44º Encontro (04/12/21) - O amor que é Deus se faz nossa obediência, até a entrega à morte...
- Frei
- 4 de dez. de 2021
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O amor que é Deus se faz nossa obediência, até a entrega à morte
de seu Filho amado
Os textos de São Francisco, embora, ou justamente, por serem breves são sempre de uma riqueza, profundidade e riqueza ímpar. Por isso, precisam ser retomados sempre de novo. É o que fizemos com a 1ª Admoestação e estamos fazendo com a 2ª Admoestação.
3ª Parte
O amor que é Deus se faz nossa obediência,
até a entrega à morte de seu Filho amado
No estudo dos dois últimos encontros, vimos que Francisco começa a 2ª Admoestação recordando que, ao criar o homem, Deus enriquece-o com o maior de todos os seus dons – a vontade. Nisso Ele nos distingue, honrosamente, das demais criaturas terrestres, dotadas apenas de instinto. Assinala, também, que Deus toma todas as providências para protegê-la. Para isso unge-o e ordena-o com a sagrada ordem da vontade própria e não da própria vontade. Por isso, disse: Coma de toda a árvore: da árvore da ciência do bem e do mal, porém, não coma (Gn 2,16-17). Daí, a conclusão de Francisco: Podia, pois, comer de toda árvore do paraíso, porque enquanto nada fazia contra a obediência não pecava.
I
A ORDEM DA OBEDIÊNCIA ORIGINÁRIA:
COMER DO FRUTO DE TODA ÁRVORE JAMAIS DA ÁRVORE DA MORTE
A admoestação centraliza-se, pois, na questão da obediência como caminho de vida e da desobediência como caminho de perdição, que leva à morte. Como em todos os seus escritos ou falas, Francisco sempre tem em vista o mistério de Deus. Por isso, também aqui, seu ponto de partida ou de referência, não é a nossa obediência, mas sim a obediência de Deus, que deve tornar-se nossa obediência. Ou seja, a admoestação é uma recordação de que nossa vocação primeira, neste mundo, é, apenas (?), a de aprender a obedecer a Deus e como Deus obedece. Por isso, na dinâmica do discipulado cristão ou, simplesmente, de sermos filhos de Deus, obedecer a modo de súdito ao seu chefe, de empregado ao seu patrão ou superior, seria não apenas uma tremenda desfiguração da obediência originária, mas também uma grave ofensa ao nosso doador (Cf. 43º Encontro). Por isso, a obediência de que fala a Admoestação tem a ver, acima de tudo, com o fruto da graça do encontro, da amizade, da devoção ou, simplesmente, do amor, que um filho sente em relação aos seus pais ou de um esposo em relação à sua esposa e, vice versa, etc. Por isso, no fundo, aqui poderíamos traduzir obediência por bem-querência, enamoramento, fé, paixão, êxtase.
Além do mais, Francisco, seguindo a visão bíblica, vê Deus sempre presente, cada dia. criando e cuidando de cada criatura, de cada acontecimento. Para ele a semana da criação não terminou. Continua através dos tempos. Estamos tão próximos dela como Adão. E Ele as está criando tão somente por causa de nós. Se nós não existíssemos Ele não as criaria. As criaria para quê? Por isso, enquanto permanecermos ligados, unidos a essa sua bem-querência, contemplando-O e acolhendo-O em cada uma de suas criaturas ou acontecimentos, sem jamais fazer nenhuma discriminação, crítica ou condenação, não pecamos. Não pecamos significa não nos afastamos Dele, que é nossa origem, nosso Pai, Aquele que nos ama por primeiro. Nesse caso, aconteça o que acontecer, nunca passará pela nossa mente que algo que nos aconteça não seja vindo Dele e, vindo Dele, que é Pai, jamais poderá ser um mal (Cf. Jesus Cristo na Cruz, bem como o Evangelho do filho que pede pão e peixe a seu pai: Lc 11,11-13). O sentimento dessa experiência pode ser visto e admirado, por exemplo, no Cântico do Irmão Sol ou nessa Oração:
Por isso, nada desejemos, nada queiramos, nenhuma outra coisa nos agrade e nos deleite, a não ser o nosso Criador e Redentor e Salvador, único verdadeiro Deus: Ele é o bem pleno, todo o bem, o bem inteiro, o verdadeiro e sumo bem. Só Ele é o bom, o piedoso, o manso, o suave e o doce. Só Ele é o santo, o justo, o verdadeiro, o santo e o reto. Só Ele é o benigno, o inocente, o puro. D’Ele, por Ele e n’Ele está todo o perdão, toda a graça, toda a glória de todos os penitentes e justos, de todos os bem-aventurados que com Ele se regozijam nos Céus (NB 23).
