27º Encontro (08/08/21) - Regra Não Bulada, uma forma de vida escrita e reescrita sempre de novo
- Frei
- 8 de ago. de 2021
- 8 min de leitura
Regra Não Bulada, uma forma de vida escrita
e reescrita sempre de novo
No Encontro de hoje, queremos falar de um dos mais significativos e importantes escritos de São Francisco: a “Regra Não Bulada” (RNB). O fazemos por duas razões. Primeiramente por ser, juntamente com o Testamento, um dos textos mais originários do carisma franciscano e, em segundo lugar, por estarmos celebrando o jubileu de seus 800 anos. Pois, foi em 1221 que o texto recebeu sua redação final.
Infelizmente, o título, redigido de forma negativa, com um “não”, tem contribuído para difundir a ideia enganosa de um texto de somenos valor ou importância. A formulação em negativo, porém, quer dizer, apenas, que estamos diante de um texto que não recebeu uma bula ou selo papal. E isso, simplesmente, porque nunca foi apresentado à Cúria romana. E nunca o foi porque as autoridades da Igreja, para aprovar um texto como Regra, exigiam que fosse mais breve e mais jurídico e não tão carismático. Assim, o título “Regra Não Bulada” serve apenas para distingui-lo de outra versão da Regra de São Francisco: a ”Regra Bulada”, confirmada pelo Papa Honório III, em 1223. Ora, o fato de não ter um selo ou bula de aprovação de Roma não diminui em nada a riqueza e a importância desse escrito. É como com um remédio. Seu valor não está no fato de ser guardado dentro de uma caixinha com seu rótulo e sua bula, mas, na pureza e veracidade de seu conteúdo. Para isso, vejamos como nasceu esse escrito.
Na Primavera de 1209, três anos após o famoso encontro com o Crucificado, em São Damião, e um ano depois do encontro com o Evangelho do Envio dos Apóstolos, Francisco, com seus doze primeiros companheiros, vai a Roma, pede e recebe do Papa Inocêncio III a aprovação da “Vida e Regra” daquele seu grupo. Nascia e se confirmava, assim, na Igreja, uma nova Ordem religiosa, com uma nova Forma de Vida, ou Regra, radicalmente diferente de todas quantas até então existiam. Mas, essa Forma de Vida era muito enxuta, resumida: só algumas frases do Evangelho que falavam da Vida dos Apóstolos, de como eles deviam ir pelo mundo em nome de Jesus e que deviam levar a paz a todos os homens.
A tradição franciscana chama aquela primeira redação, entregue ao Papa e aprovada por ele, de Proto Regra. Proto significa a Regra originária, a primeira, a que vai servir de protótipo, modelo e mãe de todas as demais. Para Francisco, e aquele pequeno grupo de doze companheiros, aquilo bastava. Tanto é que ele voltara de Roma sem nada por escrito. Estava tudo muito bem guardado em seu coração e gravado em sua memória. Nunca, até então, passara pela cabeça dele que a “coisa” se desenvolvesse e crescesse da forma como estava acontecendo e tão rapidamente.
Assim, nascia a necessidade, não apenas de reescrever a Proto-Regra, para os novos e futuros companheiros, mas, também, de dar-lhes uma formulação mais abrangente, de modo que servisse de orientação segura aos numerosos frades de então e futuros, em todas as situações ou momentos de sua vida. Desse modo, a partir daquela data, 1209, todos os anos, por ocasião do Tempo de Pentecostes, Francisco se reunia, em Capítulo, com todos os seus Frades no Convento da Porciúncula. Lá, através de intensos estudos, orações e confrontos diários com aquele pequeno texto, a Proto-Regra, Francisco e toda aquela primeira geração de Irmãos foram elaborando e expondo, sempre mais clara e detalhadamente, a Regra e a Vida franciscana.
