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46º Encontro (18/12/21) - Notas prévias para compreender a Obediência nas Fontes Franciscanas

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 18 de dez. de 2021
  • 10 min de leitura

4ª Parte


Notas prévias para compreender a Obediência nas Fontes Franciscanas



Capítulo II


Obediência, o modo mais elevado de ser parceiro de Deus



O encontro de hoje, será o último a tratar da 2ª Admoestação de São Francisco que tem como centro a obediência religiosa. No último encontro começamos a dar uma espécie de resumo com o título “Notas prévias para compreender a Obediência nas Fontes Franciscanas”. No primeiro capítulo dessa 4ª Parte vimos a “Obediência religiosa como fruto da graça do discipulado”. Hoje vamos nos deter na “Obediência, o modo mais elevado de ser parceiro de Deus”.


A obediência religiosa jamais nega, antes exige, uma atitude de autonomia do homem. Mas, autonomia não é mera independência. Autonomia é, antes, a capacidade de se erguer a si mesmo desde si mesmo, de ficar de pé, ereto, na vida, inclinando, porém, o ouvido, para a escuta do vigor da liberdade de ser. Esta experiência exige empenho, trabalho tenaz, sofrido e fiel, calmo e respeitoso dos tempos e ritmos do encontro. Exige o máximo de autonomia, ou seja, o empenho livre e gratuito que dá a si mesmo sua própria medida de doação, e isto de uma maneira sempre mais generosa, querendo o querer do querer e, no cume deste movimento de transcendência, querendo o não querer, sem fazer depender dos outros, das circunstâncias, dos incentivos, das promessas de recompensa, das consolações, a dedicação amorosa da busca. Esta autonomia é sinal de que podemos ser parceiros adultos de Deus, capazes de amá-lo por causa do próprio amor e não por causa de nossos interesses egocêntricos. Autonomia, porém, não pode ser confundida com mera independência. A concepção da liberdade humana como independência é uma concepção só negativa: independência como liberdade de... Autonomia requer uma concepção positiva: liberdade para, compromisso, comprometimento com o comprometimento, responsabilidade de ser, que assume tanto a independência quanto a dependência num movimento de transcendência do querer em que o si-mesmo humano se ergue, medindo-se com o real, as realizações, a realidade. Mas, alguém poderia objetar, a concepção da liberdade positiva como autonomia não é por demais moderna, ocidental, laica, secular, independente? Pode-se assumi-la na interpretação do ensinamento da obediência religiosa e sobretudo na leitura de textos medievais?


Isto nos remete ao terceiro ponto de nossas considerações prévias, que consiste no fato de estes textos serem textos medievais. Ao comentar as Admoestações, frei Hermógenes Harada chamava a atenção para isto. “Medieval”, recordava ele, era uma experiência de fundo da humanidade, experiência que em boa parte foi esquecida. E acrescentava: ler textos medievais significa, portanto, desenterrar tesouros escondidos e entulhados pela poeira, para trabalhar de novo o "humano" na sua possibilidade originária. E, num texto intitulado porque estudar o pensamento medieval ele dizia que o medieval poderia ser colocado em forma de uma espécie de fundamentação: o mundo medieval como fundamento e raiz do mundo moderno, seja ele entendido como quiser, seja esse entendido como se queira: continuação, ruptura, ou antítese. Assim, entre a compreensão da liberdade do homem moderna, não a do consumo cotidiano da cultura de massa, mas a da modernidade de raiz, por assim dizer, aquela que se expressa no ideal da autonomia pelo esclarecimento da razão e no exercício da vontade como transcendência da vontade de potência, e compreensão da liberdade do homem cristão medieval deve ter alguma comunicação com o moderno, o atual. Aliás, frei Hermógenes Harada sempre de novo, buscava mostrar como a compreensão de obediência própria da espiritualidade franciscana não só não se opunha, como assumia de modo ainda mais originário, a concepção da autonomia humana, tão distintiva do moderno. O presente nunca é constituído só da presença do presente (atualidade), mas também é constituído da presença do ausente, tanto do futuro, quanto do passado. O que era do passado pode estar presente no hoje da nossa própria atualidade como possibilidade alternativa ainda oculta ou já esquecida do futuro, constituindo uma tarefa não somente do momento que ora se concretiza, mas também do futuro enquanto estruturação do jogo de destino e de destinação. Assim, o estudo da espiritualidade franciscana em especial e o estudo do pensamento medieval em geral, podem ser chances de descobrirmos novas possibilidades de libertação para o futuro do homem hodierno. Ele elucidava:


