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52º Encontro 7/5/22 - 3ª Admoestação Da perfeita obediência - 3ª parte: Da obediência caritativa

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 9 de mai. de 2022
  • 10 min de leitura

3ª Admoestação - Da perfeita obediência


Da obediência caritativa



Introdução


Segundo São Francisco, o seguidor de Cristo não pode contentar-se apenas com a obediência verdadeira. Por isso, nessa Admoestação, depois de ter falado da obediência verdadeira, logo acrescenta a obediência caritativa. Vejamos o que ele diz:


E, sempre que o súdito perceber coisas melhores e mais úteis à sua alma que as ordenadas pelo prelado, sacrifique voluntariamente as suas a Deus e empenhe-se em plenificar em obra as coisas que são do prelado. Pois, essa é a “caritativa obediência” porque satisfaz a Deus e ao próximo (5-6).



1. Uma obediência que satisfaz a Deus e ao próximo


De novo, Francisco nos surpreende, aliás, como também Jesus, com seu Evangelho, porque sua exortação vai contra a lógica de toda a natureza humana. Pelo menos contra a lógica do nosso cotidiano usual. Pois, se cada um de nós perceber coisas bem melhores e mais úteis à sua alma que as ordenadas pelo prelado, é evidente que vai lutar para que ele o entenda, ceda e lhe permita que realize as suas e não as dele. E, se assim mesmo, ele o obrigar a obedecer-lhe, dirá que é um ignorante, um antiquado e que, diante de algum eventual fracasso, a responsabilidade será toda e só dele.


No entanto, nossos antigos mestres consideravam tão importante e necessária a aprendizagem desse princípio (obediência caritativa) que chegavam a ordenar a seus noviços que plantassem couve de cabeça para baixo ou buscassem água com baldes furados. “Um absurdo, uma coisa ridícula”, dizemos todos nós! E, porque não procuramos olhar a razão que leva Francisco e aqueles primitivos frades a seguir esse princípio, lemos essa exortação como uma obediência de religiosos fanáticos, cegos, infantis, irresponsáveis e acomodados, que não tinham a coragem de contestar o despotismo dos seus superiores.


Mas, qual, então a razão desse princípio? Comecemos com a observação de que viver é enfrentar conflitos. Ao sair do ventre de nossa mãe tivemos de enfrentar as agruras do meio ambiente, da sociedade, da vida. E assim foi e será a vida toda, conflitos que tem sua origem em nossa finitude, na limitação de nossas medidas. Ora, um conflito só é conflito quando ou porque ultrapassa nossas possibilidades, capacidades ou medidas. Movidos por essa limitação começamos a definir e a decidir que “isso é bom” e “aquilo é mau”, “isso me ajuda” e “aquilo me prejudica”, “isso vale” e “aquilo não presta”, “isso é doce” e “aquilo amargo” (Cfr. Ad 2). Enfim, aquilo que cabe dentro de nossas medidas é positivo e aquilo que não cabe decidimos que é negativo. O primeiro será aceito e o segundo descartado.


Ora, a vida, evidentemente, não é assim! Ela não exclui nada nem a ninguém, mas, à semelhança de um útero materno, a tudo e a todos acolhe. Por ser muito maior e anterior a nós ela não cabe dentro de nossas medidas, tão finitas, limitadas e frágeis. Exemplo clássico para nós franciscanos é a experiência de Francisco diante do leproso. O leproso, como tal, não cabia nas medidas dele. Por isso, quando ou enquanto vivia dentro das medidas do mundo, era-lhe amargo ver leprosos, conta ele no Testamento. Mas, quando, pela graça da conversão, saiu da prisão dessas medidas, ver leprosos e comer com eles, passou a ser-lhe uma doçura da alma e do corpo. Assim, para poder acolher a riqueza da vida, precisamos converter-nos, isto é, transportar-nos para fora de nossas medidas, mesquinhas e particulares, do nosso pequeno eu ou do mundo e abrir-nos para as medidas da Vida.


Em segundo lugar, a Vida não julga. Numa floresta as árvores mais altas não se vangloriam de sua altura diante das árvores menores. Nem essas se consideram inferiores por serem mais baixas que as demais. Todas, maiores e menores, se consideram e se relacionam, simplesmente, no vigor da alegria de serem árvores. O contentamento por ser o que são é tão absorvente que não lhes sobra tempo para outros sentimentos ou devaneios impróprios e vazios. O mesmo se dá o mundo das crianças.


Recordemos, mais uma vez, que Francisco está falando para profissionais do seguimento de Cristo, cujo caminho não admite meio termo, caminho que se assenta na radicalidade e na originalidade da gratuidade do sem porquê e nem para quê. Sem porquê e nem para quê é o modo de ser do espírito (marca registrada, a insígnia do homem, principalmente do seguidor de Jesus Cristo, da liberdade, do amor, enfim, o modo de ser de Deus).


