28º Encontro (14/08/21) - O "e" de Regra e Vida de São Francisco de Assis
- Frei
- 15 de ago. de 2021
- 10 min de leitura
O "e" de Regra e Vida de São Francisco de Assis
Como dissemos no último Encontro, neste ano de 2021, celebramos o jubileu dos 800 anos da Regra Não Bulada (RNB). Foi no Capítulo Geral de 1221, na Porciúncula, que, depois de 12 anos de estudos e reformulações, ela recebeu a redação definitiva, assim como a conhecemos hoje. Na reflexão de hoje queremos abordar uma expressão muito importante para uma boa compreensão e frutuosa leitura, tanto da Regra como dos demais Escritos de São Francisco, e que aparece já na primeira frase: Regra e Vida:
A Regra e a Vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem nada de próprio e seguir a doutrina e os vestígios de Nosso Senhor Jesus Cristo...
A mesma expressão vem repetida, também, na Regra dita Bulada:
A Regra e a Vida é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de próprio e em castidade.
Da grandeza e importância do princípio do carisma franciscano
Com estas sentenças, colocadas no início das duas redações, que nasceram da “Proto-Regra” (1209), anuncia-se o princípio da Forma de Vida dos Irmãos Menores, isto é, o princípio do carisma fundacional franciscano. Aqui convém lembrar o que disse Platão, no sexto livro do seu Diálogo das Leis, acerca do princípio de uma obra ou vida: Um princípio, pois, é também um deus que, instalado entre os homens, salva tudo, caso receba, de cada um dos que o tem em mãos, o empenho adequado. Isto quer dizer que o princípio é um mistério, algo inesperado que, de chofre, sobrevém e advém aos homens, como uma dádiva divina, e, ao mesmo tempo, como uma tarefa humana; algo de extraordinário, grande! Caso ele receba dos agraciados, como já foi dito, a devida atenção e o empenho adequado, ele introduz no mundo humano uma grandeza extraordinária, inteiramente nova. Como princípio não irrompe pequeno para depois crescer e, finalmente, defasar e morrer. Já nasce grande, permanece grande e... se morre... morre também como grande.
Face ao princípio e sua grandeza, toda nossa tentativa de oferecer o empenho adequado sempre aparece pequena. Mas, isso não importa! Quando o empenho de corresponder ao princípio está presente, de boa vontade e como boa vontade, a realização pequena não nega, não obscurece a grandeza do princípio. Pelo contrário: ela pertence, mesmo na sua pequenez, à grandeza do princípio. O único risco nosso é de esquecer de agradecer dádiva tão preciosa e benfazeja e de apequenar nossa tentativa de dar-lhe uma resposta digna e adequada, sempre nova e de novo, nas várias vicissitudes e percalços da vida.
Nossa reflexão vai se concentrar na expressão “regula et vita” (Regra e Vida) que aparece logo no início. Mais precisamente, ela se concentra na palavrinha “e”, presente entre “Regra” de um lado e “Vida” de outro lado. O que significa este “e”? Ao colocarmos esta pergunta, porém, talvez nós tenhamos de estranhar os dois termos desta expressão: “regra” de um lado, e “vida” de outro.
O que quer dizer “regra”? O que quer dizer “vida”? O que há com o “e” entre ambas: regra e vida? Este problema foi recolocado, recentemente, pelo filósofo Giorgio Agamben, em seu livro “Altíssima Pobreza”. Ele, porém, põe o problema na perspectiva da filosofia política. Nós tentaremos repropor também o problema, mas na perspectiva evangélica, cristã.
1. Regra, o que é?
Regra significa, como dizem os antigos, “quod recte ducit”, “aquilo que conduz retamente". Conduzir retamente significa levar alguma coisa a alcançar a plena realização de sua possibilidade: nascer bem, crescer bem e amadurecer bem e, assim, ser bem sucedida, feliz, realizada. Regra é, pois, a regência da vida, é a Vida se regendo, se doando a cada criatura, dando-lhe, assim, a possibilidade de ficar de pé e de alcançar sua autonomia e consistência[D1] ; é o que faz acontecer a convivência humana, o que dirige e erige a “conversatio”, isto é, a conversação, a circulação, a condução dos homens em seus mútuos relacionamentos, na formação da comunidade.
