53º Encontro 14/5/22 - 3ª Admoestação Da perfeita obediência - 4ª parte: Da perfeita obediência
- Frei
- 14 de mai. de 2022
- 9 min de leitura
3ª Admoestação - Da perfeita obediência
Da perfeita obediência
À obediência verdadeira e caritativa, segundo São Francisco e refletidas em nossos últimos encontros, vem somar-se ou melhor, consumar-se a perfeita. Francisco começa a descrição dessa obediência com uma afirmação bastante estranha para nós: E se o prelado ordenar algo contra sua alma, é lícito não obedecer-lhe, mas não se separe dele (7).
O estranhamento está na afirmação: é lícito não obedecer-lhe. É tão estranho que alguns tradutores preferem traduzir seguindo nossa compreensão usual: não lhe é lícito obedecer. Nessa última formulação, usual nossa, acentua-se a possibilidade de não obedecer, como que dizendo: “Que bom! Agora não preciso obedecer!” Já, no primeiro caso, a compreensão de Francisco é oposta. O acento está numa espécie de lamento, como quem dissesse, entristecido: “Mas, que pena! Agora não posso obedecer-lhe”.
Para Francisco, nosso gênero de vida tem como regência obedecer sempre, porque é assim que se rege o amor maior, Cristo: obedecer, obedecer e obedecer ao Pai e às suas criaturas! Assim viveu Jesus: obedeceu ao Pai do Céu e aos pais da Terra, Maria e José. Mas, obedeceu também às demais criaturas, amigas ou inimigas, como ao seu traidor Judas e aos maiorais judeus e romanos que o condenaram à morte. Isso é coisa inaudita! Para Francisco, só há uma exceção para não obedecer: quando for contra nossa alma, isto é, contra nossa identidade, nosso espírito ou carisma, nosso gênero de vida de cristãos ou franciscanos.
A segunda parte da frase contém o coração da perfeita obediência: não se separe dele. Ou seja, não deixe de servi-lo, de amá-lo e, se for preciso, morrer por ele e com ele. Francisco explica mais extensivamente essa perfeição na Carta a um Ministro.
Certo Ministro solicitara a Francisco o afastamento do cargo. Queria retirar-se para um eremitério e assim poder cuidar da salvação da alma. Uma causa, portanto, sumamente justa, importante e necessária, tão grande que, diante dela, Francisco dizia que se devia sacrificar tudo. Mas, por que então, agora não o atende. Para compreender a recusa é necessário ver a razão do pedido do Ministro. Ele estava sendo incomodado para além das contas. As solicitações e incomodações, por parte dos frades, e as chateações vindas de fora eram tantas que não conseguia mais nem rezar e nem cuidar de sua vida interior. Achava que sua alma estava em risco. A solução era, pois, pensava e desejava ele, retirar-se. Vem, então a surpreendente resposta de Francisco:
Ama os que te fazem essas coisas. Nenhuma outra coisa queiras deles, a não ser o quanto te der o Senhor. E, nisto ama-os com diligência e nem queiras que sejam cristãos melhores. E, isto te valha mais que o eremitério. Assim, quero conhecer se amas o Senhor e a mim, servo d’Ele e teu, se fizeres o seguinte: não haja no mundo Irmão que tenha pecado até não poder mais que, após ver os teus olhos, se afaste sem a tua misericórdia, se misericórdia buscar. E, se não buscar, pergunta-lhe se não quer misericórdia. Se, depois, pecar mil vezes diante dos teus olhos, ama-o mais que a mim para atraí-lo ao Senhor. Tem sempre misericórdia com tais Irmãos (CM).
Assim, podemos agora, compreender a frase da Admoestação: E se, por isso, tiver de suportar perseguição de alguns, ame-os mais diligentemente por causa de Deus.
Não é preciso muito esforço para perceber que Francisco está querendo levar o ministro para dentro da perfeita obediência de Cristo, que amou até o extremo seus perseguidores e algozes, entregando-se inteiramente nas mãos e à vontade deles. Famosa é a frase, ou melhor, a ordem dada por Jesus a Judas: O que (traição) tens a fazer faze-o logo (Jo 13,27), bem como a resposta a Pilatos: Nenhum poder terias sobre mim se não fosse dado por meu Pai! (Jo 19,11).
Vem, então, a sentença central dessa Admoestação: Pois, quem prefere sustentar perseguição a querer separar-se de seus Irmãos permanece verdadeiramente na perfeita obediência, porque expõe sua alma (Cfr. Jo 15,13) por seus Irmãos.
