43º Encontro (27/11/21) - Vontade, Obediência e Liberdade
- Frei
- 30 de nov. de 2021
- 12 min de leitura
Do mal da própria vontade
2ª Parte
Vontade, Obediência e Liberdade
Introdução
São Francisco, como vimos no último encontro, começa suas Admoestações com o mistério, o dom maior que Deus nos deu, o Corpo do Senhor, a Eucaristia. A seguir, começa a nos introduzir em outro mistério ou dom: a vontade própria. Lendo, porém, a segunda Admoestação, vemos que para ele esse dom significa: obedecer. Por isso, ele começa com este dito ou ordem do Senhor a Adão: Come de toda a árvore; da árvore da ciência do bem e do mal, porém, não comas (Gn 2,16-17). Ou seja, para Francisco, Deus deu esse dom ao homem a fim de obedecer-lhe e, assim, poder percorrer o caminho da felicidade, da bem-aventurança. Por isso, nesta reflexão de hoje, queremos aprofundar o sentido da obediência franciscana; sentido que só é captado quando a tomarmos como um modo de compreender a vida humana na sua facticidade. Vamos tentar, pois, tematizar este modo, refletindo sobre vontade, obediência e liberdade.
1. Obediência, bem querer da existência
O primeiro passo da nossa reflexão consiste em afastar de nossa mente o sentido usual de obediência, entendida como submissão num relacionamento funcional, perfectivo, entre superior e súdito, entre dirigente e dirigido; num relacionamento de poder e de autoridade. Enfim, manda quem pode e obedece quem não pode.
Com esta compreensão ou medida tão estreita e mesquinha, jamais haveremos de nos abrir à vastidão, profundidade e originariedade da compreensão espiritual de obediência; jamais haveremos de alcançar seu sentido interior e existencial, que tem sua origem e floração no mistério ou gratuidade do encontro. Comecemos pelo verbo obedecer. Obedecer, no latim, é ob-audire, isto é, “ouvir numa disposição de abertura, atenção”, é “ser todo escuta do vigor da liberdade”.
Nesse sentido, obediência é o bem-querer da existência que se abre para se tornar todo ouvido na acolhida desse vigor. Há uma estória japonesa que mostra esta dinâmica existencial:
Naquele tempo, na província de Saga, no interior do Japão, vivia um velho casal. Teciam à mão sandálias de palha para vender. O que ganhavam era pouco, dava apenas para viver. O casal tinha um filho menor. O menino era obediente. A tudo dizia sim, sim, sim, sem murmurar. Todos os dias a mãe dizia ao marido.. – Ah, se ao menos nosso filho pudesse levar uma vida melhor. Mas ele é um idiota. A tudo obedece, sem objeção. Não tem nenhuma iniciativa. O pai nada dizia. Continuava trabalhando. Um dia a mãe disse ao pai: – Vamos pôr à prova nosso filho, para que sinta a necessidade da iniciativa. Vamos dar-lhe uma tarefa impossível para ver se reage e diz não à nossa ordem. O pai nada respondeu. A mãe chamou o filho e lhe entregou três palhas e ordenou: – Vai trocar essas palhas com três peças da seda preciosa de Kyoto. O filho disse sim e saiu de casa. A caminho, à beira de um riacho, uma mulher lavava cebolas. Disse a mulher: – Que tens na mão? – Três palhas, respondeu o menino. – Queres me dar as palhas para amarrar as cebolas em feixe? – É que as palhas são preciosas, disse o menino. Elas valem três peças de seda. Depois de muito negociar, o menino trocou as palhas com três cebolas e saiu cantarolando pela estrada a fora. A caminho, à entrada de um albergue, uma mulher lhe perguntou: – Não queres me dar essas cebolas? Preciso delas para temperar a salada de peixe. O menino lhe respondeu: – É que as cebolas são preciosas. Valem três peças de seda. Depois de muito negociar, o menino recebeu três garrafas de molho de soja em troca das cebolas. Um pouco adiante, ao passar diante de uma rica moradia, correu-lhe ao encontro o senhor da casa e pediu ao menino que lhe vendesse o molho. Dizia: – Preciso com urgência do molho. Recebi visita inesperada e não tenho mais molho em casa. Disse o menino: – É que o molho é muito precioso. Não posso vendê-lo. Só se me deres algo equivalente. O homem era fabricante de espadas. Em troca do molho deu-lhe uma espada. O menino pendurou a espada ao cinto e continuou a viagem. Perto de Kyoto, porém, a estrada se encheu de cavaleiros. Era o séquito do príncipe de Kyoto que por ali passava numa suntuosa carruagem. Os pedestres se prostravam à beira da estrada, dando passagem ao cortejo. De repente, o olhar do príncipe caiu sobre o menino camponês, o único que trazia espada ao cinto. Mandou chamá-lo e perguntou: – Como carregas uma espada, tu que és apenas camponês? O menino respondeu: – É que a espada vale três palhas que são garantia de três peças de seda de Kyoto. Disse o príncipe: – O que significa isso? E o menino contou-lhe toda a estória de sua viagem! O príncipe admirado disse ao menino camponês: – Não é bom que uses a espada. Mas é bom receber a espada que vale três palhas do camponês. E pediu-lhe a espada. Em troca deu-lhe três peças de seda preciosa de sua tecelagem real. O menino retornou à casa paterna. Em casa, o pai nada disse. Apenas continuou a tecer as sandálias de palha.