Assim, a Regra não é uma norma que se aplica à vida. É, antes, a Vida que se aplica à norma. A Regra é Regra de vida. A expressão “regra de vida” é um genitivo subjetivo. Isto quer dizer: a Regra tem sua origem, seu fundamento, sua força de sustentação a partir da Vida. Por isso, o “e”, da expressão “Regra e Vida”, marca uma identidade. A Regra é Vida se dirigindo e se erigindo. A expressão “regra de vida”, assim, não diz que a vida vem da regra, mas sim que a regra vem da vida. É como na expressão “regra da fé” (regula fidei). A formulação não quer dizer que a fé é tomada a partir da regra, mas sim que a regra é assumida a partir da fé.
Assim, somente à medida que a vida se faz regra é que a regra pode se fazer vida. A regra vivifica a vida somente à medida que a vida institui, constitui, perfaz a regra. É a partir desta identidade de vida e regra que os franciscanos do primeiro século podiam dizer “vita vel regula” (vida ou regra) não como se fosse um binômio, mas uma unidade só. Por isso, também, ela se concretiza numa forma de vida. E, para Francisco e para aquela primeira geração de Frades, a Forma de vida que toma conta deles, em todos os seus afazeres, no vigor de uma paixão, é seguir, imitar Jesus Cristo crucificado.
2. Forma, o que é?
Precisamos, pois, perguntar-nos, agora, o que é Forma? Forma quer dizer, aqui, essência, isto é, o vigor, a doação que anima e possibilita algo de vir a ser o que é e deve ser. Este sentido de “forma” aparece na nossa linguagem usual na expressão “estar em forma”, quando nos referimos, por exemplo, a um atleta que chega ao auge de sua expressão.
Para os medievais, a Forma que in-forma (que essencializa) todas as formas é o Filho de Deus, Jesus Cristo, que é a Imagem, o esplendor do ser do Pai, o primogênito de toda a criatura. Assim, a plenitude do ser-homem se alcança somente e na medida em que o homem se torna filho no Filho de Deus, homem no Homem Deus. O pique do vigor do ser-homem se dá quando o homem se torna tal como o Filho, Jesus Cristo, que é tal como o Pai é. É igualar-se ao Filho, que é igual ao Pai; é ser uno com o Filho, que é Uno com o Pai. Eis o anúncio da Boa Nova que inflamava o coração de Jesus Cristo, dos Apóstolos e da Igreja primitiva: o surgimento do novo homem.
Tornar-se cristão é, neste sentido, deixar-se cristificar, isto é, é deixar-se formar (essencializar) por Jesus Cristo. É vir a ser “alter Christus” (outro Cristo). É seguir o seu exemplo com a famosa imitatio Christi: imitação de Cristo. É con-formar-se a Ele, isto é, assemelhar-se a Ele, tornar-se per-feito como Ele é per-feito. Todavia, como esta é uma realização que traz consigo uma exigência absoluta, porque transcende a tudo e a todos, a imitação nada tem de um macaquear e papaguear, e a con-formidade nada tem de conformismo. Pelo contrário. Este devir (vir a ser) cristão exige do homem dar a si e de si o melhor, para, em tornando-se o que ele é, em sua singularidade e originalidade, e, em superando-se a si mesmo e toda a medida humana, dar um novo rosto, uma nova fisionomia, uma nova configuração e cunhagem, única, ao ser-filho no Filho unigênito do Pai. Criação e redenção se cumprem, pois, nesta filiação. Neste sentido, o Evangelho só chega ao homem por já brotar de dentro do humano. Nisso está todo o desafio da nossa Revelação[1].