Em verdade, a admoestação está dentro da mesma dinâmica do mandamento maior de Cristo: aprender a amar nossos inimigos. Como esse, também o exercício da exortação da obediência caritativa tem como objetivo levar-nos ao alargamento do nosso coração, da nossa mente. Um alargamento que vai nos aproximando cada vez mais da magnanimidade do coração e da mente de Deus; um coração tão magnânimo que não vê mais a distinção ou separação entre justo e injusto, bom ou mau, falso ou verdadeiro. Todos são vistos e acolhidos como filhos muito queridos. Atrás, ou no objetivo dessa admoestação, está, pois, o fascínio, a paixão de Francisco de assemelhar-se a essa magnanimidade e pureza de Deus. Isso era o seu tudo, o que mais desejava na aprendizagem de seu seguimento de Cristo: ter um coração, uma alma, uma mente magnânima, generosa, humilde, simples como a de Cristo, como o céu e a terra. Se, para isso, tinha que buscar água em balde furado, o que lhe importava!? Num coração assim, não há guerra, briga, ciúmes, invejas, etc. E, se surgir algum conflito, esse será visto não como tal, mas como graça para poder realizar sua missão. Por isso, dentro desse espírito, faz tudo o que o outro, o prelado lhe mandar, desde que não seja contra a salvação de sua alma, isto é, que não seja contra sua identidade de cristão ou franciscano. Assim, se o prelado o mandar que pregue contra um bispo ou o papa, é evidente que jamais o fará. Mas, também, jamais o abandonará ou deixará de amá-lo.

Na Vida do Bem-aventurado Frei Egídio temos uma narrativa bem ilustrativa acerca dessa obediência:


Certa vez, um frade encontrava-se em sua cela em oração e o Guardião ordenou-lhe que fosse esmolar pão. Pelo que, levantando-se com indignação, procurou Frei Egídio, que, então, lá morava e disse-lhe: “Pai, há pouco estava em oração na cela e o Guardião ordenou-me que fosse mendigar pão. A mim, porém, me parece que é melhor rezar do que mendigar”. Disse-lhe Frei Egídio: “Irmão, ainda não compreendeste o que seja a oração. Pois, a verdadeira oração é que o súdito faça a vontade do seu prelado” (VE 8).


Portanto, como, segundo o Evangelho, inimigo, na verdade, é nosso melhor amigo, também as contrariedades ou as coisas piores e menos úteis, vindas do prelado, são nossas amigas porque nos ajudam a crescer e a amadurecer na virtude da obediência evangélica; a passar da obediência verdadeira para a obediência caritativa, que se concretiza na doação, no sacrifício [MF1]. Esse, segundo Francisco, é o melhor caminho de quem deseja identificar-se com Jesus Cristo, o Filho que obedeceu ao Pai por puro amor ou caridade, sacrificando-se todo, até à morte e morte de Cruz. Leiamos:


Durante os seus dias de vida na terra, Jesus ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, sendo ouvido por causa da sua reverente submissão. Embora sendo Filho, ele aprendeu a obedecer por meio daquilo que sofreu. E, uma vez aperfeiçoado, tornou-se a fonte de eterna salvação para todos os que lhe obedecem.” (Hb 5,7-9)


Por isso, Francisco dizia:


Atendamos todos, Irmãos, ao que diz o Senhor: ‘Amai vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam!’ Pois Nosso Senhor Jesus Cristo, cujos vestígios devemos seguir, chamou de amigo o seu traidor e livremente se ofereceu aos que o crucificariam. Por isso, são nossos amigos todos os que injustamente nos infligem tribulações e angústias, vergonha e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte. A esses devemos amar muito, pois, disso que nos infligem, temos a vida eterna (RNB 22,1-4).


Como já assinalamos, prelado, aqui, não significa apenas o irmão que no momento ocupa o cargo, a função de ministro, mas, tudo quanto se nos apresenta como superior. Ou seja, tudo aquilo que está para além ou acima de minhas possibilidades ou medidas como, por exemplo, os votos para os consagrados, o sacramento da Ordem para os ordenados, a promessa para os seculares, o sacramento do matrimônio para os casados e, até mesmo, um acidente, uma doença, um defeito, uma difamação ou calúnia, etc. Exemplo clássico, o beijo de Judas em Jesus. Por isso, Jesus o chama de amigo.



2. Obediência caritativa, hoje


Quem nos dá uma boa explicação dessa questão é Frei Harada. Depois de dizer que a vida, a realidade não se encaixa dentro de nossas medidas; que a vida sempre irá transbordar a elas, nosso mestre nos leva a uma série de questionamentos:


Dessa observação, diz ele, surge então uma suspeita: será que a medida do nosso coração não se alarga, na medida em que auscultamos, acolhemos o novo sentido proveniente da vida, da realidade que está além, inesgotavelmente além da medida que nos damos a nós mesmos? Será que com a ampliação do nosso coração não começamos a ver a realidade diferente? Não será ali, nessa ausculta e nessa acolhida, que está a nossa responsabilidade mais radical e o nosso assumir essencial? (Frei Hermógenes Harada, Coisas, Velhas e Novas, pág. 276).


