58º Encontro 18/6/22 5ª Admoestação Que ninguém se ensoberbeça, mas glorie-se na cruz do Senhor
- Frei
- 19 de jun. de 2022
- 8 min de leitura
Que ninguém se ensoberbeça, mas glorie-se na cruz do Senhor
A quinta Admoestação, um pouco mais longa que a anterior, trata de um dos vícios mais radicais do homem: a soberba. O texto começa convocando-nos a estar atentos à excelência com a qual Deus nos criou e depois exorta-nos a fazer jus a essa dignidade.
Vamos ocupar-nos hoje com o título e a primeira frase.
1ª. Parte: O HOMEM EM SUA EXCELÊNCIA
1. Título
O zelo de Francisco para com a perseverança dele e de seus irmãos na pureza e na fidelidade no seguimento de Cristo pobre, crucificado, perpassa toda sua vida bem como todos os seus Escritos, como podemos ver aqui, nesta Admoestação. Por isso, o título: Que ninguém se ensoberbeça, mas, glorie-se na Cruz do Senhor.
Se, na Admoestação anterior, a insistência era que os irmãos tomassem cuidado para não se apropriarem de qualquer cargo ou ofício, nesta Francisco toca na raiz desse perigo: a soberba. Na verdade, sua preocupação era que os frades abandonassem o glorioso caminho do abaixamento de Deus, a Via sacra da Cruz, para seguir o vergonhoso caminho da elevação, da soberba. Vergonhoso porque, se já no nível meramente humano toda e qualquer soberba corrói os laços de uma sadia convivência, o que não dizer para aquele que decidiu ter a Cristo como seu único companheiro, amigo e mestre?! Além do mais, se o caminho do mestre foi o do abaixamento, da humildade, da “quénosis”, da cruz, rejeitando toda e qualquer vanglória e soberba deste mundo, outro não pode e nem deve ser o caminho desejado e seguido pelo discípulo. Pois, como diz São Paulo, longe de mim gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo (Gl 3,14). Além do mais, o primeiro, segundo Frei Egídio, é escada e via para ascender ao Céu e o segundo, porém, escada e via para descer ao Inferno (DE 1)
2. Criados e formados à imagem de seu dileto Filho
Também aqui, Francisco, como bom mestre, começa por despertar em seus irmãos aquela atitude fundamental e indispensável para um bom seguidor de Cristo: a atenção. Por isso, começa de forma evocativa: atende, ó homem! Na vida cristã e religiosa, por ser caminho de amor, a atenção é de capital importância. Isso porque Jesus Cristo, o puro amor, nunca ousa oferecer-se de modo explícito, forçado ou impositivo. A nobreza do amor, a exemplo de Nossa Senhora, é sempre humilde, oculta, secreta. Daí a necessidade da atenção, isto é, a exemplo das virgens prudentes, de sempre estar nesse caminho com as lâmpadas (a luz do amor) acesas, com os olhos (a luz da fé) abertos. Deveríamos procurar ser sempre e tão atentos a Ele como Ele é atento a nós em nossas ansiedades e necessidades. Vejamos, por exemplo, como é admirável o acompanhamento que Senhor faz à busca de Francisco em seu processo vocacional! Essa sua atenção transparece, de modo admirável e encantador, no encontro com o Crucificado de São Damião. Cristo aparece de olhos abertos e voltados unicamente para ele e com o coração inteiramente tomado de com-paixão pelo seu novo servo. Tudo isso, diz Francisco, é próprio da dignidade e da grandeza de nossa natureza. Pois, é assim, com esse espírito de atenção, respeito e reverência ao outro, que fomos criados. Por isso, ao atende, acrescenta, ó homem! Esteja atento, pois a hora da graça do encontro com o Senhor pode dar-se à hora em que menos se espera!
