35º Encontro (02/10/21) - O Espírito é Deus e só pode ser visto no Espírito
- Frei
- 3 de out. de 2021
- 8 min de leitura
Do corpo do Senhor
ou
Como Deus revela a loucura de sua Paixão por nós
3ª. Parte
O Espírito é Deus e só pode ser visto no Espírito
Nos encontros anteriores, vimos Francisco retomar uma das catequeses mais importantes de Jesus: que o Pai mora numa luz inacessível. Vimos, também, que esse ensinamento visa, justamente, mostrar o quanto seu e nosso Pai fez e faz para tornar-se acessível a nós, para ser o “Deus conosco”; o quanto e o que Ele fez e faz para que nós sejamos capazes de acolhê-Lo e amá-Lo. No encontro de hoje, vamos, então, ver como ou o que nós devemos fazer para ver e acolher o Pai. Pois, não basta que o Pai se mostre. É preciso que nós não apenas queiramos vê-Lo, mas, também que o façamos de modo adequado, justo, correto.
O texto da 1ª Admoestação continua assim:
”O espírito é Deus, e a Deus ninguém jamais viu”. Por isso, Ele não pode ser visto senão no espírito, porque “o espírito é que vivifica, a carne de nada serve”. E nem o Filho, no que é igual ao Pai, pode ser visto por alguém de forma diferente que o Pai e o Espírito Santo. 8Por isso, foram danados todos quantos viram o Senhor Jesus segundo a humanidade, e não O viram e não creram segundo o espírito e a divindade, que seja o verdadeiro Filho de Deus.
A fala de Francisco é sempre surpreendente, totalmente diferente da nossa. Nós, seguindo a maioria dos tradutores do Evangelho, por exemplo, costumamos dizer que “Deus é Espírito”. Ele, porém, seguindo o texto original, diz que o Espírito é Deus. Quando dizemos “Deus é Espírito”, sem nos aperceber, estamos definindo Deus, isto é, colocando Deus dentro de nossas medidas ou conceitos. Deus, nesse caso, não seria mais inacessível, mas alguém semelhante a um “objeto”, conhecível, domesticável, manipulável por nós. Quando Francisco, porém, diz que o Espírito é Deus, significa que estamos diante de uma realidade que ultrapassa todas as nossas medidas; que jamais seremos capazes de ver e compreender Deus com nossas medidas, inteligência ou espírito. Seria como se a gota d’água quisesse pôr o mar dentro de suas ínfimas medidas. Impossível! Só há, por isso, nesse caso, uma única possibilidade de encontro: o mar entrar na gota d’água. É o que Deus faz. Para que esse milagre aconteça, ele se abrevia, se apequena, faz-se criança, crucificado, pão e vinho “eucaristizados”. “Eucaristizados” significa doados, dados, entregues tão gratuita e graciosamente que podemos tomá-los, comê-los e bebê-los.
Eis o esforço doido, incomensurável que Ele faz a fim de poder vir e entrar em nós. Assim, ele empresta, dá a nós suas medidas sem medidas, seu amor infinito para que, com as medidas Dele, possamos recebê-Lo. Coisa inaudita! À criatura é dada a faculdade divina de poder receber, comer seu Criador; ao amor finito, frágil e inconstante de poder amar o Amor infinito, fiel e eterno. Daí a expressiva conclusão de Francisco: Por isso, Ele só pode ser visto no espírito porque o espírito é que vivifica, a carne de nada serve. No amor, a lei é: amar para compreender e não querer compreender para amar!
Portanto, para vê-lo e recebê-lo é preciso que Ele, antes, me dê do seu Espírito e eu o receba; que eu, enfim, “me torne Deus”. E isso Ele, da parte Dele, já o fez em abundância e em toda a sua profundidade, através do seu mistério de encarnação-cruz e ressurreição. Em outras palavras, o Deus de Jesus Cristo, o Pai, só compreendo se me tornar Ele, isto é, seu filho em Jesus Cristo, no seguimento Dele, na observância de seu Evangelho, no encontro corpo a corpo, na busca engajada, humilde e devotada da sua imitação... Mas, todo esse empenho não é outra coisa senão a possibilidade, gratuitamente a mim concedida, da acolhida amorosa do Pai e da acolhida humilde, da minha parte, desse amor primeiro. E assim, nesse encontro, não sou eu quem tem o Espírito do Senhor, mas é o Espírito do Senhor que tem a mim como seu filho muito amado no seu Filho Jesus Cristo (Cf. HH).