Essa obediência é perfeita em dois sentidos. Primeiramente porque, como o amor, também ela tende a maturar-se sempre mais. Nesse sentido, “perfeito”, aqui, não significa sem defeitos, santo, acabado, mas aquele modo de amar e seguir Jesus que nunca se deixa vencer por suas decadências, a ponto de sempre, depois de cada infidelidade, levantar-se e dizer: Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores (EG 3). Quem chega assim, no fim da vida, mesmo cheio de pecados, diz Francisco, é um frade perfeito. No fundo, o texto é uma profunda e amorosa exortação de um grande mestre, de um grande pai que segue o mestre dos mestres, Jesus Cristo, que dá sua vida pelos seus inimigos e o Pai de todos os pais, o Pai do Céu, que faz chover sobre justos e injustos, cair o sol sobre bons e maus. Por isso, diz nosso Papa: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete. Volta, sempre de novo, a carregar-nos aos seus ombros (EG 3). Eis a perfeita obediência de Deus!
Mas, essa obediência é perfeita também e porque é feita por causa de Deus, isto é, no modo de ser ou a partir de Deus, unido a Ele e com Ele. Enfim, uma obediência que nasce do vigor da obediência de Deus ou que é Deus; uma obediência que nasce da comunhão da obediência de Cristo na Cruz. Ao Pai que o abandona Ele O abraça exclamando: “Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito!” E, a tantos quantos o perseguiram e crucificaram, acolhendo-os, suplica em seu favor: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem!” Por isso, diz Francisco: E se, por este motivo, tiver de suportar perseguições de alguns, ame-os mais diligentemente ainda por causa de Deus (8).
Na raiz da perfeita obediência está, pois, a dinâmica do desejo de testemunhar (martírio) a pessoa amada, de abraçar como verdadeiro irmão aquele que me tira a vida. Tira a vida carnal, deste mundo, mas, com isso, me dá, de graça, sem nenhum merecimento meu, a vida espiritual, eterna, de Cristo. Por isso, dizia Francisco que a melhor de todas, na qual não havia nada de carne e sangue, era a obediência de ir “entre os infiéis por inspiração divina”, tanto para o proveito dos outros como pelo desejo do martírio. Achava que pedir essa obediência era coisa muito aceita por Deus (2C 152).
A última sentença soa como um alerta muito forte: Há, pois, muitos religiosos que, em vista de coisas melhores do que as ordenadas por seus prelados, olham para trás e retornam ao vômito da própria vontade (10). Para Francisco, há, pois, somente um único inimigo que pode corromper o seguimento de Cristo: querer seguir o próprio eu, fazer do seu “eu”, diz nosso Papa, sua religião.
Como acima, na obediência caritativa, também aqui, São Francisco não duvida que Cristo esteja se servindo do "prelado" a fim de continuar sua encarnação, seu “estar conosco até o fim dos tempos”. Pode-se e deve-se dizer do prelado o que Francisco diz do sacerdote e da Eucaristia: Vede, Irmãos, a humildade de Deus e derramai diante d’Ele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que sejais exaltados por Ele. Nada, pois, de vós retenhais para vós, para que vos receba a todos por inteiro Aquele que se vos dá todo inteiro (CO 23-29).
Era assim, para dentro de tal nível de nobreza e magnanimidade, que se movia Francisco: só sabia que Deus era seu único verdadeiro Pai; que Jesus Cristo, seu Filho muito amado, se expõe e se dá todo inteiro por nós, seus irmãos, até à morte e morte de Cruz e até caber num pedaço de Pão e num pouquinho de Vinho e agora num prelado. Eis a perfeita obediência!
O seguimento de Cristo não é uma mistura de um sim e de um não. Supõe e exige um “Sim” definitivo e total. Por isso, Francisco relembra o dito de Jesus a um jovem que queria segui-Lo, mas, pediu-lhe para que antes pudesse despedir-se de sua família (Cfr. Lc 9,62). Jesus, então, alerta-o de que isso é impossível, pois seria o mesmo que um agricultor pôr as mãos no arado e olhar para trás. Nesse caso, a lavra não acontece. E se acontecer estragará toda a plantação. Ora, o que está em jogo, aqui, não é a despedida dos entes queridos, mas a falta de decisão ou uma decisão inadequada, frágil para a grandeza do chamado de Cristo. Ou seja, quem quiser segui-Lo, tem que ter-Lhe um amor muito maior e mais forte que o amor dos familiares. E, para mostrar a gravidade e a abominação de quando alguém abandona o seguimento de Deus, de Cristo, Francisco usa o provérbio citado por Pedro: O cão voltou ao próprio vômito (Pr 26,11; 2Pd 2,22). A imagem é muito forte! Comer do próprio vômito deve ser uma das experiências mais amargas e abomináveis. Assim deve sentir-se aquele que experimentou a doçura do chamado, do seguimento e depois volta à vida do mundo. Como não seria amarga, azeda, asquerosa a vida para Francisco se, depois de 10 ou 15 anos de seguidor de Cristo, tivesse voltado atrás, para a vida do comércio, da cavalaria. Estaria comendo o que outrora vomitara! E, em tom de profeta, Francisco denuncia: Esses são homicidas e por seus maus exemplos, põem a perder muitas almas.
