36º Encontro (09/10/21) - "O Espírito é Deus": uma sentença que dá o que pensar
- Frei
- 11 de out. de 2021
- 9 min de leitura
Do corpo do Senhor
ou
Como Deus revela a loucura de sua Paixão por nós
4ª. Parte
"O Espírito é Deus": uma sentença que dá o que pensar
Como nos últimos Encontros, também no de hoje, vamos retomar a Admoestação 1ª de São Francisco, detendo-nos mais precisamente no famoso dito de Jesus: “O Espírito é Deus!” No latim do texto de São Francisco está escrito: “spiritus est Deus”. No grego do Evangelho de João lemos: “pneuma ho Theós”. Lendo literalmente: “espírito o Deus”. A tradução mais usual, que também está correta, é: “Deus é um espírito”. Nós lemos, porém: “Espírito é Deus”. Ou: “O Espírito é Deus”.
Esta palavra é dita por Jesus no diálogo com a samaritana, junto ao poço de Jacó. Jesus parece versar, de início, acerca da “água viva”, isto é, da água que flui sem cessar, continuamente, sempre de novo e de modo novo, vivificando tudo o que ela toca. A água continuamente fluente distingue-se da água de poço, parada. Ela jorra da fonte e vira um manancial, que caminha para o mar. E assim, o mar, por sua vez, torna-se a grande fonte. Todas as águas, de todas as fontes da terra, caminham para a grande fonte, que é o mar. Os caminhos das águas são todos, por assim dizer, atraídos para a grande fonte, a abissal fonte do mar.
No diálogo com a Samaritana, Jesus vai se revelando à mulher, até se desvelar como o Cristo: aquele que pode dar “água viva”. Trata-se de uma água que sacia o desejo infinito do coração humano, precisamente, o desejo do infinito, que pulsa no coração de cada homem. Em jogo está uma água que jorra para a vida eterna naquele que crê, naquele que se abre na obediência da fé para a graça do encontro com Cristo; naquele que a Ele adere de todo o coração, seguindo-o e tendo-o como o incondicionado e absoluto de sua vida. Nesse, dizíamos, então, jorra a água viva para a vida eterna. No mesmo Evangelho de São João, mais tarde, Jesus irá exclamar: “Se alguém tiver sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura: do seu interior correrão rios de água viva” (Jo 7, 38). O Evangelista anota: “Referia-se ao Espírito que haviam de receber aqueles que cressem nele. De fato, ainda não fora dado o Espírito, pois Jesus não tinha sido glorificado” (Jo 7, 39). O Espírito é, pois, o sopro vital e originário do Cristo Crucificado e Ressuscitado, que Ele O concede a quem o segue vivendo na liberdade dos filhos de Deus.
Logo no começo do diálogo com a Samaritana Jesus se refere a si mesmo e ao “dom de Deus” (Jo 4, 10). Em grego, “ten dorean tou Theoû”, “a dádiva de Deus”. Ora, o “Dom de Deus” por antonomásia é o Espírito Santo. Portanto, o Filho é quem dá o dom de Deus, o dom do Pai, isto é, o Espírito Santo. Já a Nicodemos, Jesus tinha dito que era preciso nascer da água e do Espírito Santo. E acrescentava: o que nasce da carne é carne, mas quem nasce do Espírito é espírito (Jo 3, 6). E compara o Espírito ao vento, isto é, à liberdade. Jesus dizia: “O vento sopra onde quer e lhe ouves a voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai” (Jo 3, 8a). E parece insinuar que quem nasce do Espírito e, assim, é espírito, também tem o modo de ser da liberdade, ao dizer: “Assim é todo aquele que nasceu do Espírito”. Quer dize: quem nasce do Espírito é espírito e tem o mesmo modo de ser do Espírito: a liberdade.
A fala de Jesus à Samaritana, “o Espírito é Deus”, portanto, não está, a nosso ver, dizendo que Deus é um espírito, isto é, não está afirmando que Deus é imaterial, embora isto seja correto. Esta fala está afirmando outra coisa. Está evocando algo mais essencial. Está dizendo que o Pai, aquele que, como vimos na Admoestação de São Francisco, “habita uma luz inacessível”, é fonte do Espírito e de todos os dons que são comunicados pelo Espírito Santo, que é, simplesmente, o “Dom de Deus”. O Pai é fonte do Espírito. O Filho é doador do Espírito. Assim, o Espírito é dádiva do Pai e do Filho. Sendo pura doação ou doação pura o Espírito é espírito da verdade e da liberdade. Por isso, todos aqueles que por Ele se deixam atingir, como a Samaritana, como o próprio Francisco, nascem de novo, do alto e adoram o Pai “em espírito e em verdade”. Sua vida é um tinir e retinir do mistério da gratuidade e da gratuidade do mistério, do Amor, que é Deus. Frei Hermógenes Harada, num texto intitulado “Espírito e Liberdade”, termina sua reflexão dizendo em forma de pergunta:
Espírito e liberdade, não é ele um modo de ser ressonante, no qual o Deus oculto, sem nome, a quem o fazer do nosso saber chamou de Espírito Santo, se en-via como o vigor e o pudor da sua vitalidade, para renovar a face da Terra no en-canto da sua in-spiração?[1]
Nosso tempo, infelizmente, é caracterizado por uma cegueira em relação ao espírito. Por isso, pata melhor compreender o modo (estranho para nós) de Francisco dizer que o Espírito é Deus, consideramos necessária uma reflexão a respeito do espiritual e do espírito.