A viagem da existência é a experiência, na qual nos tornamos o que somos, aprendendo, sempre de novo e melhor, tornando-nos cada vez mais ricos, existencialmente. Esta viagem se articula a partir de três momentos estruturantes, aqui apresentados como a ira da mãe, o sim cordial do filho e o silêncio do pai. A ira da mãe pode ser compreendida como sendo a provocação da terra, da vida, da facticidade da existência, que incita a nós humanos para a busca do vigor da liberdade, na estória, a tarefa impossível, representada pelas três peças preciosas de Kyoto. Mãe que é mãe, sempre é terna, sim, mas também rigorosa!
Para o humano, viver é um contínuo medir-se com a impossibilidade, que, paradoxalmente, vai nos abrindo as possibilidades de realização, de plenitude da existência, o vigor da liberdade – a seda de Kyoto. E isso é obedecer. O “sim” cordial desse filho não é uma obediência servil, subserviente, um mero cumprir ordens. É a obediência como pura positividade, que se mede com toda a negatividade e impossibilidade, de uma maneira gratuita e cordial.
A lenda se presta a muitas lições. Primeiramente, as palhas do menino podem indicar a graça daquilo que, cada vez, nos é dado como possibilidade. Pode indicar também, a importância de assumir cada situação concreta da vida como desafio de valorizar a identidade já conquistada no esforço da libertação e da liberdade, isto é, de não negociá-la, a não ser que possamos vislumbrar outra possibilidade mais enriquecedora. Essa esperteza é condição indispensável para que o projeto de nossa existência se encaminhe, seja bem-sucedido, e se impregne com a plenitude da perfeita alegria. Resta ainda o terceiro momento estruturante da estória, o silêncio do pai que seria a vigência serena do céu. Desta vigência na vida do homem falam uns versos de Lao-Tsé: “Quem pode conduzir bem não é guerreiro. Quem pode lutar bem não é raivoso. Quem pode superar bem os inimigos não luta com eles. Quem pode usar bem os homens se mantém submisso a eles. Isto é a Vida que não luta; isto é a força que envia os homens; isto é o polo que alcança até os céus”. O silêncio do grande céu é o retraimento sereno do nada do mistério.
Podemos chamar de interioridade a abertura universal (católica), para todas as diferenças dos seres na unidade do ser, unidade que nada tem de uniformidade, mas que, pelo contrário, promove a pluralidade. Esta unidade é o “nada do mistério”. Assim obediência é a abertura da ausculta para o silêncio do nada do mistério e suas percussões e repercussões em todas as concreções, nas mais diferentes situações, da existência.
2. Obediência e liberdade, fé de filho
Na fala silenciosa do sentido da vida, o ser humano obediente capta, sempre de novo, o envio de uma mensagem divina. A fé permite ao ser humano captar, na ausculta obediente, os apelos, as convocações, as provocações do Tu divino. Para o obediente tudo é evocação do Encontro. O ser humano obediente consegue fluir em meio a todas as vicissitudes, sem embaraçar e enrolar-se nelas. É livre. O ser humano obediente vive a vida, não a partir do próprio eu, mas sim a partir da fonte e origem da existência. Nesta união com a fonte ele encontra a paz e a mantém, qualquer que seja a circunstância em que se encontra. Para ele não existe perturbação, mas só serenidade. O ser humano obediente vive num mundo aberto, marcado pela disponibilidade, pela acolhida, a receptividade, a gratidão, a prontidão na boa vontade. O ser humano não obediente vive num mundo fechado. Ele se faz fonte do saber do bem e do mal, juiz de todos. É o murmurador, o acusador, o autossuficiente, ressentido; vê e mede tudo segundo as medidas de seu eu, apossando-se de tudo e de todos como sendo seu.
