30º Encontro (28/08/21) - Penitência Evangélica como transformação da mente para o novo mandamento..
- Frei
- 29 de ago. de 2021
- 11 min de leitura
Atualizado: 13 de set. de 2021
Penitência Evangélica como transformação da mente
para o novo mandamento de Cristo
Entre os admiráveis e diversos feitos de São Francisco, está o de ter deixado uma Regra, ou Forma de Vida, não apenas para seus seguidores religiosos ou consagrados (Frades e Irmãs Clarissas), mas, também, para os seculares. Para esses, como já vimos no último Encontro, o fez através de uma Carta denominada Exortação aos Irmãos e Irmãs da Penitência ou, simplesmente, Carta aos Fiéis.
Nas duas versões, que nos chegaram dessa Carta, nos deparamos com os dois caminhos em que o homem pode se deixar encaminhar: “Dos que fazem penitência” e “Dos que não fazem penitência”, títulos da primeira e segunda parte, respectivamente, da mencionada Carta. O primeiro é o caminho do bem viver e, consequentemente, da bem-aventurança, e o segundo, o caminho do mal viver e, consequentemente, da ruína. No fundo, o segundo é o caminho da impenitência, o caminho do ódio; já o primeiro é o caminho da penitência, o caminho do amor; um caminho em que a existência humana se erige e se dirige de modo feliz à plenitude de sentido do ser. O outro é o caminho em que a existência humana se desmorona e se desvia para o nada destrutivo e aniquilador; um é o caminho da liberação para a liberdade da verdade, outro é o caminho da escravidão da não-verdade enquanto aparência, no sentido de engano e dissimulação, distorção e obstrução das possibilidades de ser.
Do primeiro caminho, assim se expressa São Francisco:
Oh! como são felizes e benditos aqueles e aquelas enquanto praticam tais coisas e nelas perseveram, porque repousa sobre eles o espírito do Senhor e neles fará habitáculo e morada. Assim, são filhos do Pai celeste, cujas obras praticam e são esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo (1CFi 5).
Do segundo caminho, no entanto, diz:
Todos aqueles e aquelas, porém, que não estão na penitência, que não recebem o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e operam vícios e pecados; todos aqueles que andam atrás da má concupiscência e dos maus desejos de sua carne, não observam aquelas coisas que prometeram ao Senhor, e servem carnalmente ao mundo pelos desejos carnais e pelas solicitudes do século e pelos cuidados desta vida, são dominados pelo diabo, de quem são filhos, e cujas obras fazem; são cegos porque não veem a verdadeira luz, Nosso Senhor Jesus Cristo. Não possuem a sabedoria espiritual, porque não têm o Filho de Deus, que é a verdadeira sabedoria do Pai (idem, 63-67).
Pelas duas citações percebe-se que para o homem, viver é estar continuamente envolvido num combate, em que se decide seu destino. Sabia-o muito bem São Francisco de Assis, cavaleiro do Crucificado! Neste combate ou o homem é elevado ou é abatido. Como canta o poeta Gonçalves Dias, no poema “Canção do Tamoio”, ao dizer “que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos / Só pode exaltar”. Por isso, o viver humano está sempre num cômpito, isto é, numa encruzilhada, entre os envios da graça e da virtude, isto é, do vigor de ser e da gratuidade do mistério, e os desvios dos vícios e pecados.
Nas Fontes Franciscanas, estamos sempre de novo nos deparando com um insistente discurso a respeito de virtudes e vícios. O caminho do fiel é o caminho da graça e das virtudes. O do infiel é o do pecado e dos vícios. Frei Egídio de Assis, companheiro de São Francisco, num de seus ditos diz: Graças de Deus e virtudes são escada e via para ascender ao Céu. Vícios e pecados, porém, são via e escada para descer ao inferno (DE 1,1, p. 1112). Ele lembra também que o caminho da graça e das virtudes é o caminho da salvação. No latim, salvação é “salus”, saúde, isto é, a plenitude de vigor da vida. É que o caminho dos vícios e pecados são o caminho de intoxicação, do envenenamento da vida. Ele diz: vícios e pecados são tóxicos, virtude e boas obras antídotos (DE 1,2, p. 1112).
Para São Francisco e seus companheiros, o homem está sempre numa encruzilhada entre o celeste e o infernal, entre o divino e o demoníaco. Em cada novo passo o homem é posto à prova. Ou ele se torna decidido para o caminho da vida, que é o caminho da penitência e do amor, ou ele se deixa arrastar pelos descaminhos da ruína, que é o caminho da impenitência e do ódio. Fiel é aquele que se torna, sempre de novo e de modo novo, decidido para o caminho da penitência, dando, em sua existência, provas de consistência e solidez. Infiel, ao contrário, é aquele que se move na indecisão e na indiferença, sem consistência, sem firmeza e estabilidade nos propósitos do bem viver e, de vício em vício, vai cavando sua ruina para, enfim, morrer de uma morte amarga (1CFi 14).