Se lamentamos e condenamos profundamente os que matam nossos corpos, o homem exterior, o quanto não deveríamos lamentar e condenar, de igual modo e muito mais, quando se perverte ou se mata o homem interior. O homem que perde sua alma torna-se apenas um cadáver ambulante. Mas ai daquele que está na origem desse homicídio espiritual, o verdadeiro assassino do homem! Por isso, diz Jesus: Mas, quem escandalizar um destes pequeninos, que creem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e se submergisse na profundeza do mar (Mt 18,6).
Da perfeita obediência, hoje
A perfeita obediência sempre está relacionada ao Outro, à Igreja e à Fraternidade, assim como a obediência de Cristo sempre esteve relacionada ao Pai e aos outros e até mesmo às autoridades religiosas e civis de seu tempo. Não há, pois, como ser cristão, ser Igreja ou pertencer a uma Fraternidade sem o exercício desse dom: a obediência ao outro.
Segundo o Documento Vida Fraterna em Comunhão, nas últimas décadas, assistimos a uma contestação da autoridade, tanto no âmbito da Igreja, da família como da Vida consagrada ou cristã. Na raiz desse processo, diz o mesmo documento, está a unilateral e exacerbada acentuação da liberdade que contribuiu para difundir, no ocidente, a cultura do individualismo (VFC 4 b). Nosso Papa Francisco, fala na “Religião do ‘Eu’”. E conclui aquele documento: Por isso, para viver como irmãos e irmãs é necessário um verdadeiro caminho de libertação interior. [...] Esse caminho de libertação que conduz à plena comunhão e à liberdade dos filhos de Deus exige, porém, a coragem da renúncia a si mesmo na aceitação e no acolhimento do outro, a partir da autoridade (VFC 21), uma renúncia ao espontaneísmo e à instabilidade dos desejos. Por isso, o altíssimo ideal comunitário comporta necessariamente a conversão de qualquer atitude que causasse obstáculo à comunhão (VFC 23).
E então vem esta bela conclusão:
Assim a comunidade se torna uma «Schola Amoris » (Escola de Amor) para jovens e adultos, uma escola onde se aprende a amar a Deus, a amar os irmãos e as irmãs com quem se vive, a amar a humanidade necessitada da misericórdia de Deus e da solidariedade fraterna (VFC 26).
O Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Gaudete et Exultate, também nos exorta a ser perfeitos na obediência:
Quando Deus Se dirige a Abraão, diz-lhe: «Eu sou o Deus supremo. Anda na minha presença e sê perfeito» (Gn 17,1). Para poder ser perfeitos, como é do seu agrado, precisamos viver humildemente na presença d’Ele, envolvidos pela sua glória; necessitamos de andar em união com Ele, reconhecendo o seu amor constante na nossa vida. Há que perder o medo desta presença que só nos pode fazer bem. É o Pai que nos deu vida e nos ama tanto. Uma vez que O aceitamos e deixamos de pensar a nossa existência sem Ele, desaparece a angústia da solidão (Cfr. Sl 139/138, 7). E, se deixarmos de pôr Deus à distância e vivermos na sua presença, poderemos permitir-Lhe que examine os nossos corações para ver se seguem pelo reto caminho (Cfr. Sl 139/138, 23-24). Assim, conheceremos a vontade perfeita e agradável ao Senhor (Cfr. Rm 12, 1-2) e deixaremos que Ele nos molde como um oleiro (Cfr. Is 29, 16). Dissemos tantas vezes que Deus habita em nós, mas é melhor dizer que nós habitamos n’Ele, que Ele nos possibilita viver na sua luz e no seu amor. Ele é o nosso templo: «Uma só coisa (…) ardentemente desejo: é habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida» (Sl 27/26, 4). «Um dia em teus átrios vale por mil» (Sl 84/83, 11). N’Ele, somos santificados (GE 51).
Mais adiante o Papa concretiza ainda mais o que é ser perfeito no discipulado cristão, quando fala da pobreza de espírito e cita a “santa indiferença” de Santo Inácio: «É necessário tornar-nos indiferentes face a todas as coisas criadas (em tudo aquilo que seja permitido à liberdade do nosso livre arbítrio, e não lhe esteja proibido), de tal modo que, por nós mesmos, não queiramos mais a saúde do que a doença, mais a riqueza do que a pobreza, mais a honra do que a desonra, mais uma vida longa do que curta, e assim em tudo o resto». (GE 69).
Para pensar e compartilhar:
1. Por que Francisco fala em três obediências? Qual a característica da “Perfeita obediência”? O que significa “perfeito” nesse caso? Por que Franciso dá tanta importância à obediência?
2. Qual o maior ou maiores entraves para acolher a mensagem de Francisco acerca da “Perfeita obediência”?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
Continue bebendo do espírito deste tema:
- indo ao texto-fonte: 53º Encontro - 3ª Admoestação - Da perfeita obediência
4ª parte: Da perfeita obediência
- postando seus comentários;
- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 53º Encontro - 3ª Admoestação - Da perfeita obediência - 4ª parte: Da perfeita obediência
Inscreva-se e curta nossos vídeos
Próximo Encontro: 54º Encontro - A via da escuta consumada na liberdade dos Filhos de Deus
Comments