Por isso, o que mais se lê ou se colhe na leitura de suas páginas não são normas, regras para fazer isto ou aquilo, mas a alegria evangélica, o entusiasmo do espírito dos Apóstolos buscado, vivido e testemunhado por aquela primitiva geração de Irmãos. É um texto que nasce do coração de homens apaixonados por uma Pessoa e sua Forma de vida, seu amor, sua Paixão: Jesus Cisto crucificado. Mais que para escribas é um texto para discípulos, para pessoas dispostas a seguir a doutrina e os vestígios de Nosso Senhor Jesus Cristo (RNB 11), como podemos ver neste trecho:
Amemos todos com diligência o Senhor Deus. Amemo-Lo de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente, com todo o vigor e fortaleza, com todo o intelecto, com todas as forças, com todo o esforço, todo o afeto, todas as vísceras, todos os desejos e vontades. Amemos a Ele que nos deu e nos dá, a nós todos, todo o corpo, toda a alma e toda a vida; que nos criou, redimiu e somente por sua misericórdia nos salvará; a Ele que fez e faz todo o bem a nós, miseráveis e infelizes, pútridos e fétidos, ingratos e maus. Por isso, nada desejemos, nada queiramos, nenhuma outra coisa nos agrade e nos deleite, a não ser o nosso Criador e Redentor e Salvador, único verdadeiro Deus: Ele é o bem pleno, todo o bem, o bem inteiro, o verdadeiro e sumo bem. Só Ele é o bom, o piedoso, o manso, o suave e o doce. Só Ele é o santo, o justo, o verdadeiro, o santo e o reto. Só Ele é o benigno, o inocente, o puro. D’Ele, por Ele e n’Ele está todo o perdão, toda a graça, toda a glória de todos os penitentes e justos, de todos os bem-aventurados que com Ele se regozijam nos Céus (RNB 23,8-9).
Por tudo isso, o ano de 1221 sinaliza o encerramento de um dos períodos mais fecundos e intensos de busca da clarificação, elaboração, confirmação e consolidação do carisma fundacional franciscano, isto é, da vocação-missão da nova Ordem na Igreja, no mundo.
Podemos ainda acrescentar outras razões que levaram Francisco e aquela primeira geração de Frades a reescrever a Proto Regra, dando origem, assim, à Regra Não Bulada. Primeiramente, deve-se realçar que, sendo pessoas profundamente tocadas pelo mistério de Cristo crucificado e de sua Paixão, logo sentiram que essa Pessoa precisava ser sempre mais e melhor conhecida, amada. Só assim poderiam servi-la, anunciá-la, testemunhá-la com fidelidade e da melhor maneira possível. Pois, é da natureza do amor levar a pessoa que se sente amada à necessidade de conhecer, sempre mais e melhor, a pessoa que a ama. Não tanto um conhecimento informativo, funcional, mas existencial, que nasce da necessidade de bem cuidar do outro, de bem servi-lo, testemunhá-lo.
Assim, os 24 capítulos que formam essa Regra não nasceram de uma penada e muito menos de uma única pessoa ou comissão. Ela nasceu da Paixão de Cristo, que crepitava no coração daqueles homens simples; uma Paixão levada à práxis, à vida e da vida, da práxis levada à Paixão de Cristo e seu Evangelho.
Temos, assim, uma tecitura sofrida e jubilosa, plena “de Espírito e Vida”, simples, una e transparente, do começo ao fim. Uma Regra que é Vida e uma Vida que é Regra. Uma unidade perfeita e não um binômio! Por isso, mais que de Francisco e dos frades ela é fruto do Espírito do Senhor e seu santo modo de operar (RB 10,9). Da mesma forma, também, nela não aparece o autor. Esse está escondido e atuando em todos os Irmãos, tanto nos sábios e instruídos como nos idiotas e simples (2C 192) que, durante doze anos, foram escrevendo e reescrevendo o texto que hoje, mais do que os demais, juntamente com o Testamento, nos põe em comunhão, direta e imediatamente, com o querigma franciscano. Por isso, no dizer de nossos Ministros Gerais, mais do que um “pedaço de papel” e, antes de tudo, ela é um “pedaço de vida”. A palavra escrita busca, assim, dar resposta a perguntas nascidas da escuta continuativa da realidade concreta (Carta Viver e Seguir, dos Ministros Gerais, de 04/10/2020).
