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48º Encontro (31/12/21) - Natal II - Recordar o sinal e o mistério da noite silenciosa

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 30 de dez. de 2021
  • 10 min de leitura


Natal II


Recordar o sinal e o mistério da noite silenciosa

DA DEVOÇÃO AO NATAL DO SENHOR E COMO QUERIA QUE TODOS,

ENTÃO, FOSSEM SERVIDOS NESSA OCASIÃO



No Encontro de hoje, voltamos, mais uma vez, nossa atenção para o mistério do Natal, nomeado pela liturgia como “Solenidade da Natividade do Senhor”. Num texto intitulado “Reflexões de quem não sabe o que é a Oração”, frei Hermógenes Harada escrevia: “Quem sabe... A en-toação da oração é uma Festa. Algo como Mistério divino do Jogo humano e Mistério humano do Jogo divino”. E lembrava uma passagem do livro bíblico dos Provérbios, que põe na boca da Sabedoria as seguintes palavras: “Quando assentou os fundamentos da terra, ali eu estava qual criancinha ao seu lado, era dia por dia a delícia, em brincando todo o tempo diante dele...” (Pr 8, 22-30).


Para São Francisco, o Natal era a festa das festas. É que nesta festa se celebra a “Natividade do Senhor”. Em vez de natividade, poderíamos falar de “nascividade”, isto é, do vigor de nascer. Nascer é irromper, brotar, rebentar, eclodir, explodir, vir à luz, é parousia, isto é, vir à presença. Todo nascimento está envolto em mistério. Mas, na Natividade do Senhor celebramos todas as natividades e, nelas, o mistério da Vida, da própria Realidade em gênese, em irrupção, pois como diz São João: no princípio de cada coisa, de cada vida, está a Palavra, a Palavra que é Deus (Cfr. Jo 1,1).


Num auto de Natal, o poema “Morte e vida severina”, o poeta João Cabral de Melo Neto narra um diálogo entre o Retirante Severino e o “morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio”, “Seu José, mestre carpina”. O Retirante severino pensa em saltar da ponte e, assim, saltar da própria vida, abandonando-se ao seu desespero, para a morte. Ele pergunta:


Seu José, mestre carpina,

que diferença faria

se em vez de continuar

tomasse a melhor saída:

a de saltar, numa noite,

fora da ponte e da vida?


A conversa entre os dois se interrompe quando, de repente, uma mulher anuncia o advento do filho ao mestre carpinteiro, seu José:


Compadre José, compadre,

que na relva estais deitado:

conversais e não sabeis

que vosso filho é chegado?

Estais aí conversando

em vossa prosa entretida:

não sabeis que vosso filho

saltou para dentro da vida?

Saltou para dentro da vida

ao dar seu primeiro grito;

e estais aí conversando;

pois sabei que ele é nascido.


O menino é saudado por tudo e por todos. “Todo o céu e a terra lhe cantam louvor”. Vizinhos, amigos, duas ciganas somam-se ao céu e à terra em seu louvor. Começam a chegar pessoas trazendo-lhe presentes. As duas ciganas falam oráculos. Outros, mais próximos, também entoam os seus testemunhos. Depois de toda esta celebração popular para o menino recém-nascido, seu José retorna e volta a falar com Severino, o Retirante. Ele proclama a fé do mistério da natividade que ressoa, repercute, no nascimento de toda a criança, mesmo, melhor, especialmente, das mais humildes, das mais pobres, das mais sofridas. A resposta de seu José conclui o poema:


— Severino, retirante,

deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;

nem conheço essa resposta,

se quer mesmo que lhe diga;

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é

esta que vê, severina;

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu

com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.


Natividade é a festa da nascença da vida vigendo na vida nascente. Como mistério, a nascente da vida se retrai, se vela, se encobre a si mesma, com sagrado pudor. Nascer é saltar do nada para a vida.


Esta pobreza e esta riqueza da fonte do ser, da vida, se doa e se retrai, se mostra e se encobre com sagrado pudor, no Menino de Belém, na criança divina, melhor, no Deus criança, deitado em meio a palhas, reclinado num presépio, isto é, numa manjedoura, num coxo, entre boi e burro, qual alimento, pão da vida do mundo.


O sinal admirável do presépio, melhor, o mistério que ele deixa e faz ver, se retrai. E se retrai, por sua simplicidade.


Simples significa o que não tem dobras, o sem plicatura, sem implicação, complicação, explicação. É o que é aberto, exposto, disposto, como uno. É o sem enrolação, sem complexo. É o originariamente livre. É o que se retrai a todo o uso e a todo o abuso. É o que se retrai a toda a análise (decomposição) e síntese (composição). O simples só se dá a um olhar que seja também simples, singelo. Só o ver simples vê o presépio como sinal do mistério. Sinal que não remete ao mistério. Sinal que é a próxima auto-mostração do mistério como mistério. Os pastores, que eram simples, viram o presépio e creram, isto é, nele, acolheram o mistério do Deus vindouro, estranho Deus.


