41º Encontro (13/11/21) - Ver com o coração leve
- Frei
- 16 de nov. de 2021
- 11 min de leitura
Do corpo do Senhor
ou
Como Deus revela a loucura de sua Paixão por nós
9ª. Parte
Ver com o coração leve
Na Admoestação intitulada “Do Corpo do Senhor”, São Francisco evoca a pergunta do salmista, que diz: “Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado?”. Ele nos dá a entender que é justamente o coração grave, isto é, pesado, que impede aos “filhos dos homens”, conhecer a verdade, crer no Filho de Deus e viver como “filhos de Deus”. É a gravidade do coração que torna indiferentes os “filhos dos homens” face à gratuidade e à graciosidade do amor de Deus, de sua benevolência, cujo modo de ser aparece na cordialidade do seu Filho, que “todos os dias se humilha, assim como quando desceu do trono real para o útero da Virgem” (Ad 1,16). É esta gravidade do coração que impede aos “filhos dos homens” “contemplar com os olhos espirituais” o pão e o vinho eucarísticos e crer ser “o santíssimo corpo e sangue vivo e verdadeiro” do Filho de Deus, que se fez carne, isto é, que se fez “filho do homem” como nós, que assumiu a nossa natureza humana, e a vileza e a baixeza, a humildade, de nossa condição. Ele desceu até nós e, assim, nos elevou até Ele e com Ele. Deu-nos, assim, a graça de vivermos na leveza da liberdade dos filhos de Deus. Este descenso e esta elevação acontece cada vez que nós recebemos o seu corpo e o seu sangue eucarísticos. Sua graça nos eleva acima de nós. Tão grande é a cordialidade do Filho de Deus que quer que nós, filhos dos homens, de coração grave, possamos, de coração leve, ser com ele e n’Ele também filhos de Deus.
Perguntemos então: o que significa “gravidade” e “leveza” do coração?
Falamos de coração. Mas, o que significa, aqui, coração?
Nos textos espirituais da tradição cristã em geral, e nas Fontes Franciscanas em especial, a palavra “coração” é empregada segundo o uso da linguagem das Sagradas Escrituras. Aqui a palavra “coração” quer dizer em primeira linha o ponto central do homem, o meio, no sentido do cerne, em que se recolhe, por assim dizer, o homem todo. Evoca, assim, a unidade originária das várias potências ou possibilidades, o princípio de estruturação do homem todo. Coração é o ponto de convergência em que se recolhem e o ponto de divergência a partir do qual se irradiam todas as forças da vida do homem. Se está em jogo o coração, está em jogo o todo do homem. Se está em jogo o coração, está em jogo o inteiro viver humano. Sim, ao falar de coração, está em jogo o viver, a vida, do homem na sua inteireza.
Assim, no recolhimento do coração o homem está realmente junto de si mesmo e na periferia de seu ser ele está junto das coisas, dos outros, do mundo, e alienado de si mesmo. Vivendo descentrado, alienado de si mesmo, o homem faz da sua vida uma fuga. O homem se entrega, então, à vaidade, isto é, ao oco, ao vazio, de um nada aniquilador do próprio viver. O homem passa a viver de hipocrisia, isto é, de dissimulação e máscaras.
O coração é a fonte de onde jorra a vida em nós. É de onde provém as forças do nosso pensar e do nosso querer, e, assim, do nosso agir decidido. O coração é, neste sentido, a sede de nossas decisões.
Quando, porém, o coração está coordenado, aberto e entregue – fé - ao mistério do amor que é Deus, segundo a Admoestação de São Francisco, se dá na leveza do coração. Por outro lado, quando se dá o fechamento, a incredulidade ou infidelidade, temos a gravidade do coração. Pela fé do coração leve, o homem vive cordialmente na recordação do mistério de Deus. Pela incredulidade e infidelidade do coração grave, pesado o homem vive no esquecimento do mistério de Deus, naquilo que a linguagem das Sagradas Escrituras chama de “pecado”.
Entretanto, qual o sentido de falar de leveza ou de gravidade do coração?
Comecemos meditando sobre a gravidade do coração.