Podemos dizer, então, que a obediência caritativa é a convocação para, cada vez de novo, em cada conflito ou em cada coisa diferente, auscultar e acolher o novo sentido da vida. Isso significa assumir com responsabilidade a provocação que vem das diferenças que a vida, o prelado, o outro me apresentam. E comenta Harada:


A grande medida é o coração do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, no qual cabem Terra e Céu, justos e injustos, santos e pecadores, fiéis e infiéis e até mesmo aqueles que pregam na Cruz seu Filho muito amado. Eis a fonte da obediência caritativa. Obediência porque é escuta, acolhimento, atenção; caritativa porque animada e conduzida pelo vigor do amor-doação, “charis”: Jesus Cristo crucificado, eucaristizado, ágape [MF2].


No processo da busca do amor ou do seguimento de Cristo, no dia a dia dessa vida, o relacionamento pode, por vezes, tornar-se ainda mais conflitivo que na obediência verdadeira. O que eu penso, desejo e quero é muito melhor do que aquilo que o prelado pensa deseja e quer. Esse conflito, o próprio Jesus o experimentou. Por vezes, como nas tentações do deserto, na multiplicação dos pães, pensou que poderia realizar sua missão, salvando o mundo com soluções muito melhores do que a Cruz. Mas, esse não era o Plano, a Vontade do Pai. Por isso, seguiu e abraçou, cheio de amor, de caridade o caminho do Pai.


Nós nos denominamos seguidores de Jesus Cristo, mas, ignoramos ou não queremos fazer o que Ele ensinou e fez. Esquecemos que Ele nunca deu nem vez nem voz ao seu pequeno eu. Lembremos como, desde o começo de sua vida pública, a partir das famosas tentações no deserto, até seu último suspiro, nunca cedeu ao seu pequeno eu, mas sempre assumiu e fez tão só e unicamente a vontade do Pai.



Conclusão


Para seguir a Jesus Cristo, o discípulo precisa pôr-se de pé e carregar sua cruz, como diz São Francisco, no salmo VII do Ofício da Paixão. Carregar a própria cruz significa, pois, labutar e lutar consigo mesmo, para se superar, para dizer não ao homem adâmico, carnal, exterior e velho, a fim de poder dizer sim ao homem crístico, pneumático, interior e novo. A cruz se nos apresenta inevitável, inexorável, por que a nossa cruz somos nós mesmos. Na “Imitação de Cristo” nós lemos: A cruz, pois, está sempre preparada, e em qualquer lugar te espera. Não lhe podes fugir, para onde quer que te voltes, pois em qualquer lugar a que fores te levarás contigo e sempre encontrarás a ti mesmo [1].


Mas, esse ódio ao pequeno eu se vira e se revela como o verdadeiro amor a si mesmo. Para amar o próximo, incluindo nisso o inimigo, é preciso odiar a si mesmo, isto é: é preciso amar-se a si mesmo, dando-se para si mesmo uma medida muito maior do que aquela de nosso pequeno e tirânico eu, isto é, dando a si mesmo a medida do Grande Eu (do homem interior, novo, pneumático, crístico).


Como mãe, distante de seu filhinho, muito mais Deus, distante de nós, seus filhinhos prediletos, tem a necessidade de fazer tudo para estar conosco e para que nós tenhamos a possibilidade de estar com Ele. Quem compreendeu muito bem e sentiu de modo muito intenso e profundo a nobreza humilde desse mistério foi São Francisco, como lemos nesta passagem: tomado pelo espírito da Paixão do Senhor, logo que ouvia falar do amor do Senhor, ele se empolgava, ficava comovido e inflamado, como se a voz, que ressoava exteriormente, fosse um arco a fazer vibrar internamente as cordas do seu coração e exclamava: ‘Eis por que é necessário amar muito o amor daquele que muito nos amou’ (1B IX,1).



[MF1] Parece-me importante o fato de que este esvaziamento de si e dos próprios interesses acontece em vista da satisfação de Deus e do próximo. O bem particular cede lugar ao bem comum. Satisfazer não é meramente agradar. Satisfazer é tornar plena a realização da vida em favor do bem comum. Deus é o Bem sumo e originário e, como tal, o que torna bom, isto é, per-feito, tudo. Satisfazer a Deus é concorrer com o bem de todas as coisas e de todos, é concorrer com o bem universal. Satisfazer o próximo se dá em virtude deste satisfazer a Deus. Satisfazer ao próximo não é agradar ao próximo, mas ajudar o próximo a entrar nesta consonância do bem universal. Abrindo mão do bem particular (do melhor para a própria alma), o Filho de Deus promove o bem universal. Nisso, sua própria alma, aparentemente perdida, se salva, pois o bem verdadeiro e próprio da alma é encontrado na sua integridade, isto é, no seu ser pertencente ao todo. O que torna todas as ações humanas boas é, no fim das contas, a caridade. Ser per-feito na caridade é a perfeição máxima da realização humana. [1] Tomás de Kempis. Imitação de Cristo. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 61.



Para pensar e comentar:

1. O que Francisco entende por obediência caritativa e qual sua importância para o seguidor de Cristo?

2. Como hoje essa obediência pode dar-se em nossa vida?


Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes



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