O ver simples não é objetivo, nem subjetivo. É o ver que deixa ser o ser e o nada de tudo. O ver simples é o da serenidade do desprendimento. Este ver não quer agarrar nada. Não quer se apossar de nada. Não quer conquistar e explorar nada. Em plena atenção não tende e não tensiona para nenhuma coisa de seu interesse particular. Esse olhar desvenda o inaparente, o insignificante, o desútil, o modesto, o singelo. E, na ternura e suavidade do singelo, do pequeno, do mínimo, do quase-nada, do frágil, do que não chama a atenção de ninguém, ele surpreende o fenomenal, o extraordinário, o mistério, o sagrado, o divino. No ver simples, o vidente e o visto são diferentes, mas se identificam, são um, isto é, um único acontecimento. Ver o mistério é, aqui, participar do mistério.


A visão do sinal admirável do mistério por um ver do simples descobre na exposição do frágil, do vulnerável, do vil, do desprotegido, do inocente, o vigor de ser da vida, a salvação, que se dá no grão de mostarda da boa-vontade, na gratuidade cordial. Aceita a finitude não como uma impossibilidade, nem como um carência. Acolhe na finitude a doação inesgotável do simples. A Boa Nova do Natal é: “é nesta finitude assumida como Graça que está a força do Senhor”. Esta força que aparece na fraqueza e como fraqueza é um vigor que reina sem se impor, sem dominar, sem mandar, comandar, desmandar, sem subjugar. A força aparece como humildade. Comentando o canto de Maria (Magnificat), o Papa Francisco, certa vez, disse: “O humilde é poderoso porque é humilde: não porque é forte. Esta é a grandeza do humilde e da humildade. (Angelus 15 de agosto de 2017)”.


A festa do Natal recorda este sinal e o mistério que ele mostra ao ver simples. Recordar, porém, não é atualizar algo do passado. Recordar é deixar emergir no coração o hoje do mistério. Recordar é deixar pulsar o coração em uníssono com o mistério em seu hoje. É se deixar conduzir, assim, para a dimensão do simples. Maria tem o olhar desse ver simples. Por ser simples ela desvenda o simples. O poeta Rilke, em sua obra “Vida de Maria”, canta e resume sua visão nestas palavras:


Não fosses Tu simples, como devia

Te acontecer o que agora a noite ilumina?

Vê, o Deus que troava sobre povos,

Faz-se suave e vem em Ti ao mundo.

Representaste-o maior?

O que é grandeza? Transverso

Através de todas as medidas

Que Ele trans-passa,

Vai o Seu reto destino.

Mesmo uma estrela

Não tem uma tal estrada.


No simples se dá a grandeza. A grandeza reúne céu e terra, mortais e celestes. Perpassa, transpassa, ultrapassa todas as coisas. Da grandeza do simples escreveu frei Hermógenes Harada, quando comentava os Fioretti:


Não é simples a grandeza? Discreta, recolhida no fundo do coração de todas as coisas como a vigência que, sendo pisada, usada e abusada por todos, tudo sustenta, tudo acolhe, tudo suporta, i. é, sub-porta, carrega, colocando-se debaixo, para que a vida, a ternura e a suavidade do ser seja tudo em todas as coisas?[1] Essa regência da suavidade vigorosa de ser, a ternura do amor não está contida, resguardada, protegida nas dobras dos panos pobres que vestem o Menino e a Virgem Mãe, cujo corpo da disponibilidade sem dobras é o regaço que pode receber o poder da onipotência e infinitude de um Deus? De um Deus, cuja força não pode ser a não ser que se doe, a ponto de se tornar um de nós e morrer crucificado, para testemunhar com o seu corpo e sangue a humilde sinceridade, a loucura da sua simpatia e solidariedade conosco?


Talvez fosse melhor nos desfazermos de nossas pretensas familiaridades com o sinal do presépio, como também com o sinal da cruz, como também com o sacramento do pão e do vinho eucarísticos. Talvez fosse melhor deixar romper a nossa crosta de indiferença e deixar emergir a estranheza do mistério e deixar que esta estranheza se torne o nosso em-casa, nossa morada. Então a nossa recordação talvez encontrasse nesse Deus que advém na criança do presépio o Deus vindouro... Frei Hermógenes Harada assim aludiu a este “Deus vindouro”:


