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54º Encontro 21/5/22 - 3ª Admoestação - A via da escuta consumada na liberdade dos filhos de Deus

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 23 de mai. de 2022
  • 9 min de leitura



A via da escuta consumada na liberdade dos filhos de Deus



Nossa proposta é a de interpretar o texto da III Admoestação de São Francisco de Assis como um aceno e uma indicação a respeito da via da escuta consumada na liberdade dos filhos de Deus.


A obediência, aqui, não é uma relação funcional de submissão ao poder e à influência de alguém considerado como superior. A obediência é, aqui, tomada num sentido fundamental da existência humana. Neste sentido fundamental, obediência é a abertura de escuta da interpelação da realidade da vida e seus sentidos na dinâmica da história. Esta abertura se dá como libertação para a liberdade da verdade da vida. Na medida em que o ser humano se abre para a verdade e mistério da realidade da vida e para as suas interpelações, ele se põe em sintonia e harmonia com esta, correspondendo e respondendo a ela. A obediência, entendida neste sentido existencial fundamental, é via, caminho, Tao, para o ser humano ser um com o pleno vigor da realidade da vida. Na dinâmica da obediência, o que vige não são as preferências do ser humano, seu saber, seu ter, seu querer, mas sim a referência cordial para com o mistério da realidade da vida. Obediência é, assim, a pobreza do espírito humano que se abre para a riqueza do mistério da vida. Obediência é querer o não querer, isto é, querer aquilo que transcende o próprio ser humano, como vida da sua vida.


Na medida em que a vida da vida é experimentada como o sagrado, o divino, ela é religiosa. O nome “Deus” evoca, aqui, o mistério inefável e incompreensível da origem e raiz de nosso ser. Para a fé, este mistério se dá como o ultrasentido absoluto da vida. Isto quer dizer: a fé consiste em fundar a vida na verdade deste mistério, em sua revelação, em insistir e persistir na sua escuta. Para a fé cristã, Deus se revela a nós nas mensagens dos profetas que emergiram a partir da história da salvação, mas sobretudo em Jesus Cristo Crucificado. Este é a própria Palavra da Vida que se fez carne, isto é, realidade humana. Nele, no evento da Cruz, Deus diz seu Sim definitivo ao ser humano, oferecendo seu amor universal e gratuito a todos os seres humanos. A obediência da fé é a entrada e a persistência no seguimento de Jesus Cristo. É abertura ao seu Evangelho, e, nesta abertura, correspondência e resposta às suas interpelações.


Pela obediência da fé, na dinâmica da espera do inesperado que se torna esperança contra toda a esperança e na dinâmica da caridade (amor gratuito e universal), o discípulo de Jesus Cristo passa a viver toda a sua vida não a partir de si mesmo, das possibilidades e competências e preferências humanas, mas sim, desde a centelha da boa vontade, a partir da vontade do Pai. O discípulo se dispõe, assim, a conduzir sua vontade para a dinâmica da gratuidade, conformando seu querer à dinâmica e ao vigor do querer de Deus, que é amor gratuito. Deus é amor. Como dizia João Duns Scotus, teólogo franciscano, Deus é amor não só em seu modo de querer e agir, mas em seu próprio ser. O querer e o agir de Deus acontecem segundo a dinâmica do amor-gratuidade. Jesus Cristo crucificado revelou este modo de ser, de querer e de agir do Pai, que é amor gratuito e universal. Libertar-se para a liberdade deste amor e viver em tal liberdade é o sentido da obediência cristã. Esta é uma virtude, isto é, um vigor divino, que permite ao ser humano viver na liberdade de filho de Deus.


O ser humano se põe como ouvinte, auscultador, seguidor e servidor do Deus-amor. Ele se faz servo, mas seu servir não é servil, ou seja, não é movido pelo temor do escravo, mas sim pela reverência e pelo amor do filho. Como o Pai trabalha, ele também trabalha, para que a obra deste amor se realize na história. Seu trabalho, porém, não é o de mercenário, movido pela ambição de recompensa, mas é, sim movido pela gratidão por participar da sua força criativa e concriativa em obras de palavras, ações e suportações.


São Francisco dirige sua admoestação aos seus confrades, isto é, àqueles que têm como profissão e ofício, na Igreja, realizar, em fraternidade, o seguimento de Jesus Cristo Crucificado, seguindo seus passos e vestígios. As dicas de São Francisco, assim, se dão de modo bem concreto, tomando como horizonte, as situações típicas da vida religiosa franciscana.


