na pobreza do espírito. Em Cristo intuímos o Deus-amor. Jesus Cristo é o Deus-Amor revelado em nosso corpo, em nossa carne. Seu nascimento, sua vida terrena em meio aos homens de sua terra e de seu tempo, sua morte de cruz e o memorial permanente da eucaristia, que ele concedeu a seus discípulos na noite em que foi entregue, revelam o mistério desse Deus amor-misericórdia. Todas as Admoestações dizem o que dizem à luz dessa única e mesma ideia. Mas o mesmo não é igual, monótono. Ele se dá como uma variação rica de diferenças, de concreções. Na Admoestação I a ideia do seguimento de Jesus Cristo se propôs na variação do tema “corpo do Senhor”. Nas Admoestações II, III e IV, na variação do tema “obediência”. Na Admoestação sobre a qual nós meditamos agora, a V, na variação do tema “excelência humana”. A Admoestação V é uma verdadeira iluminação do “humanismo franciscano”.



I. SER CRIADO À IMAGEM DO FILHO SEGUNDO O CORPO E À IMAGEM DO PAI SEGUNDO O ESPÍRITO, A EXCELÊNCIA HUMANA


Essa admoestação convida o homem, que cada um de nós é, a atender à sua própria excelência. Atender quer dizer tender para, orientar-se para, devotar-se a, prestando atenção a, cuidando de tomar em consideração, de pensar algo que nos solicita, que nos apela e nos interpela, que nos chama em causa. Cabe ao ser humano atender à excelência de seu próprio ser. Isto significa: o ser humano carece de, sempre de novo e de modo novo, não perder de vista, de recordar, sua excelência e de acolhê-la e assumi-la para si, respondendo ao seu apelo, correspondendo à sua interpelação. É preciso ter em consideração a excelência, a grandeza, a dignidade de ser um ser humano. É preciso que, pensando, considerando, nós cuidemos desta excelência, grandeza, dignidade do humano em cada um dos e em todos os seres humanos.



1. O homem: um ser excelso


Entretanto, em que consiste a excelência humana, segundo São Francisco? Excelência significa o caráter de ser daquilo que excele, isto é, eleva-se sobremaneira, excede, ultrapassa, sobressai. O ser humano é, no todo de tudo aquilo que é, um ser distinto, notável, eminente, excelso. Mas, qual a prerrogativa que lhe dá esta distinção? São Francisco vê esta prerrogativa no modo como o ser humano foi posto no todo de toda a criação, de todas as criaturas e de toda a história. O ser humano tem uma posição notável no universo. Por que? O seráfico pai responde: porque o Senhor Deus criou e formou o ser humano à imagem de seu dileto Filho segundo o corpo e à semelhança sua segundo o espírito. O Deus-amor, o Deus-misericórdia, criou o ser humano, isto é, do nada deu-lhe o ser, o existir, e o formou, isto é, determinou-lhe a essência, com muito cuidado.


Este ato criador e formador de Deus, sendo único, se renova sempre de novo, em cada novo ser humano, que é gerado e que vem à luz, aparecendo e comparecendo no mundo, junto das coisas, na convivência com os outros. Cada indivíduo humano é singular: é uma palavra da Vida, que é Deus, que nunca se repete. Deus cria cada ser humano nesta singularidade, distinto de todos os demais, mas, ao mesmo tempo, realizando a mesma forma ou essência, o mesmo modo de ser, e todos são iguais neste ser, na sua grandeza, dignidade, excelência. Por isso, a individuação de cada indivíduo humano é dádiva e tarefa de uma singularização, mas, ao mesmo tempo, de uma universalização, isto é, de, em abertura para e em comunhão com os outros seres humanos, assumir o mesmo ser como dádiva e como tarefa de responsabilização. Cada ser humano carece de acolher o dom de ser ser humano e de se responsabilizar por este dom, no cuidado dele, em comunhão com os outros seres humanos. A humanização do ser humano depende, a cada vez, de como ele assume sua criaturalidade: o seu não-ser fundamento do ser de si mesmo, o seu ter recebido o ser como uma dádiva e como uma tarefa de cuidado e de responsabilização.


Ser criatura é um traço fundamental do nosso ser. Criaturalidade não quer dizer apenas a característica do que foi criado um dia. Criaturalidade quer dizer o traço, o caráter de ser, do que permanece sendo sempre um nada a partir de si mesmo, e sendo o que essencialmente é, o que essencialmente pode ser, a partir de outro. Este outro é o doador de seu ser, o criador, o “Senhor Deus”, na linguagem de São Francisco. Os medievais diriam que o homem é um ens creatum, um ente criado, uma criatura.