Entretanto, o que significa, propriamente, penitência? Para meditar melhor esta pergunta, escutemos primeiro a linguagem. Na língua latina, a palavra “paenitentia” quer dizer arrependimento, pesar, contrição. O arrependimento, neste caso, não se confunde com o remorso. Alguém pode ter remorso e não se arrepender. Remorso, como a palavra diz, é o remorder da consciência, é o ficar atordoado com o testemunho da voz interior que pune e vinga o mal-feito. Um homem de coração endurecido pode sofrer remorso, mas não se arrepender. O arrependimento diz um coração vulnerável, sensível, de carne, humilde, e, por isso, nobre. Arrependimento diz, com efeito, um pesar, uma contrição, uma compunção do coração: uma dor de não ser o que se pode e se deve ser. O verbo latino “paenitere”, em sentido próprio, significava não ter o bastante, não estar satisfeito com e, daí, passou a significar um ter pesar de, um arrepender-se.
Penitência é saber, sentir a vida humana como a dinâmica de culpa e expiação. Vida humana é, fundamental e constitutivamente, culpa. Culpa, é tomada, aqui, em sentido ontológico e não moral, é a própria situação humana como um todo e como tal. A condição humana é culpada, no sentido de sempre, de algum modo, estar em dívida com a gratuidade da vida. Ao começarmos a viver, já nos encontramos jogados na gratuidade da vida. E, ao terminarmos de viver, estamos, sempre e ainda, im-perfeitos, in-completos, in-conclusos, em aberto, em dívida com a vida. Por isso, o homem, por essência, é e deverá ser, sempre, um penitente.
Pecado é o homem se rebelar contra esta culpa fundamental. É o homem revoltar-se contra esta condição humana de finitude e de liberdade. O pecado é usar de nosso arbítrio contra a necessidade da liberdade. É insurgir contra a finitude agraciada da vida e tomá-la como finitude desgraçada. O pecado é, fundamentalmente, arrogância, presunção, soberba, isto é, é o homem se revoltar contra a dinâmica da terra, contra a pobreza da vida. É ser na culpa como má consciência, isto é, como rebeldia e ressentimento. Movido por este ódio, que se volta contra ele mesmo e contra os outros, o homem se entrega ao querer do nada privativo e negativo, do mal, isto é, da anulação, destruição e “nadificação” da vida. Nesse caso, os vícios são virtudes enlouquecidas. O ódio é o amor desvairado, desatinado. Isso faz aparecer no homem o mais que humano como demoníaco, diabólico. Já, pelo contrário, as virtudes, são o amor à vida. Em seu vigor, fazem aparecer no homem o mais que humano como o divino. Por isso, Jesus nos ensinou a rezar, no Pai Nosso: perdoai-nos as nossas dívidas (culpas, ofensas, pecados).
Penitência é confessar-se, ou seja, é libertar a verdade desta finitude como finitude agraciada. É experimentar a culpa como “felix culpa” (culpa feliz), pois ela nos abre o caminho da libertação que nos reintroduz no paraíso da liberdade da gratuidade (graça) dos filhos de Deus que Adão havia perdido; é o alegrar-se com o medir-se com esta transcendência; é alegrar-se mesmo com o pouco de nossa correspondência; é alegrar-se com nosso lugar no mundo e com nossa destinação finita como nossa “porciúncula”; é o gloriar-se da e na cruz, com a dádiva da vida no limite de nossa situação, inclusive com nosso pecado.
Jesus Cristo assumiu a culpa da condição humana como ninguém! Nele o pecado, isto é, a rebelião adâmica contra a finitude agraciada dos filhos de Deus não teve lugar. Nele, a culpa encontrou a mais plena e própria expiação. Ele restituiu ao humano, de modo novo e inaudito, toda a inocência da vida.
A terra, que havia sido maculada pelo pecado da ingratidão de Adão, por Cristo readquiriu sua inocência originária e entrou, de novo e de modo muito mais admirável, para o reino da liberdade e da gratuidade, para o reino da finitude agraciada. Ele venceu as tentações, isto é, os apelos de não-acolhida da vida nos limites da gratuidade do Pai. Ele se esvaziou de toda a pretensão de possuir a gratuidade da vida. Deixou a gratuidade ser gratuidade. Por isso, Ele é o primeiro e verdadeiro penitente. Desse modo, seguir a Cristo, imitar seu exemplo, conformar-se ao seu modo de ser, é a penitência por excelência.
No evangelho segundo Lucas, lemos a famosa parábola do “filho pródigo”, que é, muito mais, a parábola do Pai misericordioso e de seus dois filhos. O filho mais novo é o penitente: aquele que se distanciou do Pai, dissipou toda a sua substância (os seus bens), e, por fim, caiu em si, sentiu a dor de estar perdido, arruinado, distante do Pai. Mas, ao recordar o Pai e sua Casa, decidiu fazer o caminho de retorno para sua origem. O filho mais velho é o impenitente. Ele estava satisfeito com sua pretensa justiça própria e com sua aparente fidelidade ao Pai. Embora fosse filho, sua consciência era a de funcionário do Pai. Morava com o Pai, mas não estava com ele. Por isso, não podia suportar a liberdade gratuita do Pai. Ele se julgava justo e são, mas, enganava-se a si mesmo com sua autossatisfação. Na verdade, ele vivia fora da justiça e da justeza da vida, embora se encaixasse aparentemente numa ordem de deveres e de obrigações e aí funcionasse bem. Neste sentido, a penitência e a impenitência evangélica são diversas da penitência e impenitência meramente legal, moral, ascética ou “religiosa”.
