42º Encontro (20/11/21) - Do mal da própria vontade
- Frei
- 21 de nov. de 2021
- 7 min de leitura
Do mal da própria vontade
1ª Parte
Do mal da própria vontade e do bem da vontade própria
Seguindo seu Senhor, que usou de palavra breve sobre a terra (RB 9,5), também Francisco, em seus Escritos, com raríssimas exceções, é sempre muito sucinto porque essencial. Na primeira Admoestação, por exemplo, como vimos, soube resumir, magistralmente, em pouco mais de uma página, o mistério central do cristão, da Igreja: o Verbo, o Filho do Deus vivo, que prolonga sua Encarnação-Crucificação-Ressurreição através da Eucaristia.
Agora, na segunda, é mais breve ainda. Vejamos o texto:
Disse o Senhor a Adão: “Come de toda árvore; da árvore da ciência do bem e do mal, porém, não comas” (Cf. Gn 2,16-17). Podia, pois, comer de toda árvore do paraíso, porque, enquanto nada fazia contra a obediência, não pecava. Come, pois, da árvore da ciência do bem aquele que se apropria de sua vontade e se exalta pelos bens que o Senhor diz e opera nele. E assim, por sugestão do diabo e transgressão do mandato, fez-se o pomo da ciência do mal. Por isso, importa que sustente a pena.
1ª Parte
DO MAL DA PRÓPRIA VONTADE e do BEM DA VONTADE PRÓPRIA
1. A vontade , um mal?
Novamente, Francisco surpreende! Por ser um homem profundamente bíblico-evangélico, sabe ir ao coração, isto é, às passagens ou mistérios mais significativos da História da Salvação. Nesta segunda Admoestação toca no coração do maior dom da identidade do homem, expresso com o primeiro dito ou ordenamento do Senhor Deus, feito a nossos primeiros pais. Nesse sentido, ela se constitui num desdobramento ou aprofundamento da primeira Admoestação, principalmente quando, em seu final, Francisco exclama para seus frades, exortando-os: “Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado!?” Ora, o que é, ou quem tem coração pesado senão aquele que, a exemplo do primeiro homem, Adão, decide viver se arrastando, como prisioneiro, atrelado ao duro peso das correntes da sua própria vontade e ao amargo sabor do seu próprio querer!? Ó, que pena, quão infeliz, diz São Francisco! Esse só é capaz de viver fechado, dentro do seu pequenino mundo, atrelado somente ao que ele sabe e àquilo que ele quer a partir de si mesmo! Daí o título: Do mal da própria vontade. Sendo assim, o interesse de Francisco é de explicitar, ainda mais profundamente, o que significa, para nós franciscanos, seguir Jesus Cristo crucificado, isto é, seguir Aquele que, ao contrário de Adão, em tudo, em vez de sua própria vontade, seguiu e viveu o próprio da vontade, isto é, a condição de filho muito amado do Pai, até a morte e morte de Cruz.
Debruçar-nos sobre essa Admoestação constitui-se num grande desafio, pois, já pelo título, podemos perceber que ela se expressa fora do nosso modo usual de pensar e viver. Quem ousaria proclamar, hoje, que a própria vontade – querer o que eu quero porque eu quero - seja um mal? Não se estaria ferindo o dom mais precioso e excelente do homem: a liberdade?
2. O primeiro e grande anúncio do Senhor: O homem, como ele, deve ser livre
Como de seu costume e apreço, Francisco começa com um dito bíblico, o primeiro do Criador à sua criatura, Adão.
No texto sagrado está que o Senhor “disse”: Disse o Senhor a Adão. Disse é o mesmo que fez, ordenou, ungiu, dotou, confiou. Assim, o homem ao ser criado foi constituído, ordenado, ungido com o dom maior que Ele, Deus, o Criador tem ou é: a possibilidade de escolher, de querer, de ser livre, enfim, de poder amar, de apaixonar-se, de doar-se; dom igual ao das criaturas celestes e, aqui na terra, concedido apenas a ele. Por isso, disse o Senhor a Adão: “Come de toda árvore; da árvore da ciência do bem e do mal, porém, não comas” (Cf. Gn 2,16-17).
Além do mais, Francisco fala em “Senhor”. Para ele Deus, Criador é antes de mais nada e acima de tudo “Senhor”. Senhor, naquele sentido que, além de uma profunda intimidade, respeito e reverência, demonstra grandeza, soberania, excelência, a exemplo de quem está diante de seu grande pai, o avô ou bisavô, de sua grande mãe, a avó ou bisavó, de sua esposa ou esposo ou de seu mestre predileto. Para Francisco, a raiz desses sentimentos todos está, pois, no júbilo da graça da experiência de ter sido escolhido e visitado no famoso encontro com Ele na igrejinha de São Damião. A partir de então, como os esposos no casamento, Jesus, Deus, passa a ser para ele “Meu Senhor, meu Tudo!” (Cf. Atos 1)
Mas, porque, então, o título fala em mal da própria vontade?
