21º Encontro (26/06/21) - O Pensamento de São Francisco de Assis e as Fontes Franciscanas
- Frei
- 26 de jun. de 2021
- 8 min de leitura
2ª Parte
Um Pensamento poético, cantante e agradecido
Ao ler as Fontes Franciscanas, somos postos em face do evento revelador originário, isto é, que vem do mistério do ser e que vige na existência de todos os seres; evento que se manifesta e se esconde, se doa e se retrai, na condução do seu sentido que, em São Francisco, se avia como caminho da pobreza. Nelas, encontramos, por toda parte, a todo o momento, uma “Vida”, ou melhor, uma “Forma de vida”, que toma corpo como o espírito da pobreza ou a pobreza de espírito e que se costuma denominar de “Existência franciscana”. Assim, “Forma de Vida Franciscana” e “Existência Franciscana”, dizem o mesmo. Forma quer dizer, aqui, o vigor da possibilidade que viabiliza ser; a dinâmica estruturante, que dá vigor e vigência de ser, de existir.
Uma boa descrição do sentido das Fontes Franciscanas encontramos nesta passagem:
Por Fontes Franciscanas entendemos aqui os testemunhos de vida de todos aqueles homens e mulheres que, no século treze, se inspiraram no espírito evangélico vivido por São Francisco, Santa Clara de Assis e pelos seus primeiros seguidores. Desde os primeiros desafios e confrontos de conversão, passando pelo Encontro com o leproso, com o Crucificado de São Damião e com o Evangelho do Envio dos Apóstolos, ouvido na Porciúncula, Francisco, depois Clara e toda aquela plêiade de seguidores de Cristo, não são mais os mesmos. Surgem novos homens, novas mulheres e inicia-se um novo tempo. Por isso, o século treze é considerado o primeiro século franciscano. Trata-se de uma forma de Vida, isto é, de uma maneira de ver e viver centrada na pobreza, na simplicidade, na paz e no bem evangélicos. O entusiasmo por esse ideal foi de tal abