59º Encontro 25/6/22 - 5ª Admoestação Como fazer jus à excelência com a qual Deus nos criou e formou
- Frei
- 26 de jun. de 2022
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Como fazer jus à excelência com a qual Deus nos criou e formou
Depois de mostrar a excelência com a qual Deus nos criou e formou, Francisco passa a exortar-nos para que façamos jus a tão grande dádiva.
1. O exemplo das criaturas
Como em outras ocasiões, e a exemplo do Mestre, também aqui, Francisco gosta de evocar as criaturas como nossas mestras: E todas as criaturas que existem debaixo do céu, a seu modo, servem, conhecem e obedecem ao seu Criador, melhor que tu (2). Francisco pensa assim: se as criaturas, inferiores a nós, porque irracionais, são tão obedientes ao seu Criador, como nós, dotados de inteligência e de tantos outros dons vamos perder por elas?! Ou seja, se grande e admirável é o serviço que as demais criaturas prestam ao seu Senhor; se admirável é o conhecimento e a obediência delas para com Ele, como não deveria ser nossa obediência, nosso conhecimento e nosso serviço a Deus?!
Mas, esse é, justamente, nosso drama! Pois, criados com o dom da liberdade não somos capazes de servir ao nosso Criador com a excelência desse dom. Assim, enquanto as demais criaturas, guiadas pela lei interior de sua natureza, jamais conseguem desviar-se um centímetro sequer dos desígnios do Criador, o mesmo não dá para se afirmar do homem que, a toda hora, se vê afastar-se das leis de sua identidade, de sua natureza e, consequentemente, de sua origem. Assim, em vez de brilhar nele a excelência de seu Criador, brilham as trevas dos falsos e perniciosos caminhos, nascidos e conduzidos a partir da própria vontade.
Por isso, o homem é e será sempre um enigma, como muito bem o proclama São Paulo: Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer [...] Assim, encontro esta lei que atua em mim: Quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim (Rm 7,18,20).
Mesmo assim, apesar dessa sua decadência, o homem jamais conseguirá renegar sua transcendência, sua sobrenaturalidade, deixando de ser e sentir-se livre, responsável pelo dom de sua creaturidade. Mesmo quando peca, fazendo-se escravo de si mesmo, mostra que é livre. Eis o dom maior do qual jamais homem algum pode se desvencilhar e nem mesmo Deus pode lho tirar.
Criado e formado a partir da imagem de Cristo e da semelhança com o Pai, o homem, vive na dinâmica da finitude e das limitações, mas com o coração sempre irrequieto, como diz Santo Agostinho, sempre insatisfeito porque seu anseio maior é o Absoluto. Não percebe que ser criatura não é defeito, mas graça porque é abertura, caminho para sua ascensão, isto é, para o encontro com o Criador. Pois, é da natureza de toda criatura buscar sua origem, seu Criador. Por isso, sempre que, em vez de se alegrar com essa sua nobre condição de peregrino do Absoluto, a transforma em amargura e revolta, ofende Aquele do qual carrega a imagem e a semelhança.
Por isso e então, vem esta conclusão muito forte: Não foram os demônios que o crucificaram, mas tu com eles... (3). Para compreender a gravidade dessa colocação precisamos ter presente que na cruz, o Senhor, mais que a dor e o sofrimento físico, sofre a dor de ter sido abandonado, rejeitado, banido do convívio dos seus. Tanto Ele como seu Pai! Mas, Eles não nos rejeitaram e jamais haverão de nos rejeitar, pois, se isso fizessem estariam rejeitando a Si mesmos! E, mesmo assim, diante disso que Eles fizeram, diz Francisco, nós continuamos com nossos vícios e pecados. Ou seja, banimos Jesus de nós toda a vez que, de uma ou outra forma, afastamos o outro de nossa convivência por causa de nossas discriminações, mentiras, maus julgamentos, condenações, maus tratos, assassinatos, etc. Em sua essência, esses vícios e pecados repetem o que fizeram outrora os judeus com Jesus. Como eles, também nós estamos jogando para fora do nosso coração, de nossa comunidade o outro e com ele o próprio Cristo. Eis o tu com eles o crucificaste e ainda o crucificas deleitando-te em vícios e pecados.
2. Do que podemos, então, gloriar-nos?
A seguir, Francisco lança, então, a pergunta central e crucial de toda essa sua exortação: Do que podemos, então, gloriar-nos? Citando São Paulo, interroga: sabedoria, conhecimento, beleza, riqueza? Não! responde! E mesmo que fizesse maravilhas, a ponto de afugentar demônios, tudo isso te é contrário. Pois, nada disso te pertence, de nada podes gloriar-te (7).