Nessa perspectiva, os grandes pensamentos do passado são sondagens altamente bem trabalhadas, de penetração no fundo abissal do mistério do ser, donde brotam as diferentes possibilidades epocais. Sondagens essas que, com o correr dos tempos, foram entulhadas de preconceitos, dogmatismo, de tal sorte que o que se constituía originalmente como uma experiência avançadíssima na penetração da compreensão da vida, do universo, do homem, chegou até nós apenas como vestígios de um conhecimento outrora grandioso. Voltar a estudar essas tentativas não é voltar para trás, não é reprisar o passado; antes, pelo contrário, é avançar para uma experiência altamente bem trabalhada, cujo alcance e penetração podem estar na verdade muito além de tudo que nós conseguimos alcançar com as nossas possibilidades. Daí ser uma tarefa de toda e qualquer época voltar ao passado originário, de tal sorte que essa volta se torne também a chance do futuro originário.


Mas, uma vez livres dos preconceitos, o que conseguimos alcançar com o estudo do pensamento medieval em geral e da espiritualidade franciscana em especial? Frei Harada apontava várias importantes aberturas que este estudo nos concede, a nós hodiernos. Resgatemos, aqui, três destas contribuições de abertura:


(1) O pensamento medieval foi uma das tentativas, das mais trabalhadas e bem elaboradas, do esforço do intelecto humano na compreensão do fenômeno religioso cristão. Foi uma época em que gerações da humanidade se dedicaram, de corpo e alma, para penetrar na razão mais íntima do transcendente divino. O medieval foi a época em que a mística e a busca religiosa receberam a mais alta qualificação especulativa e teorética. Daí que, para os religiosos cristãos, para quem vive na liberdade do homem cristão, essa experiência altamente valiosa da especulação religiosa medieval pode ser recebida como uma herança preciosíssima, tanto para o presente como para o futuro; e que, enquanto experiência da possibilidade do moderno em seu vir-a-ser não convém jamais ser desconsiderada, abandonada.


(2) No presente da época contemporânea, onde a denominação unidimensional da era tecnológico-cientifícista reduz todas as variegadas dimensões do fenômeno humano ao positivismo físico-matemático de uma ontologia funcionalista fisicista, o modo de ser da existência medieval, inteiramente fundada na ontologia artístico-artesanal, traz-nos, transmite-nos, entrega-nos a alternativa de uma maneira de ser mais humana e finita, mais adequada talvez com a terra dos homens.


(3) Com certeza, a maior lição, o maior ensinamento, a orientação que se herda do pensamento medieval consiste em uma sã e fértil compreensão da espiritualidade. Pois, hoje, na espiritualidade, a tendência de nossa orientação está demasiadamente influenciada por uma antropologia de cunho subjetivista. Segundo essa antropologia, medimos, por exemplo, as práticas da oração e meditação descomedidamente a partir de nossas vivências subjetivas. Além disso, não temos mais clareza acerca de experiências religiosas e místicas, uma vez que confundimos todas essas coisas do espírito com fenômenos e vivências psicológicas.


Assim, o estudo das Admoestações precisa levar em conta que em jogo não está vivências subjetivas, mas sim princípios de uma compreensão de ser-homem, da vida humana fática, em sua dinâmica artístico-artesanal de criatividade e cocriatividade da obra do espírito, isto é, da liberdade; uma compreensão da finitude humana, isto é, de seu não ser fundamento de si mesmo, uma compreensão bem realista da vida na “terra dos homens”, não como eles deveriam ser, mas como eles são; uma compreensão pautada pela reflexão, isto é, pelo pensamento especular, que procura alcançar evidências essenciais a respeito da relação humana com o divino, em última instância, uma compreensão do “fenômeno religioso cristão”, não só e não tanto do cristianismo, mas daquilo que possibilita o cristianismo, a sua cristidade, a fé no Deus encarnado e crucificado. Assim, na leitura de cada Admoestação seria útil lembrarmos de buscar, também nós, a iluminação que guia os autores destes textos medievais da espiritualidade franciscana. Retomemos uma outra dica de frei Harada, desta vez, retirada de seus comentários às Admoestações.