A admoestação de São Francisco, nesta proposta de interpretação, projeta a via da obediência, isto é, da abertura da ausculta, e sua perfeição. Perfeição, aqui, é a dinâmica de um perfazer, de um consumar de possibilidades de ser. A perfeita obediência, isto é, a escuta consumada, se perfaz na medida em que assume, eleva, potencializa e transcende a obediência verdadeira e a obediência caritativa.


A perfeita obediência, isto é, a escuta consumada, tem a estrutura de renúncia. Renunciar é anunciar o originário. A obediência é renúncia, no sentido de anúncio cordial, afetivo, da liberdade dos filhos de Deus. É um perder a vida para salvá-la. O obediente perde a vida que é vivida a partir de seu eu e de suas preferências, para salvá-la na amplidão universal, na profundidade abissal e na originariedade inesgotável do mistério do Pai de Jesus Cristo Crucificado. Morrendo a si mesmo, sempre de novo, o obediente renasce com a medida sem medida do amor gratuito do Pai. De sua morte surge nova vida. As obras que surgem deste renascimento são as boas obras, que louvam o Pai. Elas são frutos, que testemunham a fecundidade de Deus no espírito humano.


A obediência ao Pai atua-se concretamente como encarnação. O caráter de encarnação da obediência São Francisco apresenta como abandonar-se à obediência nas mãos do seu prelado. O obediente, observe-se, abandona-se à obediência. Ele confia no vigor libertador da obediência. Ele recebe e guarda a comissão da obediência, permitindo se colocar nas mãos do prelado. Em sentido fundamental e amplo, prelado é, como diz Harada, “toda situação concreta, toda imposição que cai em cima de uma pessoa e da qual não há jeito de se livrar”. Prelado diz, aqui, portanto, toda a necessidade da vida concreta. O obediente se insere e se encarna na necessidade da vida, em seus apertos, em suas premências. Ele se dispõe à morte que vige no meio da vida. Morte é, para nós, tudo o que nos sobrevém trazendo uma medida maior que nossas medidas já alcançadas, provocando-nos para a transcendência. Morrer em meio às necessidades da vida é o segredo para renascer para a sua liberdade. O obediente é aquele que assume com espírito de autonomia adulta os desafios que as necessidades, as imposições e superveniências da vida, com outras palavras, as mortes da vida, trazem. Erguendo-se a si mesmo a partir de si mesmo, com boa vontade e com clarividência, o obediente se mede com a morte que a vida nos impõe sempre de novo e, no seu medir-se cordial, abandona-se ao seu mistério, e, neste abandono, renasce para a amplidão, profundidade e originariedade de seu mistério. A obediência é, assim, acolhida da realidade da vida em sua faticidade, abandonando-se ao seu mistério. Esta encarnação na realidade concreta da vida é verdadeira, isto é, real obediência. Obediência é o abrir-se do caminho estreito da liberdade em meio às necessidades da vida, de modo concriativo com elas. É a fé de que este caminho estreito abre uma amplidão de vida. É a fé de que este caminho pobre concede a suprema riqueza do viver humano, a plenitude de sentido, a beatitude. Engajar-se nesta fé em meio à realidade da vida é a verdadeira, autêntica, obediência.


Obediência caritativa retoma e aprofunda a verdadeira obediência. Como diz Harada, obediência “é a existência inserida, engajada no discipulado, que não tem mais espaço para preferências, veleidades, escolhas”. É concentração no aqui e agora do instante da vida, assumindo cada situação concreta, singular, com suas imposições, sem se furtar aos seus desafios. É, em cada situação singular, com suas complicações, implicar-se e explicar-se, na abertura de uma ausculta, com o Todo, com o universal, da vida. Nesta dinâmica, sempre é melhor abandonar nosso próprio saber e querer particulares, e abrir-se à medida transcendente da Vida, que se manifesta como o outro, quer como o outro, que é o nosso próximo, mesmo com suas imperfeições, quer com o outro, que é o Radical Outro, no Não-Outro, o nosso Tu absoluto, que evocamos sob nome de “Deus”.


