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32º Encontro (11/09/21) - A admoestação da Vida no mistério da Cruz

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 13 de set. de 2021
  • 9 min de leitura


A admoestação da Vida no mistério da Cruz



Como já anunciamos, a partir do último Encontro e deste, vamos nos dedicar ao estudo das Admoestações de São Francisco. Como no último Encontro, também no de hoje, vamos tratar de algumas questões introdutórias, a nosso ver importantes e necessárias para uma leitura mais frutuosa desses textos. Para tanto, vamos nos inspirar na Admoestação V.


Ninguém se ensoberbeça, mas glorie-se na Cruz do Senhor


Atende, ó homem, a que excelência te pôs o Senhor Deus, porque Ele te criou e te formou “à imagem” do seu dileto Filho, segundo o corpo, “e à sua semelhança”, segundo o espírito. E todas as criaturas que existem debaixo do céu, a seu modo, servem, conhecem e obedecem ao seu Criador melhor que tu. E também não foram os demônios que O crucificaram, mas tu com eles O crucificaste e ainda O crucificas, deleitando-te em vícios e pecados. De que, então, podes gloriar-te? Mesmo se fosses tão sutil e sábio que tivesses “toda a ciência” e soubesses interpretar “todas as espécies de línguas” e perscrutar sutilmente as coisas celestiais, de tudo isso não podes gloriar-te. Porquanto, um demônio conhecia as coisas celestiais e sabe com precisão das terrenas mais que todos os homens, ainda que houvesse alguém que recebesse do Senhor um especial conhecimento de suma sabedoria. Igualmente, se fosses o mais belo e o mais rico de todos e mesmo se fizesses maravilhas, a ponto de afugentares os demônios, tudo isso te é contrário. Pois, nada disso te pertence e de nada podes gloriar-te. Mas, “nisto podemos nos gloriar: em nossas fraquezas” e em “carregar todos os dias” a santa cruz e de Nosso Senhor Jesus Cristo.


********


Como em qualquer trabalho, ler as Admoestações significa, ou exige, antes de mais nada, dispor-se ao mistério do encontro; em nosso caso, dispor-se a ir ao encontro da experiência espiritual de São Francisco; e, consequentemente, ir ao encontro da ciência e da sapiência que, a partir desta experiência nasce, cresce e floresce desde a dinâmica e na dinâmica do discipulado evangélico. Discipulado que tem como coração o seguimento de Jesus Cristo e este, especialmente, como o Crucificado. Todas as Admoestações são como sinais para os quais um guia experiente, um mestre - São Francisco - nos chama a atenção, a fim de que aprendamos o caminho, a via, por onde precisamos seguir.


Por nascerem do encontro com o Evangelho, esses textos, antes de reprimendas, repreensões, advertências, devem ser vistos como conselhos, exortações de um pai preocupado com o acerto da caminhada de seus filhos. Todavia, essa compreensão nos parece ainda insuficiente. Pois, uma leitura mais próxima, mais reflexiva e mais unida ao texto, exige que consideremos, de novo, melhor e mais de perto, o significado de “admoestação”.


Do ponto de vista etimológico, a palavra admoestação começa com o prefixo ad. Em latim, a preposição ad indica movimento de abertura, de aproximação, bem como do começo de uma ação. Em nosso caso, trata-se da ação de monere. Esse verbo latino, que compõe nosso verbo admoestar, em seu sentido próprio, quer dizer fazer pensar, lembrar. Só a partir daí é que significa, também, chamar a atenção, advertir; e, depois disso, em sentido figurado, significa aconselhar, inspirar, esclarecer, instruir, ensinar; e, por fim, predizer, anunciar, profetizar. Da riqueza de significados desse verbo vem o nome monitor que evoca aquele que faz pensar, que relembra, aconselha, recomenda, adverte. Enfim, seria o guia, o conselheiro, o mestre.


Partindo disso, poderíamos dizer que, nas “Admoestações”, o Espírito do Evangelho, do Cristo Crucificado faz de São Francisco o “monitor”, o guia, o mestre na aprendizagem do Seguimento de Cristo. Assim, sempre que, através da leitura as Admoestações, nos dispomos para o exercício desse encontro estamos fazendo a memória de nossa raiz, do nosso passado. Memória, passado, não como museu, mas como tesouro ou arca da qual se pode tirar coisas novas e velhas (Mt 13,52). Isso porque ela, a memória é um memorial do espírito que guarda as sementes que fizeram nascer e florescer a Vida evangélica em São Francisco e na primeira geração de frades; sementes que, cada seguidor de Francisco, pela leitura e meditação, deve colher, semear em seu coração e cultivar em sua conduta diária a fim de que continuem dando frutos, também no dia de hoje. Nesse sentido pode-se dizer que ler as Admoestações é cultivar a “memória evangélico-franciscana”.