A penitência evangélica tem sua origem e percurso no vigor da graça do encontro ou reencontro com Jesus Cristo e, através Dele, nosso irmão, no sopro sagrado da vida divina, que é o Espírito Santo; é abrir-se ao mistério fontal da gratuidade e da liberdade. Fazer penitência é, neste sentido, dispor-se a continuamente libertar-se para a liberdade dos filhos de Deus, para a liberdade da gratuidade e para a gratuidade da liberdade.
O que chamamos de “penitência”, o Novo Testamento chama de “Metanoia”. Literalmente, metanoia indica movimento de ir para além da mente; movimento de transformação da mente em caminho e a caminho. Transformação que visa nos abrir para a alegre mensagem do Evangelho do reino da liberdade dos filhos de Deus, que Cristo não só anunciou como inaugurou com sua vida e, sobretudo, com sua morte e morte de Cruz; movimento para abrir-nos ao impossível do humano que é o mandamento do amor de Deus; de amar como Ele ama, principalmente o inimigo porque é nosso maior amigo!
Nesse sentido, a penitência evangélica sempre é graça. Jamais merecimento. É o que nos testemunha com toda clareza São Francisco em seu Testamento: O Senhor deu a mim, frei Francisco, começar a fazer penitência assim: como estivesse em pecado, parecia-me demasiadamente amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo, converteu-se em doçura da alma e do corpo; e, em seguida, detive-me por um pouco e saí do mundo (T 1-3). Estar em pecado e ser detido pelo mundo, aqui, não diz uma condição ou transgressão moral, mas, esquecimento do mistério fontal da gratuidade e da liberdade, que Jesus chamava de “Abbá”, Pai.
“Mundo”, por outro lado, não é, aqui, o universo criado, o céu e a terra e tudo quanto estes contêm. É, antes, um modo de viver a partir de aberturas e horizontes de sentido, em que não há lugar para abrir-se ao mistério fontal da gratuidade e da liberdade, ao Pai das misericórdias. Mas, quando a experiência, terra a terra, da misericórdia se fez no ser-com, isto é, na convivência mútua entre Francisco e os leprosos, então everteu-se a ordem em que Francisco estava instalado até então, e inverteu-se os seus gostos: o amargo se converteu em doçura e o doce se converteu em amargura “da alma e do corpo”. Penitência evangélica é o acontecer de tal experiência de eversão, inversão e conversão.
Na dimensão propriamente evangélica, a penitência é uma alegria e uma festa! O sábio Chuang Tzu põe na boca de um homem louco, uma interpelação que desafiava a sabedoria de Confúcio, que ensinava a virtude, e que dizia: “A alegria é leve como pena, / Mas quem pode carregá-la?”[1]. Isso certamente vale também para os cristãos: a alegria do Evangelho é leve como uma pluma, mas quem é capaz de suportá-la? Só os pobres de espírito, os crucificados para o mundo como o Senhor, os Apóstolos, São Francisco e alguns poucos. Mas, se não conseguimos seguir este caminho como eles, podemos segui-lo e buscá-lo com fervor, mantendo sempre aceso no coração o desejo de viver a plenitude do mandamento novo de Jesus Cristo: “Um novo preceito eu vos dou: que vos ameis uns aos outros. Assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Todos hão de conhecer que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 34-35). Eis o sumo, a consumação da via alegre da penitência evangélica. Eis porque esse mandamento só é possível ser procurado e vivido com a graça da penitência evangélica!
Por isso, exorta-nos São João:
Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade procede de Deus e quem ama nasce de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. O amor de Deus para conosco se manifestou por ter enviado ao mundo seu Filho unigênito, a fim de vivermos por ele. Nisto consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ele nos ter amado e enviado seu Filho para expiar nossos pecados.
Caríssimos, se Deus assim nos amou, também nós nos devemos amar uns aos outros. Ninguém jamais viu Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece conosco e seu amor em nós é perfeito. Sabemos que estamos nele e ele em nós por nos haver dado seu espírito. Nós vimos e testemunhamos que o Pai enviou seu Filho como Salvador do mundo. Todo aquele que proclama que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus. Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele (1 Jo 4, 7-16).
Concluímos com esta bela exortação do Papa Francisco:
Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que «da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído». Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores». Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia (EG 3).
[1] Confúcio e o louco. In: Merton, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 94.
Para pensar, conversar e comentar:
1. A diferença entre a penitência evangélica e a penitência ética? Qual sua importância para o seguimento de Cristo?
2. Qual a importância da exortação do Papa Francisco acerca da penitência evangélica, para nós cristãos, hoje?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
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