Por isso, se eu pudesse perguntar a Deus qual a vontade ou projeto que reservou para mim, certamente, ouviria: “Meu filho, eu não quero nada de você. Antes, estou esperando que você me diga o que você quer porque estou ansioso para poder acompanhá-lo e ajudá-lo nessa sua busca. Na verdade, eu tenho uma única vontade ou desejo: fazer sua vontade, realizar seu desejo. Para isso estarei sempre ao seu lado, consigo, ajudando-o a realizar sua vontade. Só não poderei ajudá-lo quando você escolher caminhos que o levam à perdição, à infelicidade, à morte. Mesmo assim eu o acompanharei e morrerei com você e para você! Mesmo que para isso tenha que ir consigo até o inferno”.
É assim, desse modo, que Deus me ama: fazendo-se minha vontade. E, como Ele realmente quer o meu bem, por vezes, vai enviar-me coisas que, na minha compreensão me são adversas. E, caso eu sofra por não entender seu amor, porque Ele não faz a minha vontade, isto é, não age conforme a minha ciência do bem e do mal, Ele sofre ainda mais e duplamente.
Primeiramente, sofre comigo e mais do que eu por ser Ele muito mais sensível e mais profundo no saber e conhecer o meu verdadeiro bem. Em segundo lugar, sofre porque, a exemplo do pai da parábola evangélica, vê que, longe da casa, fora da largueza da gratuidade e do amor originário, vivendo com o coração pesado, revoltado e amargurado, não consigo comer de toda árvore do paraíso (árvore do bem). Todavia, jamais me abandonará, permanecendo sempre comigo, exortando-me, como fez com o filho mais velho, a que comungue de todos os seus bens e me acompanhando, na esperança de que um dia desperte para o Amor dEle e como Ele é.
Quem nos dá uma bela descrição desse princípio originário do nosso humano, chamado obediência, é frei Hermógenes Harada. Primeiramente ele mostra que este princípio precisa tornar-se um hábito em cada um de nós, isto é, uma espécie de sexto sentido. Leiamos:
"Fazer a vontade de Deus" é crer que a realidade mais fundamental é Deus e que nós somos realmente filhos dele. Por isso, quem busca, em cada acontecimento ou criatura, auscultar a Deus como fonte inspiradora de todo o seu fazer, pensar e sentir, desenvolve um sexto sentido pelo qual capta a presença de Deus. A capacidade de captar a presença de Deus no meio das aparências e da visibilidade das coisas é chamada por São Francisco de "obediência".
A seguir, Frei Harada, descreve o frutificar da virtude da obediência divina:
Pela obediência, a pessoa que crê descobre que a Vida é imensa, que não tem nada da mesquinhez do “nosso” cotidiano. Veja a natureza: quantas árvores, quantos animais em cima, de baixo da terra e no ar, quantas montanhas; vejamos um dia bonito ou uma tempestade: tudo isso está se desenvolvendo, crescendo, morrendo e nascendo de novo para que a vida continue... Já pensou se o homem tivesse a tarefa de regar todas as plantas! Veja como a natureza cuida: quando chove tudo fica regado... São Francisco vê a presença de alguém atrás de tudo isso; sente toda essa força como o cuidado de alguém: o cuidado de Deus-Pai e Criador de todas as coisas. Um cuidado todo especial que sabe esperar quanto precisar para o crescimento e amadurecimento das pessoas; que, ao tentar fazer acontecer o crescimento, quando este não acontece, não arromba a porta, não atropela; espera, não como alguém irritado, mas como alguém que cuidadosamente ama. É um Pai que, quando tem que intervir, intervém no momento oportuno com a força e a suavidade necessária para cada situação.
