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34º Encontro (25/09/21) - Do inacessível e da fé

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 27 de set. de 2021
  • 9 min de leitura


Do corpo do Senhor

ou

Como Deus revela a loucura de sua Paixão por nós



2ª. Parte


Do inacessível e a da fé


No último Encontro damos início ao estudo da Primeira Admoestação de São Francoso, intitulada De corpore Domini (“Do corpo do Senhor”). Hoje, vamos dar continuidade ao tema da Incessibilidade de Deus, abordada apenas em parte no último Encontro. Na mencionada Admoestação, Francisco, após expor algo do diálogo de Jesus com seus discípulos, e especialmente com Filipe, traz uma menção da Primeira Carta a Timóteo, de São Paulo. Ele diz: “O Pai habita numa luz inacessível”.


Inacessível quer dizer, à primeira vista, aquilo que não se pode acessar. O texto de Paulo diz que o “Único soberano”, o “Rei dos reis e Senhor dos senhores”, o “único que possui a imortalidade”, “habita numa luz inacessível”, e completa: “que nenhum homem viu nem pode ver”. E termina com uma doxologia: “a quem sejam a honra e o poder eterno. Amém” (1Tm 6,15b-16).


A palavra grega usada pela carta paulina – aprósitos – traz o sentido de privação, de um não poder caminhar para, de um não poder aproximar-se, de um não poder encostar-se; diz também um não poder ter relação com, um não poder frequentar. Tudo um “não!” O modo de significar desta palavra, portanto, é privativo; ela nos dá, assim, a entender o modo de ser da falta de Deus, melhor, de sua ausência.


Mas, que sentido tem uma tal falta ou ausência? Significa que toda a nossa fala acerca de Deus sempre será falha, uma fala marcada pela ausência, pela falta. Ou seja, está dizendo que não está no poder do homem falar do mistério maior que está infinitamente para além de seu alcance. Tudo o que o homem disser de Deus, a partir de si, é muito mais um não do que um sim. Deus não é dizível, falável pelo homem. O nome “Deus” evoca, justamente, o indizível, o não falável. Para alguém poder falar de Deus teria que ser Deus.


O fato, porém, de Deus ser indizível pelo homem, não significa que Ele esteja ausente, fora da vida e da história dos homens. Sua presença, porém, é oculta, escondida. Deus vive escondido atrás das pessoas e dos acontecimentos porque, se aparecesse como Ele é, não seríamos rapazes de sobreviver, derreteríamos como cera diante do fogo. Esse ocultamento, portanto, em vez de ausência, diz o sumo da presença. Assim, no vigor de ser da ausência se nos doa sua presença que deve ser apropriada, isto é, recebida, acolhida, e, neste acolhimento, tomada como nosso próprio, isto é, como uma riqueza essencial, como um esposo recebe sua esposa ou uma mãe seu filho.


Essa ausência ou ocultamento, portanto, resguarda, protege o passado não como passado, mas como presente, um passado que, ocultamente, já se nos lançou à nossa frente e nos espera no futuro. É um passado que se dá como o penhor de um futuro. Ele concede o advento velado de um viger inesgotável. Ele evoca, assim, uma doação fontal, porém, velada, do mistério. Deus é o passado mais arcaico (fontal, originário) e o futuro mais longínquo do homem. Daí que São Francisco, no primeiro verso de seus “Louvores para todas as Horas” (LHr) diz: “Santo, santo, santo Senhor Deus todo-poderoso, / que é, que era e que virá: / e louvemo-lo e superexaltemo-lo pelos séculos”.

A experiência do divino dos profetas judeus e a pregação de Jesus, diz Heidegger, se dão sob o signo dessa ausência de Deus. Ela é memória agradecida e espera vigilante do advento de Deus. Ela tem um sentido para a ocultação e o velamento do mistério de Deus. Ela traz o sentido da presença na ausência. Ora, não é este sentido que nós chamamos de fé?


A palavra “inacessível”, portanto, evoca o mistério de Deus como tal. Mistério é o que se doa, retraindo-se; o que se mostra escondendo-se. O inacessível do mistério, porém, não é o inatingível, o inalcançável. Por isso, é muito importante ter clareza quanto à diferença entre esses dois adjetivos. O inacessível significa que, de nossa parte, não há e jamais haverá nenhuma possibilidade de ter acesso ou de realizar o encontro. Já o termo inatingível diz apenas que, no momento, por uma falta ou deficiência nossa, não conseguimos realizar esse objetivo, mas que no futuro, provavelmente, isso será possível. Assim, por exemplo, o pico do monte Everest para nós, o comum dos seres humanos, sedentários, é inatingível. Mas, para destemidos alpinistas, o pico do monte Everest não é inatingível.


