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50º Encontro (26/02/22) - 3ª Admoestação - Da perfeita obediência - 1ªparte (continuação)

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 26 de fev. de 2022
  • 10 min de leitura



Da perfeita obediência



1ª Parte (continuação)


A renúncia não tira, ela dá: dá o vigor da identidade

e a força inesgotável da simplicidade



Este título se baseia num texto do pensador Martin Heidegger, intitulado, “O Caminho do Campo”, de 1949. Neste texto, o pensador fala do apelo do “Caminho do Campo” como sendo o apelo do ser, isto é, o apelo do curso dos seres, do abrir caminho, do tomar rumo, da viagem de sentido, que está sempre se dando, em toda a parte e a todo o momento. O ser dos seres só se dá como caminho. Os chineses chamam de “Tao”, o caminho, isto é, o curso de todos os seres, de céu e terra, do próprio ser humano em sua vida. Ao falar do “Caminho do Campo”, o pensador evoca, então, o “Simples”. Ele diz:


O Simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer e amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo, protege seus dons. O alcance e a envergadura de todas as coisas maduras, que demoram em torno do Caminho, é que instauram mundo. Como diz Eckhardt, o velho mestre de vida e de leitura: no não dito de sua linguagem é que Deus é Deus.


Mas o apelo do Caminho do Campo só fala enquanto houver homens que, nascidos em sua atmosfera, puderem escutá-lo. São obedientes à sua origem e não escravos de artifícios. É em vão que o homem tenta pôr em ordem toda a terra se não escutar o apelo do Caminho do Campo. O perigo iminente é ficar o homem de hoje surdo à linguagem do Caminho, cabendo-lhe nos ouvidos apenas o ruído das máquinas que se lhe afiguram, então, como a voz de Deus[1].


Neste mesmo texto, o pensador fala da dissipação em que vive o homem destes nossos tempos, que aqueles que conhecem o Simples são cada vez mais raros, mas que são eles os que amam a liberdade e os que suplantam as aflições com uma “última jovialidade”, com uma “jovialidade sábia”, com um “saber jovial”, que é “serenidade”. E diz: “a serenidade sábia é uma abertura para o eterno”[2]. Ao fim deste discurso, ele, depois de evocar a badalada do sino de sua terra natal, sino que ele mesmo, quando menino, filho de sacristão, badalava, agora evocando os mortos das duas guerras mundiais, diz:


O Simples se faz ainda mais Simples. O Sempre o Mesmo provoca estranheza e liberta. O apelo do Caminho do Campo é agora totalmente claro: É a alma que fala? É o mundo? É Deus?


Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade. O apelo nos faz morar de novo numa Origem distante, onde a terra natal nos é restituída[3].


Frei Hermógenes Harada, nos seus “Fragmentos de reflexões fenomenológicas”, coletados no livro “Iniciação à filosofia”, comenta este texto de Martin Heidegger. Ali, Harada fala da dificuldade da leitura deste texto, a qual nos é trazida sobretudo porque hoje nós ouvimos e vemos e lemos tudo à luz da relação sujeito-objeto, e o que está sendo dito neste texto não pode ser ouvido e compreendido a partir desta relação. Habitar na paisagem do Simples se torna, assim, coisa rara para nós, homens que tudo processam em termos de objetividade e subjetividade. Tal processamento constante se deixa evocar com a expressão “desertificação do niilismo”. Neste contexto, o ver simples do Simples é coisa muito rara. Mas quem tem ouvidos para o apelo do Caminho do ser, que é o apelo do Simples, certamente, é quem guarda as fontes em meio ao assolar e desolar deste deserto de nossa época.


