49º Encontro (19/02/22) - 3ª Admoestação - Da perfeita obediência
- Frei
- 19 de fev. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 21 de fev. de 2022
Da perfeita obediência
1ª Parte
A renúncia não tira, ela dá: dá o vigor da identidade
Introdução
Vamos dar início, hoje, à leitura e ao estudo da 3ª Admoestação de São Francisco, intitulada “Da Perfeita Obediência”.
O texto original latino das 28 Admoestações não contém nem os títulos e nem a divisão em capítulos. Tanto aqueles como essa foram introduzidos, posteriormente, pelos críticos e editores. Elas são transcritas como uma peça única, inteiriça e corrida. Essa maneira como vem elencados no original nos ajuda a ver melhor e com mais presteza a lógica do seu pensamento, ou melhor, da experiência mística de São Francisco.
Assim, depois de anunciar o mistério, o dom maior do Pai, sobre o qual se inicia, se funda, nasce e cresce nossa nova existência de humanos e de toda a Criação – Cristo crucificado-ressuscitado-vivo-eucaristizado (Cfr. Ad 1: Do Corpo do Senhor); depois de anunciar que, para nós, de nossa parte, fundamentar e fazer florescer essa nossa nova existência sobre esse mistério, ao contrário de Adão, precisamos entrar na vontade de Deus; finalmente, que precisamos desprender-nos de nossa própria vontade (Cfr. Ad 2: Do mal da própria vontade), Francisco, na terceira Admoestação, anuncia o COMO vai se dar esse processo: pela obediência perfeita (Ad 3).
O título não deixa de provocar estranhamentos. Primeiramente, porque não é costume nosso falar em perfeita obediência. Falamos, simplesmente, em obediência. Pode-se perceber que Francisco não está falando da nossa obediência doméstica, caseira, funcional, profissional ou ética. Para ele é evidente que o homem deve seguir as leis da natureza, de seu grupo social, de sua profissão ou vocação; que o religioso deve ter assimilado tão bem essa obediência que não precisa mais falar dela. Além do mais, basta que ele siga o bom senso, a boa consciência, comum a todo homem. Mas, acima de tudo, como em quase todos os seus Escritos, ele está se dirigindo, explicitamente, para aqueles que querem seguir Jesus Cristo mais de perto, a modo de profissionais, como sua Mãe, Maria, os Apóstolos, etc. Por isso, a obediência, nesse caso, tem que ser perfeita.
Além, do título, também o corpo do texto nos surpreende. Francisco fala em três obediências como o crescendo de um jogo, trabalho, sinfonia ou ópera, com seu “gran finale!” Por ser uma obra, um fazer, ele fala de três tipos, ou melhor graus ou níveis de obediência: a verdadeira, a caritativa e a perfeita. Isso revela que seu falar se dá a partir de uma profunda experiência na imitação Daquele que foi obediente ao Pai, até a morte e morte de Cruz. [MF2]
Por isso, ele não fala da obediência num sentido genérico e conceitual; não se preocupa em elaborar um tratado, mas, em termos bem concretos, vê e apresenta a graça da obediência, como virtude ou vigor evangélico de Jesus Cristo, nascendo, crescendo e se consumando no dia a dia dele e dos seus seguidores. Por isso, fala, por exemplo, em oferecer-se todo nas mãos do seu prelado..., em sacrificar voluntariamente suas vontades a Deus..., empenhe-se em plenificar, etc. Ao longo dos próximos encontros iremos abordar uma por uma, essas três obediências. Hoje, vamos nos ater apenas aos dois ditos que dão o início, isto é, seu fundamento, sua raiz.
1. Os ditos do Senhor acerca da renúncia
Já dissemos que Francisco gosta, e é de seu costume, iniciar seus Escritos mencionando seu Senhor e citando explicitamente algum de seus ditos. Esse é, sempre, o princípio de tudo quanto diz, fala, faz ou deixa de fazer. E isso, não por mero formalismo, mas porque, desde seu grande Encontro com o Crucificado de São Damião e com o Evangelho, na igrejinha da Porciúncula, sua vida não tem nenhum outro princípio, ponto de partida e rumo senão o cultivo da graça da alegria, do entusiasmo nascido desses Encontros originários. Procurar desvendar, sempre de novo, a riqueza de seu significado, passou a ser seu “pão de cada dia!” Isso significa que, nesse caso, sua admoestação nasce e floresce a partir do Senhor e de seu Evangelho. É semelhante ao rio que, só pode realizar o grande percurso de sua caminhada, fecundando terras e saciando a sede das pessoas e dos animais, porque suas águas nascem e borbulham continuamente da gratuidade da fonte. Ou seja, Francisco não vai falar a modo de jornalista ou de professor que dá uma aula ou conferência sobre a Obediência evangélica, mas convidar o leitor à escuta do mistério da própria obediência de Jesus Cristo, acontecendo em sua vida e na vida das criaturas todas. Assim, poderíamos parafrasear o título “Da perfeita Obediência” por “Do sumo da Obediência de Jesus Cristo crucificado”.
Quem vai ditar, portanto, como deve ser a obediência evangélica ou de um seguidor de Cristo, não é ele, Francisco, como ninguém, nenhum outro mestre, mas o próprio Senhor que foi obediente ao Pai até à morte e morte de Cruz. Vamos, então, nos deter, primeiramente, nestes dois ditos:
Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33);
e:
Quem quiser salvar sua alma, perdê-la-á (Lc 9,24).