Espírito, portanto, não é uma coisa entre outras coisas, mas a “coisa” de todas as coisas, a realidade mais real de tudo e de todos, a causa, a razão que a tudo e a todos move e sustenta. No latim “coisa” é “res”, isto é, o “real”, o que tudo rege e sustenta. Por isso, onde houver uma gota desse Espírito, isto é, de bondade, amor, misericórdia, atenção, compaixão, doação, etc., essa bondade, esse amor, essa misericórdia, essa atenção, essa doação ou compaixão, aconteça onde acontecer, na saúde ou na doença, no trabalho ou na oração, na vida ou na morte, na paz ou na guerra, na vida particular ou social; ou em quem acontecer, num crente ou ateu, religioso ou pagão, amigo ou inimigo, nosso ou de Deus, sim, tudo aquilo e isso é “coisa” de Deus, isto é, da pura doação, do puro Dom, da pura gratuidade que é Deus, o Reino, o Serviço de Deus no meio de nós: o Espírito que é Deus. Era esse mistério que fazia São Francisco, mesmo em meio a inúmeras tribulações interiores e exteriores, explodir de júbilo, exclamando e cantando: Altíssimo, onipotente bom Senhor! Teus são os louvores, a glória e a honra e toda a bênção! (CSol)
Enquanto o mundo segue a lógica do merecimento, da compra e da venda, do comércio, da competência; de primeiro conhecer para amar, o amor segue a lógica da gratuidade. O amor só se conhece e se recebe no amor e pelo amor, na doação e pela doação, na cruz e pela cruz, na morte de si mesmo. Se Deus morre para dar-se, outro não poderá ser o caminho de quem queira recebê-lo e segui-lo. O dito de Jesus acerca da necessidade de o grão de trigo morrer para produzir fruto (Jo 12,24) vale tanto para Ele como para nós seus seguidores. Só é possível acolher a graça do encontro, da comunhão, da vida se houver esquecimento, abandono, morte de si mesmo. Por isso, enquanto o fariseu soberbamente só fala a partir de si: “Eu rezo, eu jejuo, eu amo, eu pago o dízimo...”, o publicano, humildemente, todo envergonhado, mas com fé, exclama: ”Senhor, tem piedade de mim porque sou pecador. Mas, se tu queres podes curar-me!” (Cfr. Lc 18,9-14) Nesse caso, o primeiro jamais provará a alegria da graça do encontro, da vida. Isso porque ele está envolvido somente consigo e só sabe encontrar-se consigo mesmo. Daí a conclusão de Francisco: Por isso, foram danados todos quantos viram o Senhor Jesus segundo a humanidade e não o viram e não creram segundo o espírito e a divindade que seja o verdadeiro Filho de Deus...
Segue, então, a magistral conclusão de Francisco: Por isso, o espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, é quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor. Todos os outros que não têm do mesmo espírito e presumem recebê-lo, comem e bebem “o seu julgamento”.
Poderíamos traduzir assim: o espírito da gratuidade, ou do amor, é que recebe a gratuidade, o amor. Todo aquele que estiver no espírito de si mesmo, recebe, comunga apenas a si mesmo. Nesse caso, diz Francisco, será um danado, isto é um coitado, perdido, prejudicado. Perdido, prejudicado porque isolado, sem comunhão com ninguém. Nem com Deus, nem com os outros e nem consigo mesmo.
Usualmente entendemos essa afirmação como punição ou castigo. Aqui o ponto de partida parece ser outro: o toque, a experiência da graça de haver sido amado. Quem jamais teve essa experiência não pode pecar e muito menos ser danado, prejudicado. Enfim, sentir-se danado não é outra coisa senão o (des)gosto amargo (“o fogo e ranger de dentes”) da perda da experiência da graça do encontro. Se, por acaso, alguma mãe, por interesses espúrios, perde o amor à maternidade está danada, perdida. Vira uma coitada, uma desventurada, para não dizer desgraçada, merecedora de toda compaixão e piedade. O mesmo, e muito mais, vale para o seguidor de Cristo.
Por isso, ver, aqui, significa crer, entregar-se, jogar-se para dentro do mistério da gratuidade ou cordialidade da afeição, do enamoramento. Era isso, ou seja, para esse salto no escuro mistério da fé que Cristo convocava Filipe ao dizer lhe: Há tanto tempo que estou convosco e ainda não me conhecestes? Quem me vê, vê o Pai! Em outras palavras, “Filipe, chega de ver-me apenas como um filho do homem, útil aos interesses particulares ou sociais, políticos e econômicos seus ou do povo. Eu sou o amor, a gratuidade do Pai e não vim escolher você para ser-me proveitoso ou útil a modo de empregado, funcionário ou súdito. Só escolhi e quero você para acompanhar-me no caminho do Pai. Meu Pai quer filhos e filhos muito queridos e não políticos, economistas, psicólogos, pastoralistas, “religiosos”, etc.”.
O Espírito, hoje
No decorrer dos séculos, a Igreja e seus fiéis sempre manifestaram profunda fé no Espírito Santo, como vemos na proclamação do Símbolo Niceno-constatinopolitano: Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida e procede do Pai e do Filho; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas.
A presença do Espírito, porém, pode, e de fato, nos últimos séculos, foi ofuscada pela presença e atuação do espírito do mundo. Ultimamente, porém e felizmente, depois de alguns séculos de uma Igreja fortemente comprometida com o espírito do poder, da vanglória, da fama, da soberba do mundo, a partir do Vaticano II, sempre mais, somos convocados a deixar-nos inspirar e conduzir pelo Espírito, expresso pela Boa Nova, o Evangelho.
Nosso Papa Francisco, por exemplo, insiste muito para que sejamos evangelizadores com Espírito, isto é, evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia, em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo, hoje, bem apoiados na oração, sem a qual toda a ação corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma. (EG 259).
Por isso, também, o mesmo Papa nos adverte e exorta: Quem caiu nesse mundanismo olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência. Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É uma tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais! Este mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa vazia de Deus (EG 97). Enfim, parafraseando o próprio Papa: não deixemos que nos roubem o Espírito!
É admirável que a necessidade da atenção ao espírito, hoje, é sentida muito fortemente, também, por muitos homens e mulheres do século, como, por exemplo, o cineasta francês Vincent Moon. Ouçamos seu testemunho: Quando eu estava gravando bandas, na rua, eu não queria gravar pessoas famosas, mas música, pesquisar algo do invisível. Odeio tudo o que tem a ver com fama; é uma doença da nossa época. O que eu quero é ver a mente, o espírito das pessoas e não seus gostos, seus sucessos, erros e pecados, sua subjetividade (Entrevista ao jornal Zero Hora).
Para pensar, conversar e comentar:
1. Por que Francisco, em vez da falar como nós “Deus é Espírito”, fala que “o Espírito é Deus”?
2. O que ou como fazer para atender a admoestação de São Francisco e do nosso Papa?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes
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