Perguntemos, então, duas coisas:
1) O que quer dizer espiritual e espírito?
2) O que tem a ver espírito e liberdade?
Geralmente, nós entendemos o espiritual como o imaterial, o oposto à matéria. Uma compreensão, portanto, meramente negativa. Por isso, vamos tentar buscar uma compreensão positiva do que se quer evocar com a palavra “espírito”.
Para nós, que confundimos o concreto com o material, o espírito, o espiritual, soa como algo abstrato, etéreo, fantasmagórico. Desperta suspeita de fuga para a irrealidade. Delírio ôntico! Contudo, espírito, espiritual, tem a ver com vida. E vida é uma realidade experimental muito simples e concreta e, por isso, difícil de deixar vir à linguagem. Nem por isso, alguém dirá que vida é algo abstrato ou irreal.
No seu texto, já mencionado aqui, “Espírito e liberdade”, frei Harada diz: “Mas, então, o espírito não é um ente. Não é uma coisa, oposta ao corpo. É antes um modo de ser. Modo de ser que se chama todo ouvido na ausculta! Modo de ser radicalmente diferente do saber, querer e fazer; modo de ser que está no fundo, na raiz, aquém da estrutura do para quê; estrutura essa que per-faz o saber, querer e fazer da nossa existência. Com outras palavras, o espírito é o coração da nossa existência”[2]. Assim, espiritual é aquele homem que não vive a partir de seu saber, querer e fazer, mas que vive na ausculta da vida da vida, de seu silêncio e de sua sonância e ressonância, em todas as coisas. Em linguagem cristã, diríamos que espiritual é aquele que vive na obediência que dá a liberdade dos filhos de Deus. São Paulo opõe espírito à carne, espiritual a carnal. Carnal é aquele homem que vive a partir de si mesmo, de suas possibilidades, de seu ter, querer e saber. Espiritual é aquele que é pobre de todo o ter, de todo o saber e de todo o querer, e, assim, se abre para a riqueza essencial do Espírito; quer dizer, é aquele que se torna abertura e passagem para a vida da vida. Frei Harada ainda nos acena para aquilo que constitui o ser espiritual do homem ao dizer:
Ser espiritual é, pois, deixar constituir-se passagem da gratuidade de ser para a con-creção do fazer e não-fazer, do saber e não-saber, do querer e não-querer, de con-creção do fazer e não-fazer, do saber e não-saber, do querer e não-querer para a graça, para o aceno da gratuidade.
Ser assim passagem é a essência do homem: a Liberdade que o texto denomina Espírito.
Essa passagem é o caminho do Tao. Caminho que é o próprio Tao[3], pois o Tao é somente em-via como o retraimento no envio.
Ser espiritual é, ainda, para o homem, ser a aberta, a clareira, isto é, a abertura do clarear e do ressoar do mistério da gratuidade do ser. Falamos tanto do clarear da luz quanto do clarear do som. Clarear – ‘claro’ – não é só o que se iluminou, mas também o que ressoa bem. Espiritual é aquele homem que deixa ressoar em si o som fundamental do ser, de que todos os entes provêm.
Frei Hermógenes, no mesmo texto mencionado, “Liberdade e espírito”, caracteriza assim o ser espiritual do homem:
Esse ser, como ex-sistência na ab-tensão por e para a cordialidade da gratuidade, isto é, ser todo ouvido como a ausculta e a acolhida da jovialidade de ser é o Espírito. E a dinâmica desse vigor radical é a Liberdade. Por isso, Espírito e Liberdade é uno. Liberdade de Espírito e Espírito de Liberdade que tudo liberta, tudo reconduz à sua essência nasciva, tudo renova na sua novidade originária; não re-age, não age, nada faz, pois não necessita desses projetos do saber, querer e fazer; é silencioso na sua grandeza e no recato de ser, tudo penetra sem aparecer, rege como a suavidade da Vida, Vida que renova continuamente, tenazmente na generosidade insondável da sua graça, a face da Terra.