No Evangelho, a diferença entre o homem obediente e livre e o homem não obediente e não livre se mostra na diferença entre Jesus e o fariseu. Os fariseus e mestres da lei falam a partir de planos totalmente opostos, diversos. Esses falam a partir de seu eu. Jesus fala movido pelo vigor da total liberdade.
Tal liberdade aparece, necessariamente, ao fariseu como uma destruição de toda a ordem moral, de toda a piedade e da própria fé. Jesus aparece, aos olhos do fariseu, um imoralista (Cf. as questões referentes ao sábado); um niilista, isto é, como um homem que não respeita os valores estabelecidos e consagrados da moralidade vigente; um homem que só age conforme sua própria lei; como alguém que tem a audácia de dizer, sempre de novo, “eu”, como um blasfemo de Deus.
A liberdade de Jesus não é, porém, a liberdade da escolha, arbitrariamente afirmada, mas, a liberdade que vem da simplicidade da sua conduta, onde a única coisa que interessa é o que Ele chama de “fazer a vontade do Pai”. Isto era o seu único alimento (Jo 4, 34). Jesus não vive e não age em virtude do conhecimento do bem e do mal, mas em virtude da vontade de sua origem, o Pai. E a vontade do Pai é una. Não tem um sim e um não. Por isso ele aparece sempre como o homem da origem e sua ação se mostra como livre e simples.
3. A Pobreza da Obediência
Se a pobreza é o caminho de libertação para a liberdade da Boa Nova, para a liberdade de Jesus Cristo, a liberdade da graça, a liberdade dos filhos de Deus, a obediência discipular do cristão, a obediência franciscana, é uma concreção da pobreza do espírito na dinâmica do querer. Como é, porém, a dinâmica do querer e sua pobreza na concreção da dinâmica do querer, a obediência?
Num texto intitulado de “a pobreza da obediência”, presente no livro “Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana”, frei Hermógenes Harada diz:
O querer enquanto ser da existência não é uma faculdade da existência, posta como sujeito, mas sim a estruturação da própria existência. Enquanto estruturação, o querer traz à fala a essência da existência. E, como estruturação da existência, o querer é o movimento de transcendência enquanto o querer deve querer o querer do seu querer. Querer, porém, diz buscar. A transcendência enquanto deve querer o querer do seu querer é, pois, busca, na qual nada há que não seja busca, de tal sorte que a própria busca deve ser buscada, a ponto de a busca, sempre nova e de novo, repercutir na busca que busca a busca do seu buscar. Com outras palavras, a transcendência do querer é a busca do que foi e não foi, do que é e não é, do que será e não será, do que pode e não pode, por e para ser. É a responsabilidade de ser[1].
O querer, portanto, em seu movimento de transcendência é o exercício da responsabilidade de ser. Por isso, ser obediente é receber a dádiva e a tarefa de ser no exercício da responsabilidade da libertação para o vigor da liberdade da verdade, melhor, do mistério do ser. Obediência é, neste sentido, abertura da decisão na responsabilização pelo sentido do ser.
4. A Radicalidade da obediência franciscana
A obediência franciscana, porém, é uma colocação bem radical desse medir-se com o ser. A radicalidade desta colocação aparece no exemplo da “obediência de cadáver”, assim relatado por Tomás de Celano: Noutra ocasião, Francisco, descreveu assim o verdadeiro obediente: “Pegai um cadáver. Ponde-o onde quiserdes. Vereis que não se incomodará de ser movimentado, não se queixará do lugar nem reclamará por haver sido largado. Ser for colocado numa cátedra, vai olhar para baixo, não para cima. Se for vestido de púrpura, vai ficar duas vezes mais pálido. Esse é o verdadeiro obediente: não fica pensando por que foi mudado, não se importa com o lugar onde o puseram, nem fica pedindo para ser transferido. Se lhe dão um cargo, mantém a humildade costumeira. Quanto mais honrado, mais se acha indigno” (2C 152).