O significado de glória é muito vasto. Mas, em sua essência significa um estado de vida no qual a pessoa se sente bem, feliz, realizada; um estado no qual, a pessoa consegue superar todas as dificuldades e contrariedades da vida. Mas, sabemos que isso é impossível. Voltemos ao exemplo das demais criaturas. Uma figueira, por exemplo, é feliz, realizada e engrandecida, simplesmente, por ser figueira e poder lutar para manter-se fiel a essa sua identidade. O mesmo deveria acontecer conosco. Ou seja, se quisermos ser realmente felizes e realizados não deveríamos jamais deixar de amar nossa condição de criaturas, buscando nela a imagem do Filho, a partir da qual nosso humano foi criado e a semelhança do Pai a partir da qual nosso espírito foi formado, diz Francisco.
3. A glória da Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo
Vem, então, a exortação final que nos deixa um tanto perplexos porque vai contra nossa maneira usual de pensar. Pois, como gloriar-nos em nossas fraquezas? Como sentir-nos felizes e realizados quando provamos a toda hora o amargor, o peso e a vergonha de nossas fragilidades, finitudes, limitações, pecados e da própria morte? Que glória há quando erramos e caímos sempre de novo em vícios de preguiça, vaidade, orgulho, amor próprio, vinganças, ódios, etc., etc.? Nossa grandeza não consiste, ao contrário, em sermos belos, humana e espiritualmente? Homens sem defeitos, santos e não pecadores? Não, diz Francisco, nossa grandeza está em nossas fraquezas e em carregar todos os dias a santa cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, como entender que nisso está nossa grandeza, felicidade e realização, enfim, nossa glória?
De fato, se considerarmos a vida humana apenas uma antropologia, apenas uma obra humana e não uma teologia, isto é, uma convocação para tomar parte, para comungar da vida do próprio Deus, ela será sempre, como aconteceu para os judeus e para os gregos um escândalo, um ultraje, uma vergonha, um absurdo, jamais uma honra. Carregar a cruz, porém, diz um modo de ser todo especial, isto é, que tem a espécie, o germe, a semente de Deus, de pessoas nascidas de Deus: amar como Deus é e ama. Mas, para entrar nesse modo de ser de plenitude do próprio Deus e Pai, porém, é preciso que fiquemos nus, isto é, que retornemos à nossa condição originária, aquela na qual Ele mesmo nos criou e recriou em Jesus Cristo.
4. Nada por si e de si
Esse processo de retorno ao nosso originário, a espiritualidade antiga assinala com a expressão latina “ex nihilo sui et subjecti”, isto é, entrar e viver na experiência do “nada por si e de si”, exemplarmente revelado por Jesus Cristo no processo da sua existência encarnada, crucificada, eucaristizada. Mas, em que consiste esse processo? Consiste em assumir a finitude e a mortalidade humana como extensão da vida eterna e da imortalidade divina. Esse é o mais belo e mais comovedor exemplo que Jesus Cristo nos deixou: a essência de sua Boa Nova, o plano de Deus no coração do homem. Por isso, inimigo maior da vida eterna e de nossa realização plena e final – perfeita alegria - não é o fato de sermos finitos, mortais e limitados, mas de sentirmos vergonha dessa nossa condição e, por causa disso, empenhar-nos na busca de nossa realização a partir de nós mesmos: a desobediência originária de Adão.
Como é esse modo de ser originário que perdemos no paraíso? É como a Cruz de Jesus Cristo, diz Francisco. Mas, como é a Cruz de Jesus Cristo? Ou seja, o que se deu na Cruz para ser essa recordação e participação - a perfeita alegria, a jovialidade, a glória de Deus - nossa realização plena e última? Deu-se que, no momento da rejeição, Cristo nada mais tem de si, tudo nele e dele é sem valor, sem nenhum mérito; a própria autenticidade, o próprio sacrifício, isto é, a própria Cruz, sua doação ao Pai, são total e radicalmente desmerecidos. Nessa sua total pobreza, sem direitos nem méritos, Cristo procura doar-se ao Pai que o condena, tentando só amá-lo, gratuita e cordialmente, apenas atraído pela afeição, sem razões, sem nada saber, sem nada poder, sem nada querer senão tão só e unicamente saber o que o Pai sabe, querer só o que Pai quer, poder só o que o Pai pode, querer só o que o Pai quer.
Eis a glória do homem em sua origem, rejeitada por Adão e agora restaurada por Jesus Cristo. Cristo na cruz, portanto, imita e reproduz o modo de ser do Pai: ama assim, do mesmo jeito que Deus ama todos os seres. Pois, Deus nos ama não porque somos bons ou porque lhe somos agradecidos, retribuindo, com algum bem nosso, seus benefícios, mas apenas porque Ele é o Bem, todo o Bem, o sumo Bem, o Amor, a Caridade.
No instante em que Cristo imita o Pai e O ama não apesar de, mas, justamente por causa da condenação, Deus diz: “Eis o meu Filho, Aquele que tem o mesmo modo de ser do meu Amor. Eis o meu Filho que ama como Eu amo, na jovialidade, na gratuidade, na cordialidade de ser. Eis aí a pura revelação de mim mesmo, minha glória, a Boa Nova!”