E continua Frei Harada, mostrando, agora, em que consiste a identidade do fiel ou religioso:
O "crente" ou discípulo de Jesus é aquela pessoa que cultiva esse mesmo sensorial, chamado obediência; é aquela pessoa sensível que não "come da árvore do bem e do mal" (“isto é bom, aquilo é ruim, isto presta, aquilo não presta”), pois percebe que a realidade não cabe dentro de si próprio, de seu saber; sabe que sua medida não é a medida última de todas as coisas; percebe que nossas medidas são medidas que não alcançam a grandeza do céu e da terra. E diz a si mesmo: eu que tenho um Pai cuja grandeza, flexibilidade, diferenciação, profundidade, paciência, misericórdia é tão grande, por que não consigo me colocar dentro de outra medida, uma medida maior?
São Francisco responde: é porque você faz da "vontade própria" a “própria vontade”, isto é: não faz a vontade de Deus. Ou seja, você transforma o maior, o mais precioso dom (presente) que Deus lhe deu, que é o de ter a honra, a dignidade de viver na dinâmica do bem-querer Dele (obediência), numa propriedade sua. Mas, se você não se "apropriar (comer) do fruto", pela obediência à vontade de Deus, começará a viver da imensidão do coração de Deus, começará a sentir e querer como ele sente e quer! E a obediência será para você um privilégio, uma felicidade, a grande ambição dos filhos de Deus, e não mais uma obrigação frustrante ou uma norma opressiva[1].
II
A OBEDIÊNCIA DE DEUS, HOJE
Quando, na Vida religiosa, mas também na vida secular ou do mundo, se prefere o caminho da própria vontade – comer da arvore da vida, da árvore do bem e do mal – os frutos amargos logo aparecem. Novamente, Frei Hermógenes Harada é quem nos faz uma bela descrição dessas consequências.
O mal da própria vontade ... tem jeito de lobo vestido de ovelha, porque a vontade em si é coisa boa, mas quando se apropria da fonte de inspiração (rejeitando a Deus) se torna má, produzindo as pessoas e a sociedade em que estamos e somos hoje: consumismo-fome, mansão-favela, salário de marajá e salário mínimo, competição-marginalização, coração duro-ondas de sentimentalismo, privilegiados-explorados... Ela é má porque mata o humano no homem e chega ao extremo de criar um "Menguele", bom pai de família, afetuoso com seus filhos, mas que não hesita em fazer experiências médicas hediondas em crianças e mandá-las em seguida para a câmara de gás.
Ao determinar-se (“comer o pomo”) ser ele, o homem, fonte de inspiração; ao pretender estabelecer (ciência) a partir de si o que é "bem", se acha com o pomo do mal na mão! Pretendia determinar o que é bem e se achou com o mal! A apropriação faz decair a vontade e a torna má.
E, então, perplexo, o próprio Harada se pergunta: Como isso é possível? E ele mesmo responde:
É que se estabeleceu uma mudança radical de horizonte: do horizonte magnânimo de Deus se passa ao horizonte mesquinho do eu individual ou grupal. De fato, o que aconteceria com Jesus Cristo ou com São Francisco se dissessem: faça-se a minha vontade e não a de Deus?
E finaliza Frei Harada:
Seguir a própria vontade tem por efeito a pena, o peso, o castigo. De fato, ela tira o nosso sono, nos deixa agressivos, gananciosos, invejosos... Grande parcela do sofrimento, da angústia, das "desgraças" nossas e dos outros é produzida por nós mesmos; e aquilo que não é produzido por nós, sendo portanto manifestação inocente da finitude da condição humana e da natureza, quem se conduz na vida pela "própria vontade", não consegue entender, nem "aguentar", nem viver adequadamente. É a natureza humana, roubada de sua origem, que é "semelhança" com Deus, que se "vinga" de seu empobrecimento (idem).
Daí a conclusão de Francisco: Por isso, importa que sustente o peso.
[1] Frei Hermógenes Harada, Apontamentos
Para pensar, conversar e comentar:
1. Haveria alguma relação entre a 2ª e a 1ª Admoestação? Ou seja: Por que Francisco, logo após ter falado do mistério do Corpo do Senhor nos coloca diante do mistério da vontade de Deus que deve tornar-se nossa vontade? Qual a semelhança da vontade de Deus com a Eucaristia?
2. Como entender a obediência de Deus, isto é, que Deus está muito mais pronto a obedecer a nós do que nós a Ele?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes
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