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45º Encontro (11/12/21) - Notas prévias para compreender a Obediência nas Fontes Franciscanas

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 13 de dez. de 2021
  • 8 min de leitura

4ª Parte


Notas prévias para compreender a Obediência nas Fontes Franciscanas


Capítulo I

Obediência como fruto da graça do discipulado



Hoje, e no próximo encontro, vamos retomar a segunda Admoestações de São Francisco de Assis, intitulada “Do mal da própria vontade”. Achamos, também e por bem, modificar um pouco o título que havíamos anunciado (Obediência, filiação, criação e encarnação: a via da liberdade dos filhos de Deus) por esse novo título e dividi-lo em dois capítulos. Vamos refletir, concentrando nossa atenção na consideração da essência da obediência como virtude espiritual, religiosa, cristã, franciscana, e as perspectivas da filiação divina, da criação e da encarnação, entendendo a obediência, compreendida neste horizonte, como via da libertação para a liberdade dos filhos de Deus.


Antes, porém, de entrarmos propriamente na consideração de nosso tema, vamos repropor a nossos olhos a questão da leitura e interpretação destes textos de São Francisco de Assis.


Primeiramente, há que se considerar que são textos da espiritualidade, isto é, são textos que pertencem e concernem ao cuidado do espírito e pelo espírito, isto é, pela vitalidade da vida, textos que falam a partir de uma experiência de iluminação a respeito do corpo a corpo da faticidade de nossa existência. A vida espiritual não é outra coisa do que a concreta experiência, o corpo a corpo, imediato, com o mistério divino. O ler, o refletir, o considerar, o meditar, o contemplar quer ser o exercício de nos dispor, corpo a corpo, para o inesperado, o mistério do Tu eterno, o qual está sempre de novo irrompendo das profundezas para a superfície das diversas circunstâncias e situações e dos diversos tempos de nossa vida. Cada um de nós está entregue à sua própria liberdade, isto é, à responsabilidade pelo seu próprio ser, por aquilo que pode ser, por aquilo que vem a ser. Uma tal responsabilidade exige que assumamos tudo: o próprio fato de viver e de ter que dar um sentido para a própria vida, os acasos e as contingências da nossa história, os condicionamentos recebidos, nossas escolhas, nossas ações e omissões, aquilo que sofremos e aquilo que fizemos, os nossos acertos e os nossos erros. Quando nos responsabilizamos assim por tudo, nossa vida é resgatada do vazio da dispersão e concentrada na direção de algo de absoluto. Viver exige confiança na própria vida. Requer assumi-la como ela é e acontece, mesmo com aquilo que ela tem de incompreensível. Quando aceitamos incondicionalmente a vida, ou seja, quando nós a assumimos com plena positividade e confiança, então nós nos voltamos para ali onde o sentido de nossa existência tem seu fundamento. Trata-se do mistério incompreensível, que nós chamamos “Deus”.


Assim, quando falamos de obediência a partir de São Francisco e das Fontes Franciscanas, esta fala opera com jogos de linguagem que pressupõem todo uma forma de vida, que, neste caso, é uma forma de vida religiosa. A obediência na forma de vida chamada de religião não pode ser compreendida a partir da concepção e da linguagem que fala de obediência nas relações funcionais de poder, tais como elas acontecem, por exemplo, na vida social em geral e na vida política. Seria uma extrapolação, por exemplo, compreender a obediência religiosa a partir da obediência civil e política ou vice-versa, compreender a obediência civil e política como obediência religiosa, o que acontece na obediência fascista ou nazista, e em todos os fundamentalismos religiosos teocráticos, tão prejudiciais pelo seu forte teor de violência contra todos os que são diversos, diferentes, contra toda pluralidade.