Um deus humano e homem divino vindouro que sempre esteve conosco na finitude desprezada de um estranho Deus? O que há conosco, animais do progresso, se nos subterrâneos, nas dobras da indigência disfarçada dos tempos modernos, sob a superfície da onda frenética da rotatividade de lucro, poder e ganância dos prazeres, aconteceu e acontece cada vez de novo um nascimento, uma natividade do reto destino de um novo Deus? Da novidade de um Deus que sempre de novo e cada vez novo atravessa as epocalidades da humanidade, todas as suas medidas e grandezas, a partir do que há de mais profundo, oculto e íntimo nela mesma, a partir da simplicidade, i. é, a partir da disponibilidade sem dobras de ser participantes dessa insustentável suavidade do poder de Deus que se faz menino? O que acontece conosco, animais da autonomia e da responsabilidade de ser se, na pobreza e indigência dos que sofrem, dos que são vítimas absurdas de inomináveis crueldades e prepotências dos poderes, houver uma força oculta, ainda intata, una, simples como a Virgem Mãe? Uma força ainda desconhecida por ser esquecida sempre de novo, por ser jogada fora sempre de novo, como velha ou abortiva, nas esquinas e praças públicas dos valores dominantes de espíritos e espiritualidades, mudividências e humanidades? Uma força que a esses valores da humanidade, apenas desperta a solidariedade de pena e compaixão, porque esses valores ainda estão nas perspectivas camufladas do poder e da sabedoria do mundo? Uma força diferente, porém, que antes de tudo isso, para além, ou melhor, para aquém de tudo isso, nos fascina, nos encanta e nos seduz por ser um outro hálito, um outro sopro que conserva a alegria e a coragem de ser, vinda de um outro reino, reino da graça e sabedoria de Deus, “misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a realização da humanidade?[2] Esta divina disposição da humanidade, a simplicidade do Natal, a Virgem Mãe simples na jovialidade da pobreza, esse “Tu (hás-de-ver): Ele alegra!” é o Menino, Ele, a alegria consumada, a perfeita alegria: a Boa Nova.


Do pobre filho da Virgem Pobrezinha o poeta diz: “Ele alegra”. E ainda diz que ele acontece a Maria como “o que agora a noite ilumina”. O sinal e o mistério do Natal são celebrados na noite. Esta noite é cantada pelos quatro cantos da terra como “noite silenciosa”. A noite da humanidade e do divino caiu sobre a face da Terra. A terra ficou desolada. O mundo se obscureceu. Os celestiais já não convivem com os mortais. O céu já não se dá como a cobertura que encobre o mistério de Deus. Mas, quando abrimos os olhos para o sinal do presépio e o seu mistério a nossa noite deixa de ser uma noite de trevas para ser uma noite iluminada, deixa de ser uma noite de terrores e passa ser uma noite silenciosa.


Em uma audiência geral, em que ministrou uma catequese sobre José de Nazaré, o Papa Francisco o caracterizou como homem de silêncio e de ação. Falando a respeito do silêncio a partir do silêncio do mistério do Natal, Francisco disse:


Os Evangelhos não registram quaisquer palavras de José de Nazaré, nada, nunca falou. Isto não significa que ele fosse taciturno, não, há uma razão mais profunda. Com este silêncio, José confirma o que Santo Agostinho escreveu: «Na medida em que cresce em nós a Palavra – o Verbo que se fez homem – diminuem as palavras» (Sermão 288, 5: PL 38, 1307) (...). O silêncio de José não é mutismo; é um silêncio cheio de escuta, um silêncio laborioso, um silêncio que faz emergir a sua grande interioridade. «O Pai pronunciou uma palavra, e foi o Filho – comentou São João da Cruz – e ela fala sempre em eterno silêncio, e no silêncio deve ser ouvida pela alma» (Dichos de luz y amor, BAC, Madrid, 417, n. 99).


Recordamos o Natal quando nossa vida passa a ser uma vida aberta pelo silêncio, a saber, por aquele silêncio, que se dá como o “medium” (elemento), que contém todas as coisas em seu mistério; aquele silêncio a partir do qual ressoa o palpitar do abismo do coração paterno de Deus. Numa das antífonas do Natal, a Igreja traz um verso do livro da Sabedoria que diz: “Quando a noite estava no silêncio mais profundo, a tua palavra desceu à terra”. É no silêncio que o Filho de Deus nasce eternamente. É no silêncio da noite que ele nasce para nós, cumprindo o que diz o profeta: “Um menino nasceu para nós”. É no silêncio do coração que ele nasce em nós, no nosso coração, isto é, no centro de nosso ser, onde palpita nossa vida, a partir donde acontece o que somos no essencial e no todo, cumprindo assim também o que diz o profeta: “Um filho nos foi dado”. Dizia Orígenes que se Deus nascesse no presépio mil vezes, mas não nascesse em nosso coração, aquele nascimento teria sido em vão. Recordar o sinal e o mistério da noite silenciosa é, pois, deixar que a Linguagem do Sim de Deus a nós nos ilumine e nasça em nossos corações.


[1] 1Cor 13,1-13. [2] Cf. 1Cor 2,7.



Para pensar, conversar e partilhar:


1. O que significa recordar o sinal e o mistério da noite silenciosa (Natal)?

2. Aos Domingos rezamos: “Creio em Deus Pai todo poderoso, criador do Céu e da Terra”. Que luz o Natal lança sobre esse dogma primeiro de nossa fé?

3. Por que o Nascimento do Menino (Filho de) Deus se dá no silêncio? O que isso significa para o nosso Natal?



Um bom Começo, uma abençoada Continuidade e um santo Término de 2022!


Fraternalmente,

Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes



Continue bebendo do espírito deste tema: - indo ao texto-fonte: 48º Encontro - Natal II - Recordar o sinal

e o mistério da noite silenciosa

- postando seus comentários; - ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 48º Encontro - Natal II -

Recordar o sinal e o mistério da noite silenciosa

Professor Marcos Aurélio Fernandes

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