Em cada Admoestação há uma ideia central. Ideia não é conceito. Ideia-eidos é como luz ou luminosidade "anterior", na qual e através da qual vemos ou compreendemos a fundo o texto. A luz nós não a vemos. Nós vemos na luz. Só podemos captar uma ideia "intuindo-a", já estando nela. Quando, como cristãos, lemos as Admoestações de São Francisco, já estamos na ideia que do fundo e de antemão ilumina o todo e cada articulação das Admoestações. É a "ideia cristã" que São Francisco chama na RNB de "doutrina e pegadas de Jesus Cristo". Esta ideia cha­ve, esta "intuição" fundamental originária cristã pode ser resumida assim: Deus é charitas, isto é, amor-misericórdia, amor do Deus anun­ciado por Jesus Cristo e testemunhado até a morte na cruz, doa­ção que se torna Eucaristia, visualização "mate­rial" de como é esse Deus. Este é o chão fértil do qual brotam as Admoestações de São Francisco.


A estrutura fundamental do pensamento e da espiritualidade medieval vem da noção de “deidade”. Com esta palavra se intenciona o vigor essencial de Deus na unicidade de sua identidade. Deidade quer dizer o vigor de Deus que se solta, se abre, se expande, se doa. Enfim, deidade é a soltura da identidade de Deus. A deidade de Deus é sua liberdade. Deus vigora originariamente como ele mesmo, como o não outro (numa “luz inacessível”). Deidade quer dizer o abismo da intimidade do mistério de Deus, a sua nadidade, o seu retraimento silencioso, o seu recolhimento simples: Deus no seu desprendimento, na plenitude da solidão e liberdade da diferença da sua identidade. O que Mestre Eckhart chama de Abgeschiedenheit (Desprendimento) da deidade e o que os doutores escolásticos medievais, mutatis mutandis, chamam de ser a se (a partir de si) pode ser chamado de liberdade. “Liberdade” é palavra para evocar o sentido de ser retraído, silenciado, como deidade de Deus.


A unicidade da deidade, porém, vige como super-plenitude de ser que se abre como dinâmica da unidade do Deus, que é amor, isto é, a unidade de amante, amado e amor (Pai, Filho e Espírito Santo). A partir do fundo-abismo da Deidade a super-plenitude do ser de Deus transborda, por assim dizer, de modo bem preciso, como geração-filiação-processão no amor (Pai-Filho-Espírito Santo). Criação, antes de ser causação, é ressonância da filiação divina. A criação é o vir à fala da deidade de Deus como pura liberdade da gratuidade.


O homem, dizem os medievais, retomando o ensinamento do livro do Gênese, isto é, da origem, foi criado à imagem e semelhança de Deus. A imagem de Deus no homem é a liberdade. Liberdade, porém, é mais do que livre-arbítrio. O livre-arbítrio, quando bem usado, dispõe o homem para a liberdade; quando mal usado, priva o homem da liberdade. A liberdade do livre-arbítrio só se consuma unindo-se à liberdade da graça, que nos torna não só imagens, mas semelhanças de Deus, isto é, deificados, deiformes, participantes de sua natureza, como filhos d’Ele. A obediência é a liberdade do livre-arbítrio humano se deixando unir à liberdade da graça. A liberdade natural do homem é chamada de livre-arbítrio. Ela é livre em relação à vontade e é arbítrio em relação à razão. Vontade e razão são as duas potências espirituais do homem, que orientam o homem para o bem e para a verdade. A liberdade natural do livre-arbítrio e sua autonomia é subsumida, por assim dizer, pela liberdade da graça. E, por fim, desta união ou fusão da liberdade natural do livre-arbítrio e da autonomia da vontade com a liberdade da graça se chega à liberdade escatológica da graça. A semelhança da imagem divina em nós é reparada pela graça de Cristo. O caminho de libertação para a liberdade consiste, para o homem, em ser filho no Filho, que é o Cristo. Este é o ensinamento de São Bernardo de Claraval em seu opúsculo sobre o Livre-arbítrio. Já em outro opúsculo, intitulado “De diligendo Deo” (Deus há de ser amado), Bernardo de Claraval mostra como o caminho da liberdade dos filhos de Deus cresce em proporção com o seu progresso no amor de Deus. A medida do amor precisa ser sem medida, pois, com efeito, Deus é infinito. A caridade não é um contrato, um pacto. A caridade perfeita é espontânea. Nela, o homem não ama Deus por causa de outra coisa. O verdadeiro e pleno amor não busca recompensa, embora a mereça. Não busca senão a Deus e por causa de Deus. O homem carnal e animal ama a Deus por causa de si. A grande conversão do amor consiste em que o homem ame a Deus não mais por si, mas por Deus mesmo. Mas, a maior perfeição do amor consiste em amar a si por causa de Deus. O relacionamento do homem para com Deus em sentido autêntico não é o do escravo, que é coagido pelo temor a fazer a vontade do seu senhor. Também não é do mercenário, que faz o que é devido visando a recompensa e a si mesmo, mas sim o do filho. O escravo e o mercenário carregam o pesado fardo da própria vontade (merece a pena, como diz São Francisco). O filho, carrega o leve ônus da caridade. Por isso, São Bernardo roga a Deus pelo seu espírito dizendo:


