26º Encontro (31/07/21) - Leitura Espiritual Franciscana - 2ª parte
- Frei
- 2 de ago. de 2021
- 9 min de leitura
Leitura Espiritual Franciscana
2ª Parte:
Rito de Passagem
No último Encontro, vimos a Leitura Espiritual Franciscana como caminho que leva o leitor buscar a ler, compreender e a percorrer os passos de Francisco, que são os passos de Jesus Cristo. A denominamos de espiritual e franciscana porque é movida pelo mesmo espírito que levou Francisco a se converter e a escrever seus Escritos. Assim, podemos dizer: Leitura Espiritual Franciscana, Caminho que faz o franciscano caminhar, ser.
Sendo um caminhar, essa Leitura é também um rito de passagem. Passagem de uma paisagem ou melhor de uma pátria para outra, sempre nova, embora sempre a mesma. Por isso, o título de nossa reflexão de hoje: Leitura Espiritual Franciscana, Rito de Passagem. Como se trata de uma leitura no Espírito e não apenas na materialidade do texto, ela nunca é unidimensional. Ou seja, ela é capaz de levar o leitor a experimentar dimensões ou, melhor, intensificações diversas, maiores ou menores, da proximidade do mistério escondido. Poderíamos chamar essas dimensões de níveis ou estágios. São Boaventura fala em graus, elevações, arrebatamentos, êxtases. Nós vamos nos deter apenas a três, talvez os mais conhecidos entre nós: a leitura, da qual já falamos em parte, no último encontro, a meditação e a contemplação. Não se trata, porém, de experiências excludentes, como estágios de um foguete no qual um vai eliminando o outro. Assim, numa simples leitura pode-se fazer a experiência da meditação e da contemplação ao mesmo tempo. Vamos, porém, aqui, olhar cada uma em separado, seguindo sempre a caminhada de Francisco, lida e proposta por São Boaventura.
1. Leitura e sua conduta
A primeira experiência da caminhada espiritual de Francisco foi a leitura. Ainda bem jovem, na casa do pai, começou a ler, colher algo diferente, estranho no pobre que lhe pediu uma esmola pelo amor de Deus. Depois, teve de fazer o mesmo no leproso que o enojava, nos famosos sonhos no caminho de Espoleto, no Cristo Crucificado que lhe ordenara reconstruir sua Casa, no Evangelho no qual Jesus ordena seus discípulos a ir pelo mundo levar a Paz, etc. Mas, ao mesmo tempo que lê e colhe, Francisco, também, é lido, colhido e conduzido para um novo “mundo”, uma nova habitação ou existência, misteriosa, até então desconhecida. Em cada uma dessas leituras, cada vez, Francisco sai diferente. Jamais o mesmo.
A Leitura Espiritual de textos franciscanos é, portanto, um rito de passagem. Uma passagem que nos leva para uma dimensão muito real, embora ainda bastante à superfície do mistério que os textos guardam.
2. Meditação
A Leitura, quando bem feita, isto é, quando segue seu curso, seu rito, ela conduz para a esfera da meditação, como podemos ver nesta passagem da Legenda dos Três Companheiros:
Assim como na primeira visão quase ficou todo fora de si de alegria, desejando sucesso temporal, nesta, recolheu-se em si mesmo, admirando e considerando sua força com tanta diligência que, naquela noite, não quis mais dormir. Ao amanhecer, volta às pressas para Assis, sumamente alegre e jubiloso, na expectativa da vontade do Senhor que lhe mostrara estas coisas, e que por ele lhe fosse dado conselho sobre sua salvação. Mentalmente já transformado, recusa-se a ir para a Apúlia e aspira por conformar-se com a vontade divina (LTC 6).
O relato se refere ao momento da segunda visão de Francisco em sua viagem para a Apúlia. Vamos realçar os principais verbos, apenas com o objetivo de ajudar a clarear o processo próprio da meditação franciscana. Francisco:
- acordado, começa a refletir diligentemente sobre a visão que tivera;
- conduzido para fora de si, recolhe-se todo para admirar, considerar a força daquela visão que nem quis mais dormir;
- volta, às pressas para trás, para Assis, jubiloso, na expectativa da vontade do Senhor;
- a partir de então recusa-se a ir para a Apúlia;
- e, finalmente, aspira conformar-se com a vontade do Senhor.
Cada um desses exercícios mereceria uma reflexão própria a fim de intuir todo seu peso, importância e eficácia. Aqui, chamamos a atenção apenas para um certo veio que perpassa todos eles: a necessidade do retorno, da volta ao toque que dá origem a todo o processo de busca e transformação. Assim, a Leitura espiritual franciscana, em vez de correr sempre e tão somente para frente, segue a dinâmica do parar, do estranhar, do olhar bem, do ler de novo, e muitas vezes, a mesma palavra, a mesma frase, o mesmo texto. É o que diz o Evangelho acerca de Maria: guardava e ruminava em seu coração tudo o que se dizia acerca do Menino.