Tendo esta reflexão como plano de fundo, vamos agora reler a Admoestação III dos escritos de São Francisco de Assis, que recebeu o título deDe perfecta obedientiaDa obediência perfeita. Nossa proposta de interpretação é a seguinte: a obediência é, na espiritualidade de São Francisco, caminho de libertação para a liberdade dos filhos de Deus. A renúncia que ela comporta é, assim, condução à identidade e doação da força inesgotável da simplicidade. A renúncia concede, assim, alegria, isto é, a jovialidade sábia ou a sabedoria jovial, que é serenidade, paz. No seu texto, Heidegger evoca Mestre Eckhart como “mestre de vida e de leitura” que alcançou e ensinou algo desta sabedoria jovial. Num outro texto da mesma época, Heidegger menciona as admoestações de Mestre Eckhart, onde o dominicano fala da pobreza do espírito como abertura de caminho para esta serenidade, que é concedida com o saber jovial ou a jovialidade sábia dos que “conhecem o Simples”. Nossa hipótese de trabalho é a seguinte: São Francisco de Assis foi alguém que tinha a mais alta ciência deste saber jovial e a mais alta experiência desta jovialidade sábia. Suas admoestações são, assim, para nós, homens do deserto do niilismo, salutares e salutíferas, pois nos abrem o acesso às fontes do vigor da vida e serenidade.


A Admoestação III recebeu o título de “Da perfeita obediência”. Para falar da “perfeita obediência”, Francisco começa falando da “verdadeira obediência” e da “caritativa obediência”. Mas antes de tudo, ele menciona dois ditos do Senhor concernentes à renúncia. Antes, porém, de avançarmos, é preciso recordar três pontos para a nossa consideração:


1. Este é um texto espiritual, religioso, cristão, dirigido a frades, antes de tudo. Assim, a obediência, aqui, tem um sentido espiritual, religioso, cristão. Não está em jogo a obediência como relação de poder: “quem pode, manda; quem tem juízo, obedece”. Não. Trata-se de obediência como virtude, isto é, vigor do espírito, isto é, da vida da vida, como iluminação do saber jovial, da jovialidade sábia. Em jogo está o aprender a via da obediência como tal vigor do espírito.


2. Obediência quer dizer, enquanto tal, um modo de ser humano fundamental, caracterizado como abertura da escuta do apelo da origem, isto é, do Simples. E “Simples” significa: “Uno”. Religiosa é esta obediência, à medida que põe em jogo o recolhimento do homem no Uno. Enquanto vigor do espírito, próprio da experiência religiosa, “obediência” quer dizer, aqui, via desde o Uno, no Uno, para o Uno. Cristã é esta obediência, à medida que ela tem como medida, sentido, exemplar, o modo de ser de Jesus Cristo. Obediência é o modo de ser de Jesus Cristo e este Crucificado. É pela obediência da Cruz que ele fez a ligação de céu e terra, dos humanos mortais com o divino, melhor, com a deidade do Pai, princípio sem princípio, origem de todo o ser e de toda a vida. Por sua encarnação, ele foi todo ouvidos ao apelo do Pai, na espera do inesperado, no acolhimento de tudo que lhe acontecia, de tudo que lhe advinha e sobrevinha. Esta atitude é o que, na linguagem do Evangelho, se chamou de “fazer a vontade do Pai”. A obediência de que fala o Evangelho é, pois, a obediência da fé. Jesus Cristo Crucificado é o principiador e o consumador da fé. Esta obediência espiritual, religiosa, cristã é, assim, discipular e filial. É atitude constante de pertencimento ao encontro. Obediência é, aqui, em última instância, uma questão de amor, de escuta no e em favor do pertencimento ao outro, sobretudo, ao radical outro da fé, o Não-Outro, o Deus divino do encontro, a que Jesus chamava de “Abba”, Pai.


3. A admoestação trata da “perfeita obediência”. O caráter do “perfeito” aqui, porém, não tem nada de estático, não tem nada a ver com um padrão, com uma imitação reduzida a mero decalque de um modo de comportamento de outro. Nas palavras de frei Hermógenes Harada: “Perfeito para o medieval não é o "perfeitinho", mas aquilo que foi limado pela realidade, que foi bem ex­perimentado e chegou ao "ponto". Perfeito é sempre uma história, não um estado. Obediência perfeita, portanto, significa atitude de ausculta amadurecida, bem trabalhada, que ficou no ponto”.