O Espírito reina sem se impor em todas as coisas. Sua vigência é como a de um sopro suave. Toda a linguagem e todo a língua inspirada pelo espírito é sonância e ressonância de seu silêncio. Lembremos aqui a experiência de Elias sobre o monte Horeb; uma experiência da vigência silenciosa do Espírito na brisa suave. Este episódio é assim evocado, na tradução que Hermógenes Harada dá de um texto bíblico traduzido, por sua vez, por Martin Buber (HARADA, 2021, p. 62):
E falou: Para fora
De pé, para a montanha, diante da minha face!
E passando, Ele:
Um vendaval tempestuoso imenso e violento,
Fendendo montanhas, esmigalhando rochas,
De lá, da sua face: Ele, não, na tempestade –
E após a tempestade, um terremoto:
Ele, não, no terremoto –
E após o terremoto, um fogo:
Mas, após o fogo,
A voz do silêncio suspenso.
O silêncio aparece, aqui, como fenômeno da transcendência.
Espírito é a transcendência enquanto liberdade. Espírito e liberdade são um. A liberdade do espírito e o espírito da liberdade tudo reconduz ao seu próprio, à sua originariedade. Tudo liberta para deixar repousar em sua essência. Espírito é o que suavemente reina no favor, na graça, do Ser. Ser diz, pois, abrir e emergir, viver e, ainda, demorar na abertura da liberdade. O espírito e o espiritual deixam-se vislumbrar quando fitamos a vida da vida. Espírito diz a liberdade criativa e a criatividade livre da vida se dando, como mistério, em tudo o que respira, isto é, em todos os viventes. O mistério de ser está em tudo, mas é na vida que aparece, com mais clareza, que no ser; no vir a ser e não ser de todo real mora um mistério desconhecido e não sabido.
Na vida cristã, espírito e liberdade são experimentados a partir do Sopro Sagrado de Jesus Cristo, o Deus crucificado. Vida espiritual é, para o cristão, viver a experiência radical da liberdade dos filhos de Deus. Nesta experiência, o ser espiritual do homem renasce a partir do encontro com o Crucificado. Na vida cristã, a liberdade não é uma propriedade do homem, antes, como diz o prof. Emmanuel Carneiro Leão,
o homem é que chega a realizar-se como homem, enquanto e na medida em que é apropriado pela liberdade. A liberdade é uma dinâmica abrangente e conquistada na verdade de Deus, em cuja vigência o homem se liberta, fazendo-se homem e vice-versa. A hominização do homem se funda e exerce na significação da liberdade pela verdade. Ademais a liberdade não é uma coisa nem uma qualidade nem uma propriedade que o homem possa ter ou deixar de ter. Liberdade não é nariz, muito embora, e precisamente por isso, no perfume da libertação o homem sinta a liberdade da verdade. A liberdade só se dá como conquista, a liberdade só existe como empenho de libertação, a liberdade só se presenteia no e como desprendimento da verdade. Somente na medida em que nos lançamos neste pulo, no pulo do desprendimento, é que existimos como filhos da verdade[4].
Este desprendimento é o que São Francisco chama de “Altíssima Pobreza”. A pobreza é, em São Francisco, experiência radical de liberdade. Ela é “pobreza no Espírito”. “Espírito que é Deus!”
Voltemos ao dito inicial de São Francisco: “o Espírito é Deus, e a Deus ninguém nunca viu. Por isso, não pode ser visto a não ser em espírito”. Esta sentença nós interpretamos assim: Deus é inacessível. Conhece-lo é, a partir do homem, impossível. Mas não desde Deus. A partir de Deus, na acolhida da graça, isto é, da transcendência da fé, nas obras da liberdade, o homem passa da possibilidade impossível para a impossibilidade possível. O homem só pode ver, conhecer, Deus à medida que se torna Deus. O interesse da espiritualidade, neste sentido, consiste em, na própria mente, cuidar da recepção do espírito que é Deus. Assemelhar-se a Deus, deixar-se deificar por Deus. Somente tornando-se (filho de) Deus, desde o Espírito, é que o homem vê Deus, conhece a Deus.
[1] Harada, Hermógenes. Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2021, p. 134. [2] Harada, Hermógenes. Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2021, p. 132. [3] A letra Tao em ideograma chinês é caminho. [4] Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar I: o pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 174-175.
Para pensar, conversar e partilhar:
1. O que significa “espírito”, “espiritual” para São Francisco?
2. Como se relacionam espírito e liberdade?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes
Continue bebendo do espírito deste tema:
- indo ao texto-fonte: 36º Encontro - "O Espírito é Deus": uma sentença
que dá o que pensar
- postando seus comentários;
- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 36º Encontro - "O Espírito é Deus": uma sentença que dá o que pensar
Professor Marcos Aurélio Fernandes
Inscreva-se e curta nossos vídeos.
Próximo Encontro: 37º Encontro - Do corpo do Senhor - 5ª parte - Isto é o meu corpo e isto é o meu sangue
#espiritofranciscano #estudosfranciscanos #fontesfranciscanas #freidorvalino #freidorvalinofassini #professormarcosfernandes
Comments