3. Contemplação
O auge da Leitura Espiritual Franciscana se dá na contemplação, no êxtase. Para melhor compreendê-la vamos ler trechos ou frases da famosa obra Itinerário da mente para Deus, de São Boaventura, assim como se encontra na Primeira Leitura do Ofício do Santo. Trata-se da sua conclusão, intitulada O êxtase mental e místico, no qual e pelo qual se passa totalmente para Deus e a inteligência encontra o repouso e o afeto.
Nesse trecho, Boaventura mostra, primeiramente, que Cristo é o caminho, a porta, o veículo, o propiciatório colocado sobre a arca de Deus (Cf. Ex 26,34) e o mistério desde sempre escondido (Ef 3,9). Em seguida, descreve não apenas o que se deve fazer para deixar-se conduzir para o êxtase, mas, também, o que então vai acontecer:
Quem olha para este propiciatório, com o rosto totalmente voltado para ele, contemplando-o suspenso na cruz, com fé, esperança e caridade, com devoção, admiração e alegria, com veneração, louvor e júbilo, realiza com ele a páscoa, isto é, a passagem. E assim, por meio do lenho da cruz, atravessa o mar Vermelho, saindo do Egito e entrando no deserto, onde saboreia o maná escondido. Descansa, também, no túmulo com Cristo, parecendo exteriormente morto, mas experimentando, tanto quanto é possível, à sua condição de peregrino, aquilo que foi dito pelo próprio Cristo ao ladrão que o reconhecera: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43).
Há uma semelhança admirável entre Cristo e Francisco. Cristo, em sua apaixonada leitura da Vontade do Pai, foi sendo conduzido ao monte Gólgota, onde e quando, então, se deu a consumação de toda sua leitura, meditação e contemplação: o reencontro com o Pai, a Passagem, a Páscoa, a Ressurreição. Da mesma forma, Francisco, em sua apaixonada e diligente leitura (vontade de conhecer, colher) da Paixão de Cristo foi sendo conduzido por ela até o monte Alverne, no qual se revelou todo o mistério que o acompanhara do início de sua conversão.
A revelação se referia não apenas a quem era o Senhor que o tocara, o procurara e lhe pedira para que o seguisse, mas também o que lhe aconteceria. Leiamos:
E estando nessa admiração, foi-lhe revelado, por aquele que lhe aparecia, que por divina providência, aquela visão lhe era mostrada em tal forma, para que ele compreendesse que, não por martírio corporal, mas, por incêndio mental, devia ser todo transformado na expressa similitude do Cristo crucificado (CCE 47).
E isso que acabara de ser-lhe prometido realizou-se logo em seguida:
Desaparecendo, pois, esta visão admirável, depois de grande espaço de tempo e de secreto falar, deixou no coração de São Francisco um ardor excessivo e flama de amor divino, e em sua carne deixou uma imagem maravilhosa e vestígio da Paixão de Cristo. Pelo que, imediatamente, nas mãos e nos pés de São Francisco começaram a aparecer os sinais dos cravos (idem, 53).
Com a impressão dos estigmas, o Senhor revelou-lhe também, seu significado. E novamente, a semelhança com Cristo é admirável. A seu Filho muito querido, o Pai concedeu a graça da Cruz e da Ressurreição para proveito dos outros e não para Ele; levou-O ao Gólgota, a fim de que com seu sacrifício, sua doação, sua “Charis” (Caridade) continuasse sua obra redentora e salvadora até o fim dos tempos. Da mesma forma, agora, Francisco recebe a revelação plena, consumada do sentido de toda a sua vida, não apenas vivida aqui, no tempo, mas, também, na eternidade. Diz-lhe o Senhor:
Dei-te os estigmas que são os sinais de minha Paixão, a fim de que sejas meu gonfaloneiro. E como no dia da minha morte desci ao limbo, e todas as almas que aí achei tirei-as, em virtude destes meus estigmas, assim te concedo que cada ano, no dia de tua morte, vás ao purgatório e todas as almas das tuas três Ordens, isto é, Menores, Irmãs e Continentes, e também dos outros que te serão muito devotos, os quais encontrares ali, as tires em virtude dos teus estigmas e as conduzas à glória do paraíso, a fim de que tu me sejas conforme na morte como na vida.
Para este momento da leitura e da meditação, transformadas, agora em contemplação e êxtase, São Boaventura passa a mostrar a dinâmica ou o espírito com o qual o leitor ou contemplador, no caso, deve deixar-se imbuir. Primeiramente, o espírito do despojamento, desprendimento; depois, o de agarrar-se à operação do Espírito que move o próprio texto e o leitor.