Tendo em mente estes três pontos como plano de fundo, podemos, agora, ouvir a abertura da Admoestação III.


“Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33)” ... e: “Quem quiser salvar sua alma, perdê-la-á (Lc 9,24)”.


Em se tratando de obediência discipular, a palavra, o dito do Mestre é princípio. Os ditos do Senhor são a “autoridade”. A palavra “autoridade”, aqui, porém, não tem a ver com poder de dominação. Tem, antes, a ver com “vigor que aumenta”, que faz crescer, no caminho, a claridade da verdade, a iluminação da sabedoria, bem como a vitalidade da vida. Para o cristão, o discípulo de Jesus Cristo, os seus ditos têm este caráter de autoridade. São princípios, isto é, são o que, em última instância, vigora, rege, governa, o caminhar, do começo ao fim, na dinâmica de um perfazer-se humano. Em todo o seu fazer ou deixar, em todo o seu perfazer-se, o discípulo cristão se mede com os ditos deste Mestre. Se entendermos espiritualidade como arte e como ciência – e é assim que os medievais entendem – todo o operar e todo o saber que o orienta deve se ater aos princípios. A espiritualidade é arte, no sentido do saber perfazer-se do humano. Trata-se de saber fazer o próprio ser e de ser o próprio fazer em todo o operar. Espiritualidade é arte, pois nela o humano se produz, isto é, se perfaz, se consuma a si mesmo, através de suas obras, de suas operações, de suas ações e omissões. A arte é uma ciência, isto é, uma compreensão. Mas é uma compreensão que cresce com o próprio fazer. Neste saber a experiência tem muita importância. Mas, o humano não pode confiar somente na sua experiência. Ele tem que se ater à compreensão dos princípios. A arte e a ciência da espiritualidade só de fato se realizam quando o discípulo emprega os princípios no “a-cada-vez” de cada nova experiência.


As duas citações do Evangelho são, aqui, palavras-princípio, palavras-guia. Elas falam de renúncia. De novo, é preciso atentar: aqui trata-se de entender renúncia como atitude discipular, cristã. O sentido último de o que seja renúncia há que ser buscado na própria vida e morte de Jesus Cristo.


Entretanto, antes de entrar propriamente neste núcleo essencial da renúncia cristã, isto é, evangélica, crística, é preciso que resgatemos um pouco o sentido da palavra “renúncia”.


A palavra da língua portuguesa “renúncia” vem do latim renuntiatio, que quer dizer declaração, anúncio, publicação; proclamação. O verbo latino é “renuntiare”: anunciar em resposta a; proclamar (o resultado de uma eleição). Só em sentido derivado é que significa: anunciar a retirada de, revogar, abandonar e desdizer.


Um sentido semelhante é colhido em uma língua não latina, o alemão. O verbo é Verzeihen. Este verbo significa comumente desculpar, relevar. Num uso antigo, significa, porém, abdicar de uma coisa, renunciar. O verbo, porém, dá a entender uma intensificação (ver-) do mostrar (Zeihen, indicar como Zeigen, mostrar). Renunciar é dizer, no sentido de mostrar e anunciar. É a mesma palavra que o latino dicere (dizer, no sentido de mostrar) e o grego deiknymi (mostrar, fazer ver, indicar, fazer conhecer, revelar, explicar, denunciar, designar, demostrar, provar). Verzeichen, como Zeihen, está, pois, na esfera do dizer. Em alemão, temos o verbo sagen, dizer, no sentido de deixar ver em mostrando (primitivamente, Sagan, donde vem Sage, saga).