A obediência na forma de vida religiosa tem o caráter discipular. É somente a partir da dinâmica discipular, isto é, de aprendizagem, que se pode abrir uma perspectiva adequada para se compreender o sentido, ou seja, o princípio de inteligibilidade, da obediência religiosa, tal como ela se dá, por exemplo, no Oriente, especificamente, na Índia, no Tibete, na relação que um chela (discípulo aderente) tem para com um mahatma ou um guru, ou que, no judaísmo hassídico, o relacionamento que os hassidim (piedosos) tinham para com os tzadikim (justos), ou que, no cristianismo ortodoxo russo, os discípulos tinham para com o Staretz, ou ainda, a obediência como virtude e como voto na espiritualidade cristã, especialmente, na vida monástica, na vida das ordens religiosas, etc.


A obediência como atitude cristã tem, com efeito, um caráter discipular. Ela é, antes de tudo, obediência da fé. A fé é a origem e o horizonte de tal obediência. a obediência simples da fé é a entrada no discipulado. É o salto da prontidão absoluta, incondicional, sem cálculos, sem restrições. É o salto para dentro do discipulado, salto que assume de antemão tudo aquilo que virá a acontecer pelo caminho do seguimento, que de antemão toma sobre si o mistério da Cruz. É o “eis-me aqui, é o “fiat”. É o assumir de antemão e para toda a ocasião a disposição da boa vontade, que transforma todas as coisas em bem (‘para o homem de boa vontade tudo é bom, até mesmo o que é ruim, assim como para o homem de má vontade tudo é ruim, até mesmo o que é bom’, dizia o companheiro de São Francisco, Fr. Egídio de Assis).


No tocante à impostação da sua vontade, o homem pode se conduzir por três fórmulas em sua vida. A primeira fórmula é o fiat voluntas mea (faça-se a minha vontade). É o modo de ser do homem faustiano. “Faustiano” se refere ao Fausto de Goethe (1749-1832), personagem literária e dramática que vende a alma ao diabo em troca de poder e privilégios, inspirada num astrônomo e necromante alemão do século XVI. Faustiano é este princípio, na medida em que revela avidez ou excessiva paixão pelo saber e pelo poder, por um saber que é poder, isto é, que é cobiça, ambição de provocação e exploração do real, de conquista das realizações, de dominação da realidade. Este modo de se conduzir traz vantagens imediatas ao homem, mas, com o tempo, revela suas consequências perniciosas. Assim, segundo São Francisco, na segunda Admoestação, quando o homem se apropria de sua vontade e se exalta pelos bens que o Senhor (Ad 2,3), isto é, o mistério divino, o Espírito da Verdade e da Bondade originárias, diz e opera nele, incorre numa sugestão diabólica, isto é, que rompe com a unidade com a fonte da vida, que divide, dispersa, esgota, aniquila. Nesse caso o homem transgride o limite que o protege, e, deste modo, fez-se o pomo da ciência do mal. Por isso, importa que sustente a pena (Ad 2,4).


A segunda é o “fiat voluntas nostra” (faça-se a nossa vontade). Com esse princípio, o homem não supera necessariamente a ditadura da subjetividade. Ao passar do eu para o nós não se transcende necessariamente o egoísmo humano, pois pode-se passar de um particularismo individual para um particularismo coletivo, grupal. Pode-se passar de uma arbitrariedade individual para uma arbitrariedade coletiva. Os totalitarismos, por exemplo, são algo assim. Fascismos, com suas bases populistas e nacionalistas, por exemplo, seguem este princípio. Que uma vontade coletiva se imponha arbitrariamente não quer dizer que se alcançou a fraternidade e solidariedade na convivência humana.


A terceira fórmula é o “fiat voluntas tua. É a fórmula da forma de vida religiosa. O “Tu”, neste caso, é o Tu absoluto, o Tu divino. A obediência discipular religiosa é motivada pela fé. A abertura toda positiva e incondicional ao mistério inacessível de Deus nós podemos chamar de fé. Para a compreensão cristã do relacionamento com o Deus divino da revelação consumada em Jesus Cristo, nós só podemos nos abrir a Deus na fé, porque Deus mesmo nos pôs na existência e nos chamou para entrar em comunhão de amor com Ele. E é Ele mesmo quem nos estimula para buscá-lo e para abrirmo-nos a Ele na fé, na confiança, na entrega. A fidelidade de Deus, com efeito, precede toda a nossa resposta à interpelação que Ele faz a nós. Antes mesmo de partirmos em busca de Deus, Ele mesmo já nos buscou, já nos veio ao encontro e já se doou a nós no amor. É o que diz São João: Deus nos amou por primeiro. Com isto, nós já passamos ao segundo ponto.