No inatingível o alcance é apenas uma questão de tempo. Já o inacessível está e estará sempre, absolutamente, fora de nossas possibilidades. Por isso, de nossa parte, o que mais importa diante da inacessibilidade do mistério que é Deus, é acolhê-lo, amá-lo como tal, como mistério, como o impossível à nossa capacidade de compreender, acolher e amar. Tentemos agora reler a sentença da carta de Paulo: ao dizer que o “Único soberano”, o “Rei dos reis” e “Senhor dos senhores” habita numa luz inacessível, e ao declarar que “nenhum homem viu nem pode ver”, está falando do impossível, isto é, do que está absolutamente fora de nossas possibilidades.


A fé primordial ensina ao homem tomar a sério esta inacessibilidade, no relacionamento com o divino e com Deus. Isso significa que o homem precisa desprender-se de todas as suas medidas e de todas as suas possibilidades e competências e abrir-se ao mistério de Deus e de envolver-se com Ele, enquanto mistério. O pensador do século XV, cardeal Nicolau de Cusa, cunhou um nome para evocar este mistério transcendente de Deus: non aliud, “não-outro”. Ao evocar Deus não como um outro em referência a nós mesmos, mas como um “não-outro”, em primeiro lugar, se está acentuando a inacessibilidade de Deus. Nas palavras de frei Hermógenes Harada, isto significa: “Deus é tão diferente de, tão anterior a nós que dele nem sequer podemos dizer que é inteiramente diferente, outro do que nós mesmos![1]. Podemos comentar: se considerarmos Deus como o radical outro, o totalmente outro, ainda estaremos tomando Deus a partir de nós mesmos. Nesse caso estaríamos dizendo que sabemos pelo menos uma coisa: que Ele é Outro. Por isso, os medievais diziam que Ele é tão diferente que nem isso podemos dizer.


Na verdade, Deus está acima de toda a nossa afirmação e de toda a nossa negação. Mas a negação nos permite melhor intuir o mistério de Deus, como mistério. O “não” do “não-outro” não é mera negação. É abnegação. Não é mera abdicação. É renúncia, isto é, re-anúncio. Ao evocar Deus como “não-outro”, nós re-anunciamos sua inacessibilidade, isto é, sua magnificência insondável! Ao evocar Deus como “não-outro”, nós dizemos: chamar Deus de outro, de radical ou totalmente outro, é ainda dizer pouco, nada de Deus. O “não” do “não outro” é dialético: ele nega, mas para elevar. Ele nega nossa pretensão de dizer Deus como outro, para elevar-nos à sua inacessibilidade. Como podemos aprender com Mestre Eckhart, com quem Nicolau de Cusa muito aprendeu, “no não dito de sua linguagem é que Deus é Deus”[2]. O nome “não outro”, dito de Deus, apenas quer aludir ao seu inacessível e absoluto mistério, o único Bem, como diz São Francisco (LHr).


Além disso, o nome “não outro” diz também: para Deus não há nada que seja estranho. Nenhuma criatura é o que ela é fora de sua participação no ser, que Deus lhe comunica. Deus é mais íntimo à criatura do que ela a si mesma! Deus não exclui nenhuma criatura da sua comunicação do ser, isto é, de sua bondade difusiva, que se autocomunica, comunicando o ser à criatura. Deste modo, a inacessibilidade de Deus é, ao mesmo tempo, lonjura e proximidade, transcendência e intimidade em relação à criatura.


A inacessibilidade de Deus diz, assim, que Ele se autocomunica a todas as criaturas, a partir de sua bondade difusiva. Nada nem ninguém está excluído desta autocomunicação de Deus. Nada nem ninguém está excluído de sua bondade. Ela é universal: abrange todas as identidades e todas as diferenças das criaturas, abraça todas as identidades e todas as diferenças humanas: não há caminho humano que não seja contemplado com o cuidado solícito de Deus. Inacessível a partir de nós, Deus se faz acessível a todos os homens, por infindos caminhos, a cada qual naquele caminho que é o seu – o próprio, o irrepetível, o singular caminho. Assim, a inacessibilidade de Deus a partir de nós diz, ao mesmo tempo, a universal acessibilidade de Deus a partir dele mesmo. Deus se faz acessível a todos os homens. Para cada homem, tomado na sua singularidade, na história de sua alma, há um caminho para Deus. A fé primordial é, assim, católica, isto é, universal: ela abraça todos os homens, em todos os lugares, em todos os tempos. É a partir desta fé primordial que toda a religiosidade humana irrompe e se ergue. De novo, citamos São Francisco: Deus é o Bem inteiro! (LHr).