Todavia, a criação não é um fato entre outros fatos. Criação, para Francisco é um atuar, um operar permanente de Deus no ser dos seres. Este ser dos seres criados é contingente, isto é, não necessário; se está sendo, poderia não ter sido. O ser lhes é dado pela vontade livre do Criador, pela sua bondade superabundante, absolutamente gratuita. Se são, não é por uma necessidade que as criaturas são. É por gratuidade da originária liberdade divina. O Criador é transcendente e absoluto. É livre em sua absoluteza. É absoluto em sua liberdade. Por ser criatura do Absoluto, o mundo criado também traz o caráter de absoluteza, embora de modo dependente e derivado. O finito, isto é, o que não é a partir de si, mas a partir de outro, que recebe o poder ser e o ser deste outro, é, enquanto obra, fruto, cria do Absoluto, portador de um sentido absoluto. Por isso, é sagrado, portador da força do sagrado, do vigor Daquele que salva. O caráter de sacralidade e de salvação do criado, porém, precisa ser obtido e mantido pelas criaturas que são livres, isto é, pelos anjos e pelos homens. A santificação do criado é, pois, uma dádiva e uma tarefa, confiada à responsabilidade dos seres livres, dos homens e dos anjos. É a partir destes que acontece a história, como acontecimento e história da salvação.


O ser-criado, o ser criatura, perfaz nossa essência humana. O ser-criado implica contingência. Somos, quando poderíamos não ter sido. O ser, isto é, o fato de sermos, de existirmos, é um dom. É dádiva da gratuidade divina. E esta dádiva é confiada ao nosso cuidado. Ela se torna tarefa para nós, sempre de novo, a cada dia. O Deus-amor está na raiz de nosso ser, pois ser é dom, dádiva, presente, mercê de Deus a nós. Ser criatura é estar referido ao doador, ao Deus-Amor, que não somente um dia nos doou o ser, mas que nos mantém no ser todos os dias. Diz o salmista: “se lhe retiras o alento, voltam ao pó” (Sl 104,29) Por outro lado, o ser é, para nós, tarefa e responsabilização.



2. A melhor gratidão, colaborar com o Criador


Como responder e corresponder, a partir de nossa liberdade, a este dom? Qual a atitude que nós, seres humanos, precisamos ter, então, face a esta dádiva? A atitude fundamental em relação ao ser criado que nos perfaz é, para São Francisco, a da gratidão. Por isso, todos os seus Escritos, até mesmo as Regras, principalmente a “Não Bulada”, não passam de um convite a uma grande louvação ao “altíssimo, onipotente e bom Senhor!” O ser humano colabora na salvação do criado quando vive a finitude da criaturalidade como finitude agraciada e agradecida.


Junto com a atitude da gratidão, vem a do louvor. Na Regra Não-bulada (c. 23), São Francisco diz: “Onipotente, santíssimo, altíssimo e Sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor rei do Céu e da Terra, por ti mesmo te rendemos graças, porque por tua santa vontade e por teu único Filho com o Espírito Santo criaste todas as coisas espirituais e corporais...” (vv. 1a). Continuando, o seráfico pai anuncia a excelência da criatura humana, ao dizer: “e a nós, feitos à tua imagem e semelhança, nos colocastes no paraíso. E nós, por nossa culpa, caímos. E te rendemos graças porque, como nos criaste por teu Filho, assim por teu santo e dileto amor com que nos amaste, O fizeste nascer verdadeiro Deus e verdadeiro homem da gloriosa sempre Virgem beatíssima Santa Maria. E a nós cativos, quiseste redimir por sua cruz, sangue e morte...” (vv. 1b – 3).

Na visão de São Francisco, o ser humano é criado pelo Pai através do Filho com o Espírito Santo. Na criação ecoa a tonância de fundo da filiação. Criaturalidade significa: participação gratuita no ser, recepção da doação da comunhão com Aquele em que se dá propriamente, originariamente, absolutamente, o ser: o Deus uno e trino, Pai, Filho e Espírito Santo. A criação se dá através do Filho. A criação é, de certo modo, participação na filiação divina. A criação toa a partir da entoação da geração do Filho. No ser humano se dá de um modo excelente a participação e a comunhão de filhos no Filho. A criação é a repercussão da percussão da geração divina, da filiação divina. A obra da criação entoa a toada universal da bondade difusiva do Pai-Filho-Espírito Santo a partir do tom da filiação divina. Todas as criaturas são irmãs, são filhos no Filho, têm sua origem no Pai e recebem seu vigor do Espírito Santo. Esse mistério transparece com admirável clareza e confortável vigor na celebração do sacramento da Eucaristia.