Com Francisco soou a hora e a vez, o kairós (momento oportuno), de um novo encontro com o Evangelho, com Jesus Cristo. A Regra franciscana, portanto, é concreção da “vita nuova”, da vida nova nascida e vivida a partir da novidade jovial desse Encontro. Tudo isso fez com que Francisco se tornasse um “outro Jesus Cristo”, “o Evangelho vivo” e aquela primeira geração de Frades, uma nova “critianidade”. Uma “cristianidade” nova, semelhante, mas não igual, à “cristianidade” dos primitivos cristãos, semelhante à vida da Ordem dos Apóstolos. Por isso recebeu, juntamente com os Dominicanos, o nome de Ordem dos Pregadores. No centro dessa “cristianidade” está o seguimento de Jesus Cristo e este, especialmente, como o Crucificado. Seguir nu o Cristo nu – esta era a divisa de Francisco e seus companheiros. E, na cruz, encontramos o “Christus nudus in nudo ligno” (o Cristo nu no madeiro nu).
Assim, a Regra franciscana é um documento essencialmente evangélico, espiritual, nascida de um pai evangélico, espiritual. Ela não é um documento jurídico de um legislador. Ela tem em mira a encarnação do espírito do Evangelho na vida concreta, prática, cotidiana, da fraternidade. É a “forma de vida” aplicada ao cotidiano dos frades. Por isso, deve ser interpretada e vivida “evangelicamente”, “espiritualmente”. Como em Maria, na Encarnação, nela está em jogo a recepção e a encarnação do “espírito do Evangelho”, isto é, do Espírito do Senhor e sua santa operação (RB 10,9).
A Regra é, pois, uma questão de “espírito” e “vida” e de encarnação; de um tomar corpo, ganhar forma deste “espírito” e desta “vida” na concretude fática, na práxis, do cotidiano, nos usos e costumes. Por isso, ela começa proclamando:
Em nome do Senhor! Começa a Vida dos Frades Menores. A Regra e a Vida dos Frades Menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de próprio e em castidade[2].
3. Regra e Vida
É significativo que frei Ângelo Clareno, ao comentar “a Regra e a Vida” remonta à compreensão grega de “regra” e de “vida” (!), sondando o sentido ontológico da existência evangélico-minorítica. Ele diz:
A Regra é o cânon evangélico, que santifica o decreto, a lei da graça, da justiça e da humildade de Cristo, a forma de viver segundo o exemplar da pobreza e da cruz de Cristo Jesus. Regra, porque conduz retamente, porque ensina o modo de viver retamente, sem erro. Aquilo que os nossos gramáticos nas partes móveis do discurso, dizem “declinar”, os gregos chamam “regular e canonizar”. [...]. Assim, também agora, na Regra, e em todas as histórias dos santos, este nome “vida” se usa para indicar a santa conversação e a perfeita operação das virtudes[3].
A Regra é, pois, Vida. Mas, sabemos nós o que é vida? Sabemos e não sabemos. Sabemos, pois vivemos! Sabemos, na medida em que temos experiência de viver. Mas, também, não sabemos, pois, se soubéssemos não perguntaríamos o que é vida?
Nós não sabemos bem o que é vida! No entanto vivemos! Eu vivo a vida, sem contudo poder agarrá-la e defini-la. No entanto, a vida não é algo irreal e abstrato. É o vigor concreto que movimenta toda a minha existência. Existem coisas realíssimas que nos envolvem totalmente, a partir das quais faço tudo o que faço, e, no entanto, não sei bem o que são. É como o olho que tudo vê e não vê a si próprio. A Vida é aquilo que está presente em tudo o que a gente faz, em toda articulação do viver. E não se pode pegá-la como se fosse coisa. Vida é assim uma palavra indicativa de uma realidade experimental muito simples, mas que não dá para agarrar e definir. [...][4].
Assim, se perguntássemos a nossa mãe o que é vida, certamente responderia que vida, para ela somos nós, seus filhos, nosso pai, nossa família, etc. Mas, se quiséssemos uma resposta ainda mais concreta e perguntássemos: “E nós, seus filhos, seu esposo, nosso pai, nossa família, o que somos?” provavelmente ficaria sem saber o que responder ou diria que somos um mistério insondável de Deus. Se a pergunta for dirigida a Francisco, certamente, responderia: Vida é seguir Jesus Cristo.