É esse amor novo que dá o Ser, a Vida, a Verdade, a Glória a todas as coisas; que a tudo e a todos conserva, faz crescer, consumar-se no mistério de ternura e benignidade da vida; que recupera o sentido da morte, do sofrimento, salvando tudo como manifestação do Amor que é Deus, o Pai de toda a misericórdia. Eis a excelência da ou com a qual Deus nos criou e formou. Uma excelência verdadeira e perfeita porque ama sem nada exigir, de nada se faz senhora e muito menos se eleva. Apenas ama, livre e gratuitamente, muito mais do que uma mãe ama seu filho carnal. (Cfr. Experiência, modo de ser chamado o fundamental da vida cistã, Frei Hermógnres Harada em O Mensageiro de Santo Antônio, dezembro de 1993).
Eis o fundamental, o tudo do cristão e do franciscano, em especial: a busca do modo de ser de sua própria origem: o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo – o novo Adão – que se revela na Cruz. Por isso, toda finitude humana e a própria morte, serão assumidas não mais com medo e terror, mas no vigor da alegria de quem canta o ato supremo de poder amar, de poder entregar-se e de consumar sua vida ao Pai, origem e princípio de todo o Bem, o sumo Bem, o Bem inteiro, o único Bem (LH 11).
A excelência e a glória do homem, hoje
O problema do homem atual é de esquecer ou ignorar sua excelência, a marca mais profunda de sua identidade: ser espiritual, sobrenatural. Mesmo religiosos não somos, muitas vezes, espirituais. Na verdade, todas as criaturas, desde a mais ínfima até a mais elevada são espirituais porque todas portadoras de um “quê” de Deus que é Espírito, pois do contrário, não existiriam. No homem, porém, essa marca está presente e brilha por excelência. Como vimos na primeira Admoestação, São Francisco não diz que Deus é Espírito, mas que o Espírito é Deus! Isso é admirável, pois significa que onde houver um “pinguinho” de espírito, de doação, de gratuidade, de serviço, aí está Deus. Ou melhor isso (a doação) é Deus.
Espírito, por ser uma realidade que transcende o humano do homem, não se “pega”, não se chega a ele, não se conhece de modo direto. Ele aparece, brilha em nosso modo de ser de criaturas, ou pessoas. Mas, como se adquire esse modo de ser? Ora, sendo de Deus, “coisa” de Deus, não se adquire. Tem que se receber. Ser recebedor, porém, não significa não fazer nada. É fazer tudo o que está ao nosso alcance para que esse modo de ser doação, gratuidade, serviço (espírito), possa fluir em nós e no mundo. Cristo compara esse modo de ser ao da da graciosidade do vento: sopra onde quer, você escuta o seu som, mas não sabe de onde vem nem para ode vai, assim ocorre com todos os nascidos do Espírito (Jo 3,8).
Mas, para isso é preciso ser simples, humilde, pequeno, menor, atento, ouvinte, dócil, como o foi, por exemplo, João XXIII, o “Papa da docilidade do Espírito”. Foi por isso que ele, em 1958, sentiu que estava na hora de convocar um novo Concílio Ecumênico.
Assim, deveríamos temperar com esse modo de ser da cordialidade tudo o que fazemos: rezar, cozinhar, evangelizar, lavar louça, varrer, capinar, etc. Ou, como dizia São Francisco: sem jamais extinguir o espírito da oração e devoção ao qual devem servir todas as coisas (RB 5). Nós, hoje, fazemos muitas coisas espirituais, mas talvez sem o Espírito que é Deus ou, pior ainda, como fez Adão, ao contrário Dele.
Assim, o modo de ser espiritual, do Espírito, é o que brilha por excelência em Cristo e por extensão, em Francisco: nobre, magnânimo, acolhedor, atencioso a todos e a tudo, menor, misericordioso, compassivo, etc. Não implica nem complica, muito menos fica preso a ninharias. Torna-se assim, uma pessoa de profunda fé em Deus, Jesus Cristo, seu Evangelho, nas pessoas e criaturas.
Mas, para chegar a isso é preciso ser operário: trabalhar a nobreza, a excelência com a qual o Criador nos dotou. Fazer do nosso cotidiano nossa escola. São Francisco, por exemplo, fez por três vezes o propósito de ser nobre com todos, Santa Terezinha de sempre sorrir, acontecesse o que acontecesse. Assim com o tempo, esse modo de ser vai fluir em tudo e com todos, como a água da vertente, do riacho. Serei um homem espiritual e não apenas um homem que faz coisas espirituais. Por isso, diz nosso Papa: Jesus quer evangelizadores que anunciam a Boa Nova, não só com palavras, mas, sobretudo, com uma vida transfigurada pela presença de Deus (EG 259)
Para pensar e comentar:
1. Por que em nossa finitude, limitações e deficiências está a excelência do nosso humano?
2. Por que, segundo São Francisco, como os judeus, também nós continuamos a crucificar Jesus?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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ao assistir esta aula, lembrei da frase de uma professora minha na faculdade de Biologia "Somos o único ser vivo que não se satisfaz com o que a natureza nos fornece, precisamos estar sempre a destruindo, explorando e modificando".
E mesmo assim, seguimos insatisfeitos...