Em ambos os ditos, soa forte o tom da radicalidade evangélica. Radicalidade significa vigor que vem da raiz. No caso, a alegria da graça do encontro com a Boa Nova, o Evangelho, o próprio Jesus Cristo. É da natureza do vigor da alegria do encontro, levar a pessoa, atingida por essa graça, a renunciar à própria vontade, a deixar para trás todos os seus amores a fim de poder entregar-se e servir ao seu novo, grande e único amor; é natural, portanto, que renuncie a tudo, até à própria alma, à própria identidade, à própria vida, enfim, para, assim, ganhar uma nova alma, uma nova identidade, uma nova vida, uma nova pessoa: a alma, a identidade, a vida, a pessoa da pessoa amada. Por isso, anunciava São Paulo: para mim viver é Cristo! (Fl 1,21). O amado, torna-se assim um anúncio vivo da pessoa que a ama. Em nosso caso: Jesus Cristo crucificado. Assim, foi Cristo! Em tudo que fazia, até à morte e morte de Cruz, buscava a alma, a identidade, a vida, a pessoa do Pai. Esta foi sua Boa Nova: o anúncio vivo do Pai, podendo dizer a Filipe: Filipe, quem me vê, vê o Pai! (Cfr. Ad 1).
Da mesma forma, o seguidor de Jesus Cristo, que procura fazer da vontade Dele sua vontade, anuncia Jesus Cristo, de modo que todo aquele que o vê deveria poder ver Jesus Cristo. Eis o reverso da renúncia do seguidor de Cristo: o anúncio, a Boa Nova ressoando, séculos afora, a melhor e mais frutuosa evangelização!
Vista desse modo, a renúncia não tira: ela dá a força da identidade do discípulo de Cristo, tornando-o filho no Filho, um com o Pai, que vive do e no Espírito Santo. Mestre Eckhart diz que a palavra de Jesus: quem quiser vir a mim deve renunciar a si mesmo e negar-se a si mesmo e tomar a sua cruz (Mt 16,24) não é um preceito, mas uma promessa acerca do modo como todo o sofrer e fazer e viver do homem se transforma em alegria e deleite. É, na verdade, uma recompensa. Assim, a renúncia em vez de mera negação, é “re-anúncio” da graça do chamado e da resposta ao seguimento de Cristo Crucificado.
Assim, toda vez que o discípulo, movido pela graça do encontro e do chamado, renuncia à sua própria vontade, está anunciando a grande obediência de Jesus Cristo que foi obediente ao Pai, até à morte e morte de Cruz. Portanto, na obediência do discípulo, torna-se presente a obediência do Mestre, Cristo.
Dessa forma, na Cruz, Cristo teve toda sua recompensa: a honra de poder testemunhar até à morte o amor, a paixão do seu querido Pai. Assim, renunciando à própria vontade e à própria vida, consumou a busca de sua identificação com o Pai: “Eu e o Pai somos Um!” Eis seu ganho maior, seu lucro, sua recompensa! É como mãe que ao doar-se ou morrer pelo seu filho, ganha a maternidade em sumo, ganha seu filho: ela e o filho são um. Por isso, mãe que é mãe, na pureza dessa vocação-missão, não precisa de outra recompensa. Cristo na Cruz ganha do Pai sua verdadeira identidade de Filho muito querido.
2. Obediência evangélica, hoje
Assim, a partir do chamado, o discípulo já não vive mais a partir do mundo e de suas significâncias e pseudo valores, mas a partir de Cristo e do seu seguimento. Renunciar não significa desinteressar-se do mundo, mas direcioná-lo segundo os princípios do Reino de Deus. Entre esses princípios está o do cuidado, do pastoreio de todas as criaturas como irmãs; está, também, o princípio da destinação universal de todos os bens terrestres, pois a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos (LS 93). Nesse sentido a renúncia evangélica passa a ser um re-anúncio. Ou seja, aquele que segue a Jesus tem a graça de re-anunciar (anúncio em duplo) uma nova identidade de si mesmo e das coisas desse mundo e receber de volta uma nova alma que o leva à comunhão com tudo e com todos, não mais a partir do seu eu, de sua gente, da sua vontade própria, mas, sim, a partir da leveza da graça do encontro e da comunhão com Aquele que é a raiz, a fonte, a origem da nova Humanidade e da nova Criação. Nesse sentido, a renúncia não tira, mas dá: dá a graça de uma nova alma que nos leva a viver da, na, e para a gratuidade de Deus nosso Pai, o Pai de Jesus Cristo crucificado.
É o que nos diz nosso Papa Francisco numa de suas locuções na Hora do Angelus: nós devemos responder com o testemunho de uma vida que se doa no serviço. Uma vida que toma sobre si o estilo de Deus: proximidade, compaixão, ternura e se doa no serviço. Trata-se de plantar sementes de amor, não com palavras que voam para longe, mas com exemplos concretos, simples e corajosos.
É o vigor operativo da obediência evangélica, isto é, da escuta atenta e amorosa de quem se tornou filho de Deus no Filho único de Deus!
Parece-me que em Francisco o profissional e o amador ou diletante se compõem numa unidade. Em Francisco, a vida do espírito (evangélica, seguimento de Cristo) é profissional: um perfazer do humano através do perfazer da obra. É amadora ou diletante, não no sentido usual, mas no sentido de ser sempre de novo brotada do amor e de nunca se instalar na oficialidade pura e simples... Francisco permanece, neste segundo sentido, sempre um “idiota’.
Para pensar, conversar e comentar:
1. Por que São Francisco fala em três obediências? Quais são?
2. Por que no seguimento de Cristo como no amor a renúncia é um ganho e a perda um lucro?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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