Temos que lembrar, aqui, o que dissemos acima: que o conceito usual, funcional, de obediência, pautado pela relação de poder, não consegue captar o essencial da obediência como atitude do espírito. Isso vale ainda mais para esta radicalidade da obediência franciscana, chamada de “obediência de cadáver”. Ela nada tem a ver com obediência cega, com a submissão fascista ou nazista. A diferença entre uma e outra é algo assim, para dizer ainda impropriamente, a diferença entre Hitler e Mussolini e seus sequazes, por um lado, e Jesus Cristo e São Francisco e seus companheiros, por outro lado. Só podemos entender a radicalidade da obediência espiritual se a tomarmos como consumação da mais clarividente e cordial responsabilidade de ser, no movimento do querer, de sua existencialidade, de sua transcendência. “Cadáver” evoca, aqui, o morto, a morte. Trata-se da obediência como morte. Mas não da morte como falecimento. Trata-se da morte como salto da transcendência: Jesus Cristo crucificado. Aprendemos, assim, que é da morte do eu, que nasce a boa obra do espírito.
5. A riqueza da pobreza do querer o não querer
A obediência é, aqui, o movimento do querer que se consuma como transcendência da não transcendência, como querer o não querer. Mas, o que significa isto – querer o não querer? Querer o não-querer parece uma empreitada contraditória e negativa. A expressão, porém, encerra uma tarefa muito importante: respeitar e deixar ser aquilo que nos transcende: o radical (a raiz) Outro, o que nos é impossível e inacessível. Por isso, esse deixar-ser não tem a ver com uma negligência, com um inane deixar correr solto as coisas. Seria, então, uma atividade? Talvez a dualidade atividade-passividade não alcance o sentido do deixar-ser. Em jogo estaria aqui a ação primordial que os chineses chamam de “não-ação” (wu wei): a vida não volitiva, que obedece ao Tao. Na espiritualidade franciscana, aparece como “obediência”: a pobreza do não-querer, do fiat, que não se apropria do, mas se deixa apropriar pelo mistério da gratuidade ou a gratuidade do mistério, para a leveza da liberdade, o leve (leicht) fardo da jovialidade. Não diz Jesus: O meu jugo é suave e meu faro é leve!? (Mt 11,30).
Obediência é, nesse sentido, escuta, melhor, ausculta da sonância e ressonância desse silêncio, desse vigor da liberdade de ser, que transcende o querer de nossas vontades. Ser obediente é não viver a partir de nós mesmos e do querer de nossas vontades, mas sim a partir da origem, do que transcende e deixa ser o querer de nossas vontades e todo o seu movimento de transcendência, de responsabilidade de ser.
Na espiritualidade franciscana, obediência é a pobreza do querer que quer o não querer. É recepção, acolhida, da finitude do querer, não como finitude desgraçada, e sim como finitude agraciada. Mestre Eckhart, místico medieval, dizia que pobreza era nada querer, nada ter, nada saber. A obediência é a pobreza como nada querer. Só que o nada querer não é um não querer, é querer o não querer. É querer o nada do mistério, que está na fonte, na origem do querer de nossas vontades. Obediência é, assim, recepção grata do nada de nossa criaturalidade. E criação diz filiação. Obediência é, para o franciscano, participação na obediência de Cristo Crucificado, obediente ao Pai até a morte de cruz. É, nesta obediência, encontrar a liberdade agraciada dos filhos de Deus.
Conclusão
Este processo de bem receber, com alegria e gratidão, o vigor da finitude de nossa criaturalidade. nós cristãos, chamamos de encarnação. Nele, uma existência, sem remanescentes, entra nos limites de seu existir, em sua carne: retorna da alienação a fim de encontrar-se a si mesma no seu lugar essencial; é o “ad-sum”, o “eis-me aqui”, o “Senhor, que queres que eu faça!?” através do qual a existência humana se torna pre-sença (Da-sein) no sentido espacial originário, que vibra, oscila, nesta expressão linguística. A obediência franciscana é, pois, caminho de libertação interior que acontece na e como encarnação, em que a finitude aparece como finitude agraciada, como gratidão e louvor.
Assim, retornado à sua originariedade, o homem, o novo Adão em Cristo, pode comer de toda a árvore do paraíso porque enquanto nada faz contra a obediência não peca (Ad 2). Amém!
[1] Harada, frei Hermógenes. Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2021, p. 180-181.
Para pensar, conversar e comentar:
1. Na vida originária do humano, principalmente na vida cristã-franciscana, como se relacionam obediência, vontade, liberdade, pobreza?
2. O que São Francisco quer ensinar com o exemplo da “obediência cadavérica?”
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes
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