A seguir, passa a mostrar a excelência do homem. Francisco, através do encontro com Jesus Cristo, na igrejinha de São Damião e, depois com o Evangelho, na igrejinha da Porciúncula, começou uma das experiências crísticas mais expressivas, admiráveis, profundas e inauditas que a história do cristianismo já conheceu. No coração dessa experiência está a iluminação acerca do significado do mistério da Encarnação para a Criação toda, principalmente para o homem. O que de fato aconteceu para nós, humanos, quando o Verbo eterno se fez carne ele o qualifica como “excelência” e ele mesmo o explica: porque foi criado e formado segundo a imagem do dileto Filho do Pai, segundo o corpo. Como se processa essa excelência ele o diz com palavras cheias de unção, na Segunda Carta aos Fiéis:
Esta Palavra do Pai, tão digna, tão santa e gloriosa, o altíssimo Pai anunciou do Céu, por meio do seu santo anjo Gabriel, no útero da Santa e gloriosa Virgem Maria, de cujo útero recebeu a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade. Sendo rico, acima de todas as coisas, Ele mesmo, juntamente com a beatíssima Virgem Maria, sua Mãe, quis no mundo escolher a pobreza (2CFi).
Fomos criados e formados à imagem de seu dileto Filho segundo o corpo. Jesus Cristo é o exemplar, o arquétipo do ser humano. Todo o ser humano, desde Adão, foi criado segundo este exemplar, segundo este modelo originário. Jesus Cristo é o primogênito de toda a criatura. Ele é o princípio da criação, o primeiro, na ordem da intenção da criação, como tematizou João Duns Scotus. Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, é a suma obra, que Deus tinha em vista, ao criar o universo e os seres humanos. Nós fomos criados e formados à imagem Dele segundo o corpo. Segundo o corpo significa: segundo a nossa finitude, o nosso ser-em-situação, o nosso estar, a cada vez, num aqui e agora; segundo, também, nossa pertença à terra. Grande demais o mistério dessa excelência! Até os anjos a admiram e louvam!
Assim, se reverenciamos, com justiça, uma imagem de Cristo feita de madeira ou de qualquer outro material perecível, muito mais e maior deveria ser nossa reverência e respeito a qualquer pessoa, por carregar a imagem de Jesus Cristo, que é a imagem (a semelhança expressiva) do Pai. Esse é, certamente, um dos nossos mais deploráveis esquecimentos! Não nos espanta, e muito menos nos comove! Ao dizer que Deus nos criou e formou à imagem de seu dileto Filho, segundo o corpo, significa que no eu do nosso humano está gravada a imagem, a figura, o selo, o carimbo de outro Eu: o Eu do humano de Jesus Cristo crucificado.
Desde que o Verbo eterno do Pai assumiu a carne humana, o verdadeiro humano de cada pessoa foi deificado: deixou de ser somente humano para tornar-se também divino. Eis o novo sentido do homem e de sua história. Por isso, esse modo excelente de ser e viver, do qual Cristo nos faz herdeiros e participantes, não é, evidentemente, de dominação muito menos de eliminação de nossa condição humana de criaturas finitas e limitadas. Ao contrário, o novo estado do nosso humano, inaugurado por Cristo, é de uma profunda gratidão, alegria, contentamento e paixão pela nossa finitude, limitação, doenças, fragilidades, cansaços e até mesmo pela morte, porque agora tudo em nós vem impregnado do vigor, da alegria do próprio Filho de Deus.
São Francisco não diz que fomos criados como imagem de Cristo, mas que fomos criados e formados à imagem de Cristo. “À imagem” significa como convocação, tarefa e inspiração que deve ser buscada e seguida e não como fato ou ocorrência já pronta, feita. Por isso, o texto, além de te criou, diz e formou. Formou não tem nada a ver com “fôrma” pronta ou comodismo e sim tudo com forma, isto é, com o vigor da essência, do princípio que inspira e dá origem a uma nova existência. Quem quis assumir esse princípio, admoesta Francisco, foi o próprio Filho unigênito do Pai. Foi Ele quem quis provar a fragilidade do nosso corpo, isto é, nossa dimensão humana finita e limitada, a fim de honrar nossa condição de criaturas com sua condição de Filho querido do Pai e, por outro lado, honrar a própria Divindade com nossa humanidade.