Para responder a essa questão, precisamos tentar penetrar no âmago desse dom de Deus: o querer, a vontade, com o qual ele nos ungiu e ordenou. Em Deus, mais que uma simples faculdade, vontade é seu coração cheio de bem-querer. Mas, um bem-querer que foge a todas as nossas compressões e medidas; um bem querer tão inaudito que só podemos compreendê-lo, de alguma forma, se abandonarmos nossas compreensões e medidas e procurarmos vê-lo segundo as medidas Dele mesmo. E Ele nos revelou quão profundo, quão alto, quão desmedido é seu bem querer ao entregar-nos seu próprio e único Filho, até à morte e morte de Cruz. Jesus Cristo crucificado, portanto, é igual a não se apropriar desse dom: a vontade. É o princípio, a forma originária de todo bem-querer. Um bem querer tão limpo, puro e livre que é capaz de acolher em seu coração até seus algozes.
Mas, apesar de tudo isso, porque não se apropriar da vontade é tão importante ao ponto de Deus morrer por esta causa? Ou, então, porque fazer a própria vontade é um mal tão desastroso? A razão é porque fazer a própria vontade é contradizer a vontade própria, o dom maior que Deus nos concedeu; é abortar nosso humano. Ou seja, o dom com o qual Deus nos concede a possibilidade de fazer-nos humanos e divinos, ascendendo para o alto, para a comunhão com todas as criaturas, e até mesmo com as criaturas celestes e com Ele, o Senhor, nós o usamos para abaixar-nos, igualando-nos aos brutos que seguem seu instinto, fechando-nos em nós mesmos [MF1]. Se na primeira atitude há o céu do encontro, na segunda o inferno do isolamento. Pois, nosso humano nasceu para ser livre e não para viver atrelado, preso, dominado pelo ou ao próprio eu.
Isso significa que sem a expropriação do nosso eu, sem desprender-nos de nós mesmos, de nossa própria vontade, jamais haveremos de sair de nós mesmos para fazer comunhão com o outro eu, mais profundo e verdadeiro, com o outro dos outros, muito menos com Deus, o grande Outro. Nesse sentido, seguir a própria vontade (querer o que eu quero e porque eu quero) nos prende a nós mesmos, impedindo-nos de estar, de viver em comunhão com o outro, nossa vocação primeira e felicidade maior. Somos livres, portanto, para o outro! Bem o contrário do nosso conceito de vontade segundo o qual nós somos livres para nós; livres para fazer o que bem entendermos. Isso o mundo não compreende. É coisa inaudita! O grande e primeiro anúncio do Senhor Deus: Livres para comer de toda árvore do paraíso, isto é, de tudo o que a vida nos oferece, jamais, porém, dos frutos que nascem do próprio eu: da árvore do bem e do mal.
3. O dom da vontade própria, hoje
A exortação do Senhor a Adão, para que siga a vontade própria e jamais a própria vontade, é um desafio que atravessa toda a história da humanidade. Em alguns, como nos santos e justos, esse dom alcança o mais elevado grau de sua excelência. Noutros, como nos promotores de todo tipo de maldades, como o nazismo, as guerras, as corrupções e depravações, ele tem de sobreviver soterrado, debaixo dos escombros do mais baixo grau de esquecimento, obscurecimento e desprezo. Na grande maioria dos homens, porém, é um vade-mécum, que os leva a lutar, com paciência e perseverança, na esperança de que lhe seja dada a graça de um dia, a exemplo do filho pródigo, ver brilhar, como nos primeiros, a luz da liberdade dos filhos do Pai do Céu. Por isso e para isso, antes que “católicos praticantes”, a exemplo do filho mais velho da parábola evangélica, voltados mais para a busca da recompensa e do auto asseguramento espiritual e religioso, precisamos, a exemplo do filho pródigo, converter-nos e abandonar-nos ao espírito do discípulo que tudo deixa para seguir tão somente seu Mestre.
Essa luta, para não fazer da vontade própria a própria vontade, aparece com muita simplicidade, beleza e clareza nesta passagem do diário de Marina, uma franciscana secular: Durante muitos anos lutei contra Ti, Senhor! E como sofri! Sofri de burra! Sofri inutilmente. Não precisava ter lutado. Era só me entregar! Dia após dia eu lutei. “Lutei entre o meu desejo de Deus e o medo de me entregar!” Lutei, lutei até o bendito dia em que Deus me venceu. Então, eu disse - com vontade, com o coração, com a consciência, a inteligência, a liberdade – eu disse com o meu corpo e com a minha alma: “Estou aqui, toma-me! Toma posse daquela que é tua!” E passei a viver. “Já não sou mais eu que vivo. É Cristo que vive em mim” (Gl 2,20) (O Livro de Marina, Adelino Pilonetto, p. 26).
O Papa Francisco, contemplando esse mistério, impresso nas entranhas mais profundas da alma humana e princípio de um humano mais solidário, exorta-nos a que digamos Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo, com estas palavras:
Neste tempo, em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos. Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos.
[MF1] São Francisco dá a entender que as criaturas irracionais são inocentes e que obedecem ao criador melhor do que nós...
Para pensar, conversar e comentar:
1. Qual a diferença entre seguir a própria vontade e a vontade própria? Ou, qual o significado, a importância de uma e de outra?
2. No dia ou mundo de hoje, qual a importância do cultivo da vontade própria? Por quê?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes
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