O texto da Admoestação traz o adjetivo latino “gravis”, que, em sentido próprio, quer dizer pesado, grave. Em sentido figurado, porém, pode significar tanto forte, que tem peso, sério, importante, digno, considerável; quanto severo, rígido, rigoroso, difícil e ainda penoso, custoso, insuportável, triste, funesto, pernicioso, doentio. Na fala de São Francisco, nitidamente se trata do segundo sentido figurado. O homem do coração grave é o homem que é rígido, difícil, o homem que é para si mesmo e junto de si mesmo penoso, custoso, insuportável, o homem de ânimo triste, pernicioso, doentio, cujo viver é funesto.
A filósofa Simone Weil (1909-1943) escreveu um texto que foi intitulado de “A gravidade e a graça”.
Certa vez, convalescente na Itália, Simone Weil vai até a cidade de Assis. Achega-se à igrejinha da Porciúncula e ali tem uma experiência de religiosidade que transforma sua alma: “estando só na capelinha românica do século XII de Santa Maria dos Anjos, incomparável maravilha de pureza onde São Francisco rezou muitas vezes, alguma coisa mais forte do que eu me obrigou, pela primeira vez na vida, a me por de joelhos”. Ali ela fizera a experiência da leveza da graça. E fora a leveza da graça, não a gravidade da condição humana, que a fez ajoelhar-se. Pois bem. No livro “A gravidade e a graça” ela revela uma espécie de física da alma e diz: “Todos os movimentos naturais da alma são regidos por leis análogas às da gravidade material. Somente a graça constitui exceção. Devemos sempre esperar que as coisas se passem conforme a gravidade, salvo intervenção do sobrenatural”.
O escolástico franciscano São Boaventura, ao escrever o primeiro capítulo do seu “Itinerário da mente para dentro de Deus” (Itinerarium mentis in Deum) diz, em tons agostinianos: “a felicidade não é senão a fruição do sumo bem. O sumo bem está acima de nós. Ninguém, por conseguinte, pode ser feliz, senão elevando-se acima de si mesmo, não por uma ascensão corporal, mas sim por uma ascensão cordial”, isto é, do coração. E acrescenta: “mas, para elevar-nos acima de nós mesmos, temos necessidade de uma virtude superior. Quaisquer que forem as nossas disposições interiores, para nada servem, se a graça não nos ajudar. Ora, o auxílio divino está sempre ao alcance daqueles que o pedem do fundo do coração com humildade e devoção”.
Vamos, agora, tratar da leveza do coração em duas modalidades distintas: na modalidade do pensar e na modalidade da fé. Para isso, vamos nos apoiar em textos de frei Hermógenes Harada.
Primeiramente, tratemos da leveza do coração na modalidade do pensar.
Em nossos dias, frei Hermógenes Harada, em seus escritos, não raro evocou a leveza do ser. Num seminário sobre a obra “Assim falava Zaratustra”, de Nietzsche, ministrado em 1970, ele lembrava a fala do pensador que dizia que só creria num Deus que soubesse dançar. No Zaratustra de Nietzsche, o espírito da gravidade se chama “espírito de vingança”. O espírito da vingança, do ressentimento, da vindicação, face à vida, é como a cinza que encobre o fogo ardente da vida da vida em nós mesmos. Espírito de vindicação é a atitude de fundo, constante, do homem que não conhece a leveza da gratuidade cordial e da cordialidade gratuita. Vindicar é reclamar ou exigir, em juízo, a restituição de algo; é reivindicar, reclamar. Ter um coração dominado pelo espírito da vindicação é colocar-se a si mesmo como vítima ou erigir-se a si mesmo como juiz da vida. É ser ingrato com a dádiva da vida. Zaratustra é o convalescente, isto é, aquele que está sendo libertado do espírito de vindicação e que está, assim, recuperando a “energética da vida
Na obra de Nietzsche, Harada lê constantes apelos e dicas de uma transformação espiritual, em que passamos das cinzas do espírito de vingança, de gravidade, para o fogo da “energética da vida” e para a sua leveza. Para ele, ler a obra é escutar o apelo a ficar apto para a energia da Vida. Trata-se do apelo para abrir-se à bondade transbordante da vida. É abrir-se ao poder e à energia de se renovar continuamente no espírito criativo. Para ele, há textos na Bíblia que trazem este apelo. Assim, quando lemos, no evangelho o apelo de Jesus que diz: “sede perfeitos, portanto, como o Pai celeste é perfeito”, tendo-nos lembrado que “ele faz nascer o sol para os bons e maus e chover sobre justos e injustos” (Mt 5), o que está em jogo é a estrutura da energética de superabundância na generosidade. E ele caracteriza esta atitude assim:
Dar tudo, dessa maneira, ir ao encontro do outro para além de todas as medidas da justiça e dever, perdoar tudo sem exigir a justiça, nem sequer a divina, sem querer ter razão conforme a norma moral justiceira, é afirmar tudo, não por fraqueza, por ironismo, por compromisso, mas sim por amor de generosidade irradiante, forte, cheia de misericórdia e simpatia, sem amargor nem ressentimento.