No empenho de explicar e compreender tão excelente, profunda e comovedora comungação a tradição da Igreja usa expressões e figuras muito caras e significativas como “sagrada aliança” “sacrum convivium”, “sacrum commercium”. Assim, por Ele, com Ele e Nele tudo no homem - sua finitude, suas limitações - passa a ser excelente. Nada mais há do que deva se lamentar, muito menos envergonhar, pois tudo que há no homem vem impregnado com a imagem do Filho unigênito do Pai de modo que tudo o que se diz dEle deve ser dito e aplicado a nós. Ele é filho querido do Pai, nós também o somos; Ele é Deus, nós somos deuses; Ele é eterno, nós não haveremos mais de morrer. Na Cruz, bebendo até a última gota do cálice de sua busca pelo sentido da vida, faz brilhar, em sua humanidade, o verdadeiro Filho de Deus, testemunhado pelo oficial romano: Este é verdadeiramente o Filho de Deus. Ou seja, verdadeiro, limpo e puro filho de Deus é aquele que, mesmo abandonado pelo Pai, Ele não O abandona. Eis a excelência do homem!
3. Criados e formados à semelhança de seu espírito
Não bastasse ser criados e formados à imagem do Filho dileto do Pai, segundo o corpo, fomos criados e formados pelo Pai para alcançar a semelhança Dele segundo o espírito. Segundo o espírito significa: segundo a transcendência da liberdade. Assim, não bastasse carregar em nosso humano a excelência do humano de Jesus Cristo crucificado, carregamos, também, a semelhança do Espírito do Pai. O que equivale dizer que temos não apenas o rosto do Pai, mas também sua alma, sua identidade, seu espírito.
Tudo isso, porém, como já assinalamos, não nos é dado como fato, mas como con-vocação. Pois, semelhança significa vigor que vem da mesma origem da qual nascem as sementes do próprio Deus que precisam ser acolhidas na terra boa do nosso coração a fim de que, uma vez fecundadas pelo calor da gratuidade de nossa acolhida, possam germinar, crescer e florescer. Eis o Reino dos Céus no meio de nós!
Mas, que sementes são essas? Primeiramente sua Palavra recheada de parábolas, seus admiráveis exemplos e testemunhos de perdão, compaixão; sua misericórdia, suas orações, seus mandamentos, principalmente o do amor, o da paz. Essas sementes divinas brilham ao máximo quando, na Cruz, se doa, se entrega não apenas aos amigos, mas, também aos inimigos e ao próprio Pai que o abandonara à própria sorte. Portanto, a nós também é feito o convite para percorrer não o caminho de uma vil e vã glória deste mundo, mas o caminho dessa excelência divina que desce do alto e que supera a grandeza dos próprios anjos.
Enfim, a Admoestação mostra como, a partir da desobediência ao seu Criador, o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, perde toda sua beleza originária de obra prima da criação. Esvazia-se, assim, de todo e qualquer título de glória, tornando-se, pela sua desobediência, inferior até mesmo às demais criaturas deste mundo. Cristo, porém, veio oferecer-nos uma glória ainda maior, mais excelente: a glória de sua Cruz.
Gloriar-se na cruz do Senhor, hoje
Num mundo dominado pela ideologia do prazer e do sucesso fácil nas coisas materiais e passageiras, o seguimento de Cristo crucificado como glória do nosso humano, torna-se cada vez mais difícil e menos aceito. Por isso, diante do exemplo de Abraão, nos alertava em sua homilia o Papa Francisco, em 14 de março de 2013:
Nossa vida é um caminho. Quando nos detemos, não avançamos. Caminhar sempre, em presença do Senhor, na luz do Senhor, procurando viver de modo irrepreensível é o que Deus pede a Abraão em sua promessa.
E, finalizando, disse o Papa Francisco: "quando caminhamos sem a Cruz, quando edificamos sem a Cruz e quando confessamos a um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor, somos mundanos: somos bispos, sacerdotes, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor.
Queria que todos, logo depois destes dias de graça, tenhamos a coragem de caminhar em presença do Senhor, com a Cruz do Senhor, de edificar a Igreja sobre o sangue do Senhor, que está sobre a Cruz, e de confessar a única glória, Cristo crucificado. E assim a Igreja irá adiante.
Para pensar e comentar:
1. Por que Francisco fala do homem como uma excelência? Quais as consequências dessa apreciação?
2. Por que o homem de hoje tem dificuldade de ver e acolher a excelência da Cruz?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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