3. Jesus Cristo a suma obra de Deus


A encarnação da pessoa divina do Filho, isto é, sua união com a natureza humana, o seu tornar-se carne, corpo, seu vir-a-ser um ser humano singular, finito, manifesta o sentido da criação. Revela o desígnio do Pai de se dizer no seu Filho encarnado, de se comunicar às criaturas todas n’Ele. Jesus Cristo é a Palavra criadora de Deus. É, na história, o sim a priori e definitivo de Deus à criação e, de um modo específico e bem próprio, ao ser humano. Em toda a realidade, na natureza, na história, está desenhado em filigrana o rosto do Filho encarnado, que se manifestou claramente na pessoa histórica de Jesus de Nazaré. No dizer do teólogo franciscano João Duns Scotus, esta é o “summum opus Dei”, a suma obra de Deus, a perfeição da operação da bondade difusiva do Deus uno e Trino: Pai-Filho-Espírito Santo. Este ser humano é o “Primogênito de todas as criaturas”. Ele é o primeiro intencionado na criação divina. Ao unir-se com a natureza humana, ele se une com todos os seres do universo, uma vez que o humano é um “microcosmo”, isto é, é aquele ente capaz de receber e realizar em si a convergência de todos os modos de ser dos seres do universo. Em Jesus de Nazaré se revela o primeiro amante da criação, o filho primeiro. Todos os seres são chamados a serem participantes na sua filiação, comungantes nela. Mas o ser humano, de um modo excelente. Com efeito, o Filho encarnado é, como dizia frei Harada, “o exemplar, o arquétipo, a “ideia” de homem”. Por isso, na visão de Francisco, seguir Jesus Cristo é o sumo da humanização, ou seja, da realização da identidade humana.


São Francisco diz que o ser humano foi criado e formado à imagem do dileto Filho do Pai segundo o corpo e à semelhança do mesmo Pai segundo o espírito. “Segundo o corpo” pode ser interpretado como “segundo a imanência da existência”. “Segundo o espírito”, por sua vez, como “segundo a transcendência da existência”.


O ser humano existe e brilha na medida em que se insere, se engaja, na imanência da comunhão com a terra e com os seres da terra, isto é, os elementos (terra, água, ar, fogo), os minerais, os vegetais, os animais. Ele existe na medida em que, com outros seres humanos, compartilha de um mesmo mundo-ambiente e de um mesmo mundo compartilhado da convivência. Ele existe trazendo consigo, a cada vez, seu próprio mundo pessoal, e relacionando-se com os mundos pessoais dos outros. Ele existe habitando a terra, sob o céu, recebendo as influências do clima, da atmosfera, da lua, do sol, dos astros. Em certo sentido, ele nasce da terra.


Mas, ele existe, brilha, também e de modo mais excelente ainda, na medida em que se relaciona com tudo isso como um ser de transcendência, como um ser que ultrapassa todos os seres, na direção do ser em plenitude, na direção de Deus, junto com os outros seres de liberdade, capazes de conhecimento e amor, que são os seres espirituais. Como ser de imanência e transcendência, ele é corporal com os seres corporais e espiritual com os seres espirituais. Ele é um ser regido pela natureza, como os demais seres corporais, e é um ser regido pela liberdade, como os demais seres espirituais.


O ser humano é um microcosmo, isto é, uma abertura e uma convergência para todos os modos de ser de todos os seres. Mas o homem não é só uma imagem do mundo. Ele é também uma imagem de Deus. São Francisco diz mais precisamente: uma imagem do Filho segundo o corpo e uma semelhança do Pai segundo o espírito. Na nossa interpretação: o homem é uma imagem do Filho segundo a imanência da existência na comunhão com os seres da terra e do céu; é uma semelhança do Pai segundo a transcendência na luz do ser, pelo intelecto que almeja a verdade e pela vontade almeja o bem, e pela centelha divina que habita o seu coração, isto é, o âmago de seu ser, o centro, a unidade, a fonte de seu viver, ali onde se recolhem todo os seus modos de sentir e sentir-se.



Para pensar e partilhar:


1. Qual o apreço que Francisco tem pelo ser humano? Donde vem este apreço?

2. Por que para Francisco o ser finito, limitado é tão precioso?

3. O que significa a afirmação de Duns Scotus: “Jesus Cristo é a suma obra de Deus” e quais suas consequências?



Paz e Bem! Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes Continue bebendo do espírito deste tema: - indo ao texto-fonte: 60º Encontro - 5ª Admoestação - 3ª parte (I) - A excelência da liberdade e da finitude humana

- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 60º Encontro - 5ª Admoestação - 3ª parte (I) -

A excelência da liberdade e da finitude humana



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