Satifazer esta medida da Vida que se manifesta como a medida do Todo, que, na figura do outro (Outro), nos ultrapassa, é a dinâmica da obediência caritativa. É abrir-se à gratuidade do amor como sentido de nosso próprio viver. Assim, cada aqui-e-agora, com suas complicações e com seus desafios, se torna chance, oportunidade, para esta abertura à gratuidade do amor. Quem põe em obra a verdade da gratuidade do amor vem para a luz e suas obras se revelam como sendo feitas em Deus e segundo Deus. Nisso se manifesta a liberdade dos filhos de Deus. Toda obra assim per-feita se torna oferenda sagrada, que louva o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. A cordialidade desta oferenda preenche todos os ocos, todas as lacunas, todas as insuficiências, que costumam acompanhar as vicissitudes da nossa história humana. Ela imita, neste sentido, a oferenda de Cristo Crucificado. Na Cruz, Jesus Cristo levou à consumação a via desta ausculta.


Frei Hermógenes Harada indica como o nexo de obediência verdadeira e obediência caritativa na obediência perfeita ressalta o sentido da obediência religiosa, cristã, melhor, crística:


Os adjetivos "verdadeira", "caritativa", "perfeita" mostram como é a obediência religiosa por dentro. São Francisco depois de ter falado dos primeiros dois graus da obediência religiosa: a obediência vedadeira que consiste em fazer positivamente aquilo que assumimos e nos impusemos ("estar nas mãos do prelado de boa vontade"), e a obediência caritativa que consiste em sacrificar o próprio conhecimento e, de boa vontade, por obras, se dispor a obe­decer (embora "vendo algo melhor e mais útil"), nos fala agora do terceiro grau da obediência, a obediência perfeita, que consiste em não se separar do superior, quando este, em nome da obediência, pede algo que é contra o essencial humano (alma). O servo que dá lucro para o seu Senhor cuida para que não se perca a chance de bem que ainda há em quem mandou fazer o mal; cuida não se separando dele. Uma atuação como esta parece ineficiente a curto prazo, mas a longo prazo realiza grandes transformações. São Francisco diz: "Esta atitude é preferível. Escolha isso".


A obediência perfeita exige a decisão, o salto da liberdade que se desvencilha das próprias medidas e que se compromete com a medida maior do Céu e Terra, da Vida, dito de modo cristão-franciscano, de Cristo Crucificado e do Pai nosso que está nos céus. A obediência perfeita é entrega e abandono do desprendimento que nos liberta para a liberdade dos filhos de Deus. O salto da decisão precisa ser feito a cada dia, em cada insistência na e da escuta. Isso exige persistência, perseverança, não se furtar, não fugir da raia, nos apertos, tribulações, adversidades, confrontos, solidões. Como ensinou Bonhoeffer, com seu poema, escrito na prisão, “estações no caminho da liberdade”, não só na disciplina e na ação, mas também no sofrimento e na morte, o cristão experimenta a libertação para a verdade da liberdade e a liberdade da verdade do Evangelho de Jesus Cristo. Isto significa abandonar nossa pretensão de saber o melhor modo de “resolver” as coisas, de dar jeito no mundo, de consertar a convivência humana, bem como nossa pretensão de sermos autosuficientes em nosso poder. Significa abrir-nos à graça que se perfaz na nossa fragilidade e na fragilidade dos outros. Isto pode parecer heróico. Mas, na verdade, acontece como atitudes cotidianas. Frei Harada escreve:


Esta atitude não nos é tão estranha quanto parece! É, por ex., a atitude do filho bom que enxerga o erro do pai: sofre por isso, não lhe obedece se o pai mandar algo de ruim, mas não o despreza; se concentra, antes, no bem da paternidade e não se separa dele. Não será que São Francisco se move num nível de nobreza como este?


Esta positividade foi o que ditou a atitude de Jesus Cristo em relação à humanidade. Foi também a que ditou a atitude de São Francisco em relação à Igreja de seu tempo com todas as suas mazelas.


Quem tem esta positividade coopera para que a força salvadora da vida se erga e se potencialize e resguarde a tudo e a todos. Quem não a tem, faz decair a força, o vigor, do elã vital em si e nos outros, por isso São Francisco diz que quem não tem esta positividade e cordialidade é homicida. A obediência é, assim, um modo de guardar e potencializar a força da Vida em nós e nos outros, na comunidade e na sociedade humana, na fraternidade religiosa e na Igreja.



Para pensar e compartilhar:

1. Como entender que a obediência é caminho da escuta consumada na liberdade ds filhos de Deus?

2. Quais as consequências ou frutos para quem segue esse caminho?



Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes




Continue bebendo do espírito deste tema:


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Professor Marcos Aurélio Fernandes


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