Deus, o inacessível, vem ao nosso encontro, se nos autocomunica, se nos doa. É a fé de Deus! É ao apriori desta fé que a Escritura alude, quando diz que Deus é fiel. Deus bota fé no homem! Ele se dispõe a se dar a nós, livremente. E se dispõe a ser recebido por nós, também livremente. Por e para recebe-lo, nós precisamos nos doar. Até nisso somos agraciados: Deus nos doa a possibilidade de nos doar a Ele; em recebendo-o, livremente. Deus se dispõe, assim, a receber esta nossa autodoação! Deus nos vem ao encontro na absoluta positividade da sua liberdade. E deixa que nós também, livremente, nos doemos na recepção d’Ele, em absoluta positividade (fé) e liberdade.


Esta fé (fidelidade) de Deus nós chamamos também de Revelação. É sobre a fé de Deus, isto é, sobre a verdade de sua autorrevelação, que se funda a fé do homem. Dizendo isto, porém, nós dizemos pouco. É que, no núcleo deste relacionamento entre a fé de Deus e a fé do homem, está o fenômeno do amor-gratuidade, ou, se quisermos, o fenômeno do Encontro. Frei Hermógenes Harada, ao interpretar a expressão da primeira Admoestação de São Francisco, “Deus habita numa luz inacessível”, dizia: “o pivô da questão é entender que os textos espirituais, todos eles só falam do Encontro. E não de fatos-coisas! Mas sim da História do Encontro![3].


O cerne da revelação do Evangelho é isto: que, pela encarnação do Filho, o Pai disse seu definitivo sim e deu-nos tudo o que tinha para nos dar, em definitivo: seu Filho muito amado. Assim, a inacessibilidade de Deus, a impossibilidade, se vista desde nós mesmos, diz não uma privação ou uma ausência nula, diz, antes, assim, sua absoluta positividade em nos amar. Frei Hermógenes Harada, a propósito, escrevia:


Essa impossibilidade absoluta de nós, a partir de nós mesmos nos chegarmos a Ele diz uma realidade absolutamente positiva: que nos amou antes de toda e qualquer possibilidade nossa; que ele veio a nós a partir Dele mesmo; que Ele nos tocou; que Ele nos veio livremente ao e de Encontro. Isto é: Que se Ele se nos tornou acessível, tão acessível a ponto de nós o podermos chamar de Abbá, o podermos pegar na mão e comer, fazer Dele o que bem quisermos, é porque Ele, gratuitamente, livremente se nos deu[4].


Mais adiante, o mesmo Frade escrevia:


Essa gratuidade não é nossa conquista, não é nosso domínio, não o é porque ainda de fato não encontramos um meio de dominá-lo, mas porque pertence íntima da gratuidade da liberdade do Encontro. Nesse sentido: a resposta que nós vamos dar a Deus, o nosso sim do Encontro é também inacessível ao próprio Deus, pois, o Amor do Encontro, jamais pode ser possuído, conquistado como uma coisa sobre a qual tenho a partir de mim um poder e domínio! É inacessível, pois trata-se de Doação livre de Benevolência[5].


O amor é, assim, encontro de liberdades. E, enquanto liberdades em exercício, o dar e receber de cada um é sempre espontâneo, isto é, ele surge da fonte da gratuidade, e, enquanto tal, cada um é acolhido como inacessível. No poema de amor, que na Bíblia se encontra com o título de Cântico dos cânticos, vemos a amada dizer algo que celebra esta gratuidade: “Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor... seria tratado com desprezo” (Ct 8, 7).


Assim, a Admoestação de São Francisco é um convite a viver a gratuidade do Encontro com gratidão profunda pelo Deus inacessível, que se nos amou por primeiro, livremente, e que pede, sim, pede humildemente, como quem mendiga, que nós também, livremente, sem nenhuma coação ou constrangimento, o recebamos e nos doemos a Ele nesta recepção. Nas palavras do frei Hermógenes Harada: “a Inacessibilidade, num sentido rigoroso e absoluto, só pode se referir ao fenômeno de Encontro entre Pessoas: na doação da liberdade (...). O encontro só é acessível na recepção grata e humilde de amor[6].


[1] Harada, frei Hermógenes. Acerca do inacessível. Texto manuscrito, sem data. [2] Heidegger, Martin. O caminho do campo. Revista Vozes, n. 4, 1977, p. 47. [3] Harada, frei Hermógenes. Acerca do inacessível. Texto manuscrito, sem data. [4] Harada, frei Hermógenes. Acerca do inacessível. Texto manuscrito, sem data. [5] Idem. [6] Idem.



Para pensar, conversar e comentar:


1. Por que Francisco, ao iniciar suas Admoestações o faz com o tema “Do Corpo do Senhor” e da “inacessibilidade de Deus?”

2. Qual a importância desses dois temas para o seguidor de Cristo?


Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes



Continue bebendo do espírito deste tema:


- indo ao texto-fonte: 34º Encontro - Do inacessível e da fé


- postando seus comentários;


- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 34º Encontro - Do inacessível e da fé

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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