Ó Senhor meu Deus, por que não perdoas meu pecado e não levas embora minha iniquidade? (Jó 7,21), para que, jogado fora o fardo pesado da vontade própria, possa respirar o ônus leve da caridade, para que não fique preso pelo temor do escravo, não seja aliciado pela cobiça mercenária, mas seja impelido pelo teu espírito, um espírito de liberdade, através do qual são impelidos teus filhos, e receba dele um testemunho para meu espírito, que eu também sou um dos filhos (Cfr. Rm 8,14-16), pois existo pela mesma lei que é para ti e, como Tu és, assim eu também existo nesse mundo? Aqueles que fazem o que diz o Apóstolo: Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo (Rm 13, 8), sem dúvida são como Deus, e nesse mundo não são nem escravos e nem mercenários, mas filhos.


A obediência é via régia da aprendizagem pela qual o homem se torna o que ele é: filho de Deus. O homem é, pela cordialidade desta gratuidade, chamado a ser filho no Filho, filho com o Filho, filho como o Filho, a ser, simplesmente, o Filho. A encarnação do Filho de Deus realiza e faz vir à fala a unidade de deidade e humanidade. A vida íntima da deidade se abre, pois, como dinâmica intratrinitária, mais precisamente, como filiação divina que ressoa e cintila como criação e encarnação. O nada da deidade, sua liberdade e gratuidade, vigente no deixar-ser, torna-se, nisso, super-plenitude de ser (Deus est suum esse – Deus é o seu ser; e: esse est Deus – o ser é Deus). A receptividade do ser pelo Filho repercute na receptividade do ser pela criatura, especialmente pelo homem. No homem-Deus a deidade e a humanidade são um. A deidade é o nada da liberdade. É o Um da intimidade abissal que vige na geração e processão divinas. Ela se abre como super-plenitude de ser que livre, gratuita, cordialmente, deixa-ser a criação e a encarnação, para, por fim, consumar-se como “liberdade dos filhos de Deus”. A obediência é o caminho pelo qual o homem se liberta, sempre de novo, para esta liberdade dos filhos de Deus.



Para pensar, conversar e partilhar:


1. Porque a obediência religiosa nos torna parceiros de Deus? E o que isso significa?

2. Qual o significado de “ideia” nos pensadores e místicos medievais e qual a ideia central de São Francisco em seus Escritos e Admoestações?

Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes



Continue bebendo do espírito deste tema:


- indo ao texto-fonte: 46º Encontro - Notas prévias para compreender

a Obediência nas Fontes Franciscanas


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- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 46º Encontro - Notas prévias para compreender a Obediência nas Fontes Franciscanas

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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Próximo Encontro: 47º Encontro - Natal de Gréccio – Admirabile Signum


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2 Comments


Olga Barizon
Olga Barizon
Jan 29, 2022

Aproveitei muito, tudo vale a pena, quando a alma não é pequena.

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Olga Barizon
Olga Barizon
Jan 29, 2022

Tudo excelente para seguir melhor Jesus Cristo

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