Afirmar a terra dos homens, o homem em todas as suas negatividades e positividades, como ele é, sem deixar-se amargurar pelas suas maldades, com essa simpatia de generosidade superabundante, é ter um coração de bondade tão grande como “Deus”.
Harada insiste, em suas leituras, que a energética da vida é amor, que o sentido da vida está livre do espírito da vingança. O homem, que se liberta deste espírito, que dele se cura e o supera, torna-se uma passagem, uma ponte para o mistério de um Deus que sabe dançar. Ele aceita cordialmente a realidade Terra. A dinâmica da Terra é o que se chama, na espiritualidade franciscana, de pobreza. A cordialidade, a inocência, a jovialidade, a liberdade do espírito, aparece, na figura da criança.
Em sua peregrinação pela vida, porém, a leveza só “surge como a ponta cristalina de todo um processo de trabalho, luta, transformação lenta, passo a passo”. Nós vemos a leveza de um ballet, mas, de costume, não levamos em consideração que ela “é a obra de tremendas energias coordenadas, coesas de todo um corpo que trava uma luta de vida ou morte contra a atração da terra”. Nós vemos a leveza de uma obra de arte, mas, usualmente, não consideramos que a graciosidade, a beleza, o encanto dela, é a ponta de uma tensão que se dá numa espécie de luta de opostos.
A grande tarefa da vida humana é alcançar esta leveza do coração. O homem que supera o espírito de vingança, a gravidade do coração, entra num novo modo de ser que a filosofia de nosso tempo chama de existência, presença, transcendência. Este modo de ser consiste no desprendimento da serenidade, que deixa ser o ser, isto é, o vigor da vida. Então a vida aparece como o vigor criativo do abismo das possibilidades de ser.
Da leveza do pensar, passemos, por fim, à leveza da fé.
Em “Coisas, velhas e novas”, Harada, ao falar da pobreza do espírito nos evoca a leveza da graça. Pobreza é a apropriação da leveza da graça. O “sine próprio”, da regra de São Francisco, indica esta apropriação. A apropriação, porém, não acontece como um tomar posse de, e sim, pelo contrário, como um desprendimento, um desapego de... de que? Do mistério de Deus.
Apropriar é deixar-ser o próprio de cada coisa. O homem criativo é aquele que deixa-ser o vigor próprio da vida. Harada diz:
Criar, nesse sentido, é deixar ser a propriedade de cada diferença no seu vigor, e nesse deixar ser, tornar-se cada vez mais in-spirado, isto é, acolher o modo de ser da cordialidade da vida. Acolher o modo de ser da cordialidade da vida é abrir-se para a inesgotável profundidade da gratuidade, da liberdade da doação, é tornar-se cada vez mais como Deus que é o Mistério da profundidade do Amor-doação.
O homem criativo, com a obra de sua vida e a vida de suas obras, louva a Deus. Escutemos, de novo, o que Harada diz:
A obra que nasce de um tal envio é a entoação, o louvor do Mistério de Deus. O louvor é a festa da cordialidade do envio na confissão cada vez mais nítida, na transparência, do Inefável, do Inaudível, do Intocável como do recato da abscôndita liberdade do grande, altíssimo e bom Senhor.