Hoje, parece-nos um tanto esquecida essa compreensão de passado e de memória essencial, de memória criativa: a memória como raiz do futuro. Sabemos apenas (ou quase apenas) a memória passiva. É essa memória essencial, criativa que nos permite conquistar novas possibilidades de ser, tanto individual como social ou comunitário. É ela que nos faz esquecer o já dado e produzido ou conquistado e nos abre para o novo, para o abismo das possibilidades vindouras; é ela a fonte de criação, o fundamento do futuro que possibilita o surgimento de novos modos de agir e de operar de acordo com as transformações e necessidades de tempo e lugar (Cfr. RB 4).


Segundo os entendidos, na palavra memória está embutida a palavra mente. Todavia, “mente”, aqui, mais que a simples faculdade ou aptidão de pensar, significa a força do ânimo do próprio viver do homem, ou simplesmente, a vida do homem; diz a força vital em seu provir e advir, em seu irromper, brotar e aparecer. A memória é, assim, a força da mente enquanto irrupção de sua capacidade criativa. É dessa força, a mente, que nos vem a capacidade de pensar, de refletir, de meditar, no nosso caso, cristãmente e franciscanamente. Por isso, pode-se falar em “Pensamento franciscano” ou “Pensamento cristão”.


Assim, podemos dizer que, lendo, refletindo, meditando as Admoestações de São Francisco entramos em comunhão com a memória, a mente de uma das mais expressivas experiências do seguimento de Cristo Crucificado.


Nesse sentido, podemos dizer que seremos admoestados por São Francisco não apenas quando estivermos lendo ou meditando suas Admoestações, mas também, quando estivermos na vida, atentos aos seus apelos e desafios. Na verdade, em toda a parte e a todo o momento, nós estamos sendo admoestados pela vida. A vida, em seu irromper, provir, advir, sobrevir, está sempre nos chamando em causa, nos interpelando, nos convidando, nos conclamando, nos convocando, e, ao mesmo tempo, nos aconselhando, nos recomendando, nos advertindo, e, até mesmo, quando nós nos endurecemos em nossos corações, quando nós nos tornamos tapados, opacos, surdos, cegos, para as possibilidades de ser, nos repreendendo, nos censurando, nos apostrofando. Como custamos, por exemplo, entender e acolher as admoestações de uma doença, de uma graça ou pecado! Esquecemos que em cada criatura ou acontecimento há uma “Boa Nova” a ser olhada, vista, contemplada, amada e acolhida!

Por isso a vida é nossa primeira, grande e maior admoestadora, monitora e mestra. Só que, quando em seus Escritos, em suas Admoestações Francisco fala em vida, vê e pensa na Vida de nosso Senhor Jesus Cristo crucificado. Por isso diz que, para ele e seus companheiros, a Vida do Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo é a sua Regra (Cfr. RNB e RB).


O mistério da Cruz de Jesus Cristo é, assim, para o homem, a maior admoestação da Vida. Essa foi a grande descoberta de Francisco e que se tornou sua Paixão! Por isso, é preciso, sempre de novo, ter junto a si, bem próximo e no coração, o evento da Cruz. Pois é nesse ou desse evento que o “extra-ordinário” da Vida se nos doa de modo o mais excelente, sublime e eficaz. Não seria esse o significado do costume cristão de afixar a cruz nos lugares mais importantes, e de carregá-la sobre o peito, sobre nosso coração?!


Por isso, como diz Francisco, na última frase da Admoestação, postada na abertura dessa reflexão, crescer e aparecer no brilho, isto é, na glória do mistério da cruz é, para o discípulo do Evangelho do Reino, seu maior apanágio; nenhuma ciência e sapiência têm valor perto daquela que se oculta no mistério da Cruz; nenhuma beleza se iguala à beleza do Crucificado, o homem das dores, do qual os rostos se desviavam; nenhuma riqueza merece este nome, a não ser aquela riqueza essencial, que ele mostra e comunica em sua pobreza. Trata-se, pois, de uma ciência e sapiência, de uma beleza e de uma riqueza escondidas, veladas, inacessíveis aos homens que só têm olhos para o visível e que são cegos para o invisível. Vale aqui a pregação de Paulo aos Coríntios:


Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos procuram sabedoria; nós, entretanto, proclamamos a Cristo crucificado, que é motivo de escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Todavia, para os que foram convocados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e sabedoria de Deus. O chamado e vocação dos santos (1Cor 1,22-24).


Em todas as Admoestações, como, em geral, em todos os seus escritos, São Francisco está sempre chamando a atenção, chamando à nossa mente, o Cristo Crucificado; que, como Ele, tomemos sobre nós as tribulações, perseguições, sofrimentos, contrariedades, dores etc., que a vida nos oferece, como elementos preciosos. Nossa compreensão de Cruz, porém, é de início vaga, opaca, fixa, bitolada. No máximo nós concedemos que tudo isso é meritório, que pode ser útil para perfazer a nossa têmpera de cristãos, que pode ser uma prova, um teste, para nos educar; que é preciso para que o cristão esteja disposto à sacrificação de si por amor de Deus, etc. Nossa mente, porém, nisso tudo, não desperta para a cordialidade da Vida. Acabamos, no máximo, como cristãos resignados e, não raro, ressentidos, distantes da jovialidade, da perfeita alegria, de que nos fala São Francisco.