O primeiro exercício, o do despojamento de si e de todos os saberes desse mundo, vem assim descrito:
Nesta passagem, se for perfeita, é preciso deixar todas as operações intelectuais, e que o ápice de todo o afeto seja transferido e transformado em Deus. Estamos diante de uma realidade mística e profundíssima: ninguém a conhece, a não ser quem a recebe; ninguém a recebe, se não a deseja; nem a deseja, se não for inflamado, até à medula, pelo fogo do Espírito Santo, que Cristo enviou ao mundo. Por isso, o Apóstolo diz que essa sabedoria mística é revelada pelo Espírito Santo (Cf. 1Cor 2,13).
A segunda conduta ou espírito que o contemplador deve buscar, quando a leitura o conduz para a contemplação, é o de agarrar-se à operação do próprio Espírito que move e conduz o mistério escondido no texto. Boaventura a descreve assim:
Se, portanto, queres saber como isso acontece, interroga a graça, e não a ciência; o desejo, e não a inteligência; o gemido da oração, e não o estudo dos livros; o esposo, e não o professor; Deus, e não o homem; a escuridão, e não a claridade. Não interrogues a luz, mas o fogo que tudo inflama e transfere para Deus, com unções suavíssimas e afetos ardentíssimos. Esse fogo é Deus; a sua fornalha está em Jerusalém. Cristo acendeu-a no calor da sua ardentíssima paixão. Verdadeiramente, só pode suportá-la quem diz: “Minha alma prefere ser sufocada, e os meus ossos a morte” (Cf. Jó 7,15). Quem ama esta morte pode ver a Deus porque, sem dúvida alguma, é verdade: “O homem não pode ver-me e viver” (Ex 33,20).
Vem, então, esta assustadora, mas, ao mesmo tempo, animadora, festiva e incendiária conclusão:
Morramos, pois, e entremos na escuridão; imponhamos silêncio às preocupações, paixões e fantasias. Com Cristo crucificado passemos “deste mundo para o Pai” (Cf. Jo 13,1), a fim de podermos dizer com o apóstolo Filipe, quando o Pai se manifestar a nós: “Isso nos basta” (Jo 14,8); ouvirmos com São Paulo: “Basta-te a minha graça” (2Cor 12,9); e exultar com Davi, exclamando: “Mesmo que o corpo e o coração vão se gastando, Deus é minha parte e minha herança para sempre!” (Sl 72,26). “Bendito seja Deus para sempre! E que todo o povo diga: Amém! Amém!” (Cf. Sl 105,48).
Recordemos que o destino do homem e de cada criatura é a paz. Por isso, Jesus dá a paz e ordena aos discípulos que fizessem o mesmo. Paz, aqui, significa o repouso de cada criatura no seio de sua origem ou paternidade, que só se dá na e com a Cruz de Cristo, pois nela, Cruz, está a passagem definitiva, consumada, a Páscoa, a Ressureição.
LEITURA, MEDITAÇÃO, CONTEMPLAÇÃO FRANCISCANA HOJE
Hoje, se fala de novo da importância e da necessidade de fazer leitura espiritual, meditação e contemplação. Buscam-se até métodos de outras religiões, ou das ciências humanas, principalmente, da psicologia. Métodos muito bons para terapias e que, usualmente, podem trazer grande paz, serenidade, melhoramentos na saúde física e até certa iluminação interior.
Todavia, todos esses exercícios pouco ou quase nada tem a ver com a Leitura, meditação e contemplação franciscana. Isso porque, enquanto aqueles buscam o bem estar pessoal, os nossos estão centralizados na busca do bem de Jesus Cristo e de seu Reino. Toda a vida de Jesus Cristo foi uma longa e penosa caminhada, não para ter consolos e satisfações pessoais, mas, para ler, entender e fazer a vontade do Pai; Maria, por sua vez, passou a vida toda, tentando ler, estudar, compreender e acolher o misterioso Menino que Jahvé havia-lhe dado. E isso só veio a se revelar aos pés da Cruz. Com Francisco, não foi diferente. Desde o princípio de sua conversão, nenhum outro caminho, nenhuma outra busca encetou senão a de ler, meditar, e de estar sempre unido, pela afeição e contemplação, ao seu Senhor, Jesus Cristo Crucificado, a fim de seguir-lhe os passos e de tornar-se um com e como Ele. O que se deu, enfim, no monte Alverne.
O Papa Francisco, em Fratelli Tutti, esclarece que o ser humano não consegue realizar-se em plenitude, ficando sozinho. Cita, então, esta frase do Vaticano II (FT 87): a não ser por um sincero dom de si mesmo (GS 24). E, logo em seguida, conclui: A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós «uma espécie de lei de “êxtase”: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser». Por isso, «o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar». (FT 88).
Para pensar, conversar e comentar:
1. Como compreender que a leitura, a meditação e a contemplação franciscana são um rito de passagem? Como esse rito aparece em Cristo e Francisco?
2. Em que consiste ou onde se dá a consumação desses exercícios espirituais franciscanos?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes.
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