Em segundo lugar, é preciso lembrar que tais textos, enquanto textos de espiritualidade cristã, têm como foco a experiência de encontro com o Deus-amor. “Deus charitas est” (Deus é amor). Eis o sumo da revelação de Deus em Jesus Cristo. Tudo o que São Francisco, monitor do Mestre Jesus Cristo, nos traz à memória é para suscitar em nós a recordação do Deus-amor. Assim, por exemplo, ao lermos sobre a obediência, precisamos libertar-nos de uma posição prévia, de uma visão prévia e de uma concepção prévia que toma a obediência como obrigação funcional, como submissão subserviente e degradante ao poder, a algo assim como uma norma opressiva, etc. É preciso se libertar de uma imagem caricatural de Deus como um pai sádico, um patrão opressor ou um déspota arbitrário. Esta imagem é um ídolo nosso. Não é a face do Deus vivo, revelada por e em Jesus Cristo. Em jogo, na obediência, está o encontro de amor do homem com o Deus-amor.


Fé é experiência do Encontro da Gratuidade e da Gratuidade do Encontro! É numa tal experiência que Deus, o Mistério Inacessível, se faz presente em nossa existência. Esta experiência é sempre como história, como caminho. Trata-se de uma caminhada, que se dá nas vicissitudes as mais variadas: nos esbarrões e atropelos de sua Presença, nas alegrias e dores, nas vitórias e fracassos, nas nossas virtudes e nos nossos pecados, nas nossas grandezas e nas nossas misérias, nas conquistas e perdas, nos encontros e nas despedidas da vida. Uma tal experiência só se dá como obediência (ob-audire): ela só se concretiza quando somos capazes de ouvir, de auscultar, a fala, ao mesmo tempo, silenciosa e eloquente de Deus na nossa história. Quer dizer: quando nós sabemos perceber os seus vestígios e co-intuir os reflexos de sua luz misteriosa em todas as realidades. Isto exige de nós uma sintonia constante com a sua presença-ausência, com sua proximidade-distância, com sua doação-retraimento. Exige a capacidade de esperar o inesperado, com os ouvidos colados à realidade da vida. Exige a coragem de não fugir às angústias, de não recusar descer aos abismos da vida, do mundo, da história. Uma tal experiência é como o saber de um não-saber. Aqui, não basta calcular com os nossos critérios humanos de certo e errado, verdadeiro e falso, bem e mal. Falando segundo a linguagem da segunda Admoestação de São Francisco: aquele que faz de si mesmo a fonte da ciência do bem e do mal come o pomo da ciência do mal, isto é, experimento o desgosto ou o gosto amargo da vida que ele estabeleceu para si. Com efeito, a vida se torna para ele uma moléstia, isto é, um peso, um fardo, uma pena insuportável. Assim, para a fé, é melhor abandonar todas as medidas preconcebidas do nosso saber e do nosso poder, a fim de acolher o que se revela e se mostra, à medida que caminhamos na penumbra do mistério. Nesta experiência, é preciso ser pobre: o pouco é sempre muito. O pouco que tenho, minha situação aqui e agora, é tudo que eu tenho. E é com este tudo que preciso, sempre de novo, a cada “hoje”, a cada “agora”, dispor-me para o encontro na escuta da obediência. É preciso assumir este caminho como o único caminho e ir nele até o fim.



Para pensar, conversar e partilhar:


1. Qual a diferença entre obediência político-civil e obediência religiosa? Como caracterizar uma e outra? Por que é importante, para nós, cristãos e religiosos a clareza dessa diferença?

2. No tocante a obediência o homem pode se conduzir por três fórmulas em sua vida. Quais são elas e qual a característica de cada uma?


Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes



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Professor Marcos Aurélio Fernandes


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