Frei Hermógenes Harada, ao falar de nossa compreensão, melhor, de nossa incompreensão desta medula do ser cristão, dizia:


Há em todas essas pressuposições um ponto, onde marcamos passo, a saber: não temos vontade de saber melhor o porquê de tudo isso, e ver o processo interno e a estruturação desse processo, para podermos perfazer esse processo com inteligência e ali realmente crescer. É que pensamos que já sabemos o que é a cruz, ao passo que em vez de realmente saber, temos de fato representações e imagens vagas, muitas vezes palavras, ou forte sentimento de rejeição, medo, ou se “assumido” algo como sacrifício de resignação etc... Essa atitude de pouco interesse em pesquisar a essência da cruz, nos impossibilita de entender São Francisco naquilo que ele tem de mais idêntico e diferente. Pois São Francisco busca a cruz e o seguimento de Jesus Cristo Crucificado como se ali estivesse o seu maior tesouro, anela ser um profissional especialista nesse processo da cruz, como p. ex. os guerrilheiros especializados em tornar-se cabeça de ponte de uma invasão buscam positivamente como seu valor supremo estar em lugares mais impossíveis e difíceis. O que São Francisco vê de grande e positivo, digamos, de absoluto na cruz?[1]


A cruz, na dinâmica do seguimento de Jesus Cristo, não é uma escolha do cristão, mas a graça que lhe oferece a possibilidade da experiência de que, paradoxalmente, não são nossas possibilidades, mas a nossa impossibilidade que nos abre a porta para a liberdade, para a salvação. Sim, essa impossibilidade é que nos liberta, nos desprende de nós mesmos e nos introduz no reino dos filhos de Deus. Se essa oferta não fosse graça, mas merecimento não seríamos filhos, mas mercenários, servos, escravos, funcionários, como o filho mais velho da parábola evangélica.


A experiência espiritual da cruz consiste, pois, ao que parece, em, na impossibilidade de todas as nossas possibilidades, na finitude agraciada, nos expormos a este anúncio: “Deus caritas est” (Deus é puro, só amor-gratuidade-doação-“loucura”-Cruz!). É o que fez Cristo em toda a sua vida, principalmente no auge da Cruz: Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres (Mt 26,39). E, clamando Jesus com grande voz, disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).


Jesus Cristo Crucificado foi aquele que se expôs assim, em absoluto amor-doação-entrega, ao absoluto amor que é o Pai! Todas as Admoestações de São Francisco, como todo o Novo Testamento, como todos os Evangelhos, estão nos convidando à aventura de, assim como Ele, expor-nos à Vida, ao Pai. Por isso, não só na Admoestação V, mas em todas, ressoa, sempre de novo, o mesmo apelo de nos gloriarmos de nossas fraquezas, isto é, de nossa vulnerabilidade para este mistério, e de nos gloriarmos da graça de nos ter sido dada a finitude agraciada, o apanágio de carregarmos todos os dias a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Diante da leveza e da jovialidade que esta liberdade nos concede, lembremos, então, mais uma vez, a fala do homem louco a Confúcio em “A via de Chuang Tzu”: a alegria é leve como pena, mas quem pode carregá-la? (p. 94).


São Francisco é um desses homens que, desde sua conversão, se sentiu tocado por essa Paixão de Cristo e fez dela a sua paixão. Poderemos nós fazer o mesmo? Só a experiência poderá nos dizê-lo, isto é, se tomarmos as interpelações da Vida, especialmente aquelas em que nós experimentamos nossa impossibilidade, como uma chance de nos tornarmos mais capazes de carregá-la. A boa vontade para isso já nos foi dada da parte de Deus, de Jesus Cristo, juntamente com a graça do chamado. Basta que nós a sigamos, sempre de novo e de modo novo, a cada dia, como nos admoesta São Francisco, na abertura da Admoestação V: Atende, ó homem, a que excelência te pôs o Senhor Deus, porque Ele te criou e te formou “à imagem” do seu dileto Filho, segundo o corpo, “e à sua semelhança”, segundo o espírito.


[1] De um texto manuscrito.



Para pensar, conversar e comentar:

1. Qual o sentido e a importância das Admoestações de São Francisco para o seguidor de Jesus Cristo?

2. Qual a principal dificuldade na leitura desses textos? Por quê?


Paz e Bem!

Fraternalmente,


Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes




Continue bebendo do espírito deste tema: - indo ao texto-fonte: 32º Encontro - A admoestação da Vida no mistério da Cruz - postando seus comentários; - ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 32º Encontro - A admoestação da Vida

no mistério da Cruz

Professor Marcos Aurélio Fernandes

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