O que se resume de tudo isto sobre o que é renunciar? Podemos resumir: renunciar é re-anunciar. A renúncia não é mero abandono, abdicação, não é mera perda. A renúncia é uma resposta de re-anúncio. Renúncia é prontidão para um relacionamento positivo com aquilo que interpela, chama. A negação da renúncia não é mera negação, mas ab-negação, isto é, uma negação que se abre para um relacionamento mais originário. Daí, a alegria da renúncia, de que fala as parábolas evangélicas da pérola encontrada e do tesouro escondido no campo; ou de que falam as fontes franciscanas, por exemplo, no Fioretto que conta a conversão de frei Bernardo, primeiro companheiro de São Francisco. Não há tristeza na renúncia. Se há tristeza, é no aprender a renunciar, o que significa sempre a necessidade de um desprendimento e de uma transformação, de uma mudança da mente, para entrar na positividade daquilo a que a renúncia abre acesso. Renunciar não é só negar-se à reivindicação de algo, recusar alguma coisa; renunciar é um voltar-se positivamente para aquilo a que se responde e se entrega como o que importa, como o valor, o tesouro do coração. A renúncia não tira: ela dá o vigor da nova identidade. Ela abre caminho para o inesgotável da simplicidade. A renúncia se dá como travessia, passagem, de uma identidade inválida, por que invalidada, para uma nova identidade e seu vigor. A renúncia, como anúncio, proclamação, diz aquilo que é o tesouro do coração. O humano é sempre, em última instância, aquilo que ele ama. A renúncia diz, proclama, portanto, o que é, quem é, um ser humano, a partir de seu amor. Por isso, na renúncia está em jogo uma testemunha, uma confissão, um louvor. A renúncia se cumpre, portanto, como o canto de uma saga. Ela é sonância e ressonância, percussão e repercussão de um encontro.


São Francisco, evocando a dinâmica da renúncia, menciona dois ditos do Senhor:


“Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33)” ... e: “Quem quiser salvar sua alma, perdê-la-á (Lc 9,24)”.


Frei Hermógenes Harada captou bem o sentido da renúncia ao interpretar estes dois ditos do Senhor no horizonte de compreensão do discipulado cristão, expondo assim:


"QUEM NÃO RENUNCIA A TUDO O QUE POSSUI NÃO PODE SER MEU DISCÍPULO". A renún­cia é uma estrutura da afeição e indica relacionamento de discípulo; não é sa­crifício, mas condição para ser novo em Jesus Cristo. Só é capaz de renunciar quem tem "afeição". A afeição, no início muito eufórica e depois mais assentada, faz com que a pessoa levante o ânimo, se doe de corpo e alma àquilo que a afeiçoou e se engaje em todas as áreas da vida.


E: "QUEM QUISER SALVAR SUA ALMA, PERDÊ-LA-Á". Alma é o âmago, aquilo que almeja o viver, aquilo que nos é mais caro, sem o qual não somos mais nós mesmos; é como dizer que fora do seguimento de Jesus não há mais "alma": minha identidade é seguir a Ele, nele empato tudo o que sou, tudo o que tenho de mais precioso.


Os ditos do Senhor estão, pois, indicando, isto é, mostrando, revelando o sentido da renúncia na obediência, que é caminho para a liberdade dos filhos de Deus. A renúncia não tira, ela dá: dá o vigor da identidade, dá o inesgotável da simplicidade, isto é, da unidade.


[1] Heidegger, Martin. “O Caminho do Campo (1949)”. In: Revista Vozes, ano 71, n. 04, 1977, p. 47. [2] Idem, ibidem. [3] Idem, p. 48.



Para pensar, conversar e partilhar:

1. Por que Francisco, quase sempre começa seus Escritos com um dito do Senhor?

2. Por que a renúncia evangélica é exercício e caminho de perfeição? De que perfeição se trata?



Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes




Continue bebendo do espírito deste tema:


- indo ao texto-fonte: 50º Encontro - 3ª Admoestação - Da perfeita obediência - 1ª parte (continuação)


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Da perfeita obediência - 1ª parte (continuação)

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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