Para Harada, a pobreza do espírito é uma experiência que inaugura uma nova compreensão ontológica (do mistério de ser dos entes). Nela “todos os entes são na medida em que são reportados a e temporalizam a nitidez e a transparência da noite clara do Mistério da liberdade de Deus”. Esta compreensão descobre: “o que constitui a interioridade dos entes é a liberdade abscôndita do Mistério de Deus”. A pobreza do espírito é, ao mesmo tempo, exterior e interior. A pobreza exterior é “a diligência, o serviço na cura da concreção do próprio de todas as coisas, a partir da jovialidade de Deus, difusivo na gratuidade”. Já a pobreza interior é “a abertura radical ao uno, ao inesgotável Mistério do envio jovial da Liberdade de Deus”.
O homem pobre é aquele no qual acontece a apropriação do mistério de Deus. Mas esta apropriação não consiste em o homem se apossar do mistério de Deus. Pelo contrário. Vejamos:
A apropriação do Mistério da gratuidade de Deus, isto é, da graça de Deus não é pois assegurar-se, apoderar-se, apossar-se do Mistério, mas sim deixar ser o Mistério de Deus na sua cordialidade, deixar-se guiar por ele, abrir-se a ele no “fíat” incondicional. É nesse abrir-se que se dá a identidade do Eu com a Identidade do Mistério da liberdade de Deus: ao deixar ser a liberdade de Deus, somos no mesmo fiat da nascividade cordial da sua graça, somos gratuitos como o próprio Deus, somos em verdade filhos de Deus.
É então, nesta apropriação do “sine proprio”, que acontece a leveza da existência do homem pobre. Esta leveza se chama alegria:
É nesse sentido que diz Chuang-tzu: A alegria é leve como a pena, mas quem pode carregá-la? (MERTON, 1984, pg. 77). A busca do Eu não pode carregar a graça da liberdade da jovialidade de Deus. O único caminho para possuir, dominar e assegurar a jovialidade de Deus é deixar-se carregar por ela, tornar-se propriedade da sua riqueza.
Essa impossibilidade de carregar a leveza, isto é, a graça da liberdade de Deus, São Francisco a chamou de: Eu, a vontade própria, carne ou corpo.
Essa apropriação errônea da identidade de Deus, por conseguinte do meu próprio eu, é a causa do desejo de possuir, de dominar. A esse tipo errôneo e inadequado de apropriação, de auto-identificação, na sua regra São Francisco (SILVEIRA, 1983, pg. 67) chamou de próprio. Ali a Pobreza evangélica se define: nada de próprio, sine proprio, sem o próprio.
Assim, na primeira Admoestação, temos dois olhares: o olhar do homem de coração grave, que só consegue ver o visível, e o olhar do homem de coração leve, que vê o visível à luz do invisível. É o olhar daquele que contempla espiritualmente. Um é olhar daquele que vê segundo o seu eu. Outro é o olhar daquele que vê “segundo o espírito e a divindade”.
Assim, todo o desafio da vida, a todo o momento, é um apelo e um convite a passarmos do coração pesado para o coração leve. Vemos o que somos e somos o que vemos, dizíamos em outra meditação. Pois hoje podemos acrescentar: vemos e somos segundo a dinâmica do nosso coração: se nosso coração é grave, só vemos o visível e ficamos cegos para o mistério do invisível e o invisível do mistério; mas se nosso coração é leve, vemos mistério do invisível e o invisível do mistério. Somos então bem-aventurados, isto é, enamorados de Deus. Olhamos então com o olhar do amor, o olhar da gratuidade, o olhar que deixa ser e aparecer tudo na noite clara do mistério da liberdade de Deus.
Para pensar, conversar e comentar:
1. O que significa, segundo São Francisco, ver com o coração leve?
2. Como se relaciona dom a Boa Nova de Jesus?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes
Continue bebendo do espírito deste tema:
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Professor Marcos Aurélio Fernandes
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