Mais que um texto de espiritualidade, doutrina ou teologia é um texto do puro Espírito evangélico; um texto cujo vigor do Espírito (“Vida”) rege (“Regra”), levanta e faz pôr-se de pé todo devoto de Francisco, colocando-o na busca dessa Pessoa amada, pulsante em todas as pessoas, acontecimentos e, principalmente, na Eucaristia. Era assim que, a exemplo dos Apóstolos, livres e alegres como as aves do céu, aqueles homens de Deus percorriam cidades e aldeias a fim de anunciar a todos a paz e a penitência evangélica (1C 29). Enfim, um texto para “viver a Vida de Jesus Cristo” observando seu Evangelho! (RNB Pró e 1).
O ESPÍRITO DA REGRA NÃO BULADA, HOJE
Uma Regra evangélica, que foi escrita e reescrita, diversas vezes, sempre de novo, revela que estamos diante de um texto impregnado de paixão, de espírito e vida; nascida, pensada e redigida, não sobre uma escrivaninha e por uma única pessoa, mas, por todos os frades, num contínuo diálogo, sinaliza que o seguimento de Cristo, na Forma de Vida dos Apóstolos, coração de toda a Regra, deve ser visto e acolhido como fonte que precisa ser lido, estudado, compreendido, amado e testemunhado sempre de novo e com novo ardor por toda a Fraternidade de São Francisco. O próprio Francisco no fim da vida costumava dizer: Irmãos vamos começar a servir o Senhor porque até agora pouco ou quase nada fizemos (1C 103).
No coração da RNB ferve, portanto, a graça do espírito, do desejo e da decisão (promessa) daquela primeira geração de frades de responder, digna e fielmente, ao mistério da Paixão de Jesus Cristo, pobre e crucificado, tão bem compreendido, vivido e testemunhado pelos Apóstolos. Ora, é desse mistério, dessa Forma ou Regra de Vida dos Apóstolos, escrita e reescrita por aqueles Frades, 800 anos atrás, que a Igreja, hoje, a partir do princípio da volta às origens, mais deseja e procura impregnar-se em todos os seus níveis, desde a cabeça até seus membros mais humildes.
Assim, por exemplo, nosso Papa Francisco, ao anunciar o grande objetivo de seu pontificado, proclama que a prioridade absoluta de toda a evangelização deve ser o jubiloso, paciente e progressivo anúncio da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo (EG 210). E, falando aos Cardeais, volta a pedir para que a Igreja, todos, enfim, fiquemos mais focados no Evangelho:
Podemos caminhar o quanto quisermos, podemos construir muitas coisas, mas se não proclamarmos Jesus Cristo, algo está errado. Vamos nos tornar uma ONG caridosa, e não uma Igreja que é a noiva de Cristo.
Finalmente, a atualidade dessa Forma de Vida, que tanto moveu aqueles frades, no século XIII, aparece neste testemunho de uma simples franciscana secular, Marina (+1991): Quando eu leio as Cartas de São Paulo ou medito a vida e os escritos de São Francisco, ou de Santa Teresa, vejo o amor ardente que eles tem pela Cruz, pela tua Paixão. Eu não consigo penetrar no pensamento deles, mas de alguns dias para cá, eu tive uma pequena iluminação, deu para sentir que o sofrimento é a chave que abre a porta da união contigo, da comunhão que os santos buscaram em Ti. Sei que amar é sofrer, mesmo assim eu quero amar (O Livro de Marina, Adelino Pilonetto, pág. 194).
Para pensar, conversar e comentar:
1. Como nasceu a Regra Não Bulada? Por que demorou tanto para ser reescrita? Qual o ensinamento dessa demora? Qual a importância desse texto para a espiritualidade franciscana?
2. Qual a importância desta Regra de São Francisco para o nosso tempo?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM, e Marcos Aurélio Fernandes.
Continue bebendo do espírito deste tema:
- indo ao texto-fonte: 27º Encontro - Regra Não Bulada, uma forma
de vida escrita e reescrita sempre de novo
- postando seus comentários;
- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 27º Encontro - Regra Não Bulada,
uma forma de vida escrita e reescrita sempre de novo
Inscreva-se e curta nossos vídeos
Próximo Encontro: 28º Encontro - O "e" de Regra e Vida
#espiritofranciscano #estudosfranciscanos #fontesfranciscanas #freidorvalino #freidorvalinofassini #professormarcosfernandes
Comments