Nas origens da Ordem franciscana, muitas vezes, fala-se de “Vida” em vez de “Regra”. É que, para São Francisco, Vida e Regra eram o mesmo. Para São Francisco, o pivô era o “spiritualiter observare” (observar espiritualmente). A Regra era a regência da Vida. Era a Vida se regendo, se pondo de pé, em seu vigor. As discussões posteriores e as lutas intestinas da Ordem em torno da observância literal (litteraliter observare) da Regra ou a sua adaptação às exigências da evolução histórica da instituição, já se move em outro horizonte do que o de São Francisco. A Regra é a Vida se projetando, se concretizando, se estruturando. É a Vida que in-forma, estrutura e dá forma à Regra. A Regra não existe para assegurar a Vida. Pelo contrário, ela existe para que a ventura da Vida, com seus riscos, seja mais bem assumida. Na expressão “Vida e Regra”, o “e” significa identidade e unidade. À questão colocada por Giorgio Agamben, recentemente, Hermógenes Harada dá a seguinte indicação:
A Vida dá a medida à Regra. Portanto para entender a Regra é necessário primeiro saber o que é Vida, pois ela é a fonte, o suco que dá a medida de interpretação da Regra. A Vida é a raiz; a Regra é o broto, o resultado, a concreção da Vida. Portanto a Regra deve ser lida como concreção da Vida e não como ensinamento ou "norma orientadora". Regra e Vida, porém, são dois momentos de uma mesma realidade, que indicam exatamente o viver humano chamado: "Projeto fundamental de vida". O segredo está no "e": o que a Vida faz da Regra e como a Regra acolhe a Vida. O perigo de um lado é cair no idealismo e esquecer a encarnação, abandonando a Regra e ficando no puro campo do idealismo sem concreção; e do outro é cair no legalismo, no empirismo de leis e estruturas sem vigor nascivo. Não existe "forma evangélica" sem "matéria" nem matéria sem forma: as duas coisas juntas constituem o Evangelho. O espírito de São Francisco é muito historial, aproveita da situação concreta "hic et nunc", sem cair no genérico. Liberdade não é fazer aquilo que está fora da quadratura, mas fazer caminho com o que está dentro dela[5].
Idealismo desencarnado e legalismo sem espírito são dois modos deficientes, duas defasagens da unidade e identidade de Vida e Regra... São duas fugas: um foge para o infinito e outro para o finito resignado, morto. Ambos não correspondem nem à Vida nem à Regra e muito menos à tarefa de, como criaturas, realizar a identidade e a unidade de ambas.
[1] “Introdução Geral”. In: Fassini, Dorvalino e Oliveira, Aloísio Antônio de (coord.). Fontes Franciscanas. Santo André: Ed. “O Mensageiro de Santo Antônio”, 2020², p. 9. [2] Fassini, D. (org.). Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 62. [3] Clareno, Frate Angelo. Expositio super regulam fratrum minorum (a cura di Giovanni Boccali ofm). Santa Maria degli Angeli (Pg): Ed. Porziuncola, 1994, p. 140-141. [4] Idem, p. 10. [5] Idem, p. 10.
Para pensar, conversar e comentar:
1. O que significou/a para a Igreja e para a Humanidade o surgimento da Ordem Franciscana com sua Regra e Vida?
2. Qual o alcance da formulação “Regra e Vida”? Como se relacionam Regra e Vida? Qual o significado da partícula “e”?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes.
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Paz e bem! realmente ter um pouco da clareza de que é realmente a regra! vida essa vida que tão bem amada e seguida por muitas e muitas pessoas que realmente se encantaram em viver essa regra de vida, que nos traz e enche mais e mais nossa vida de vida franciscana, vida de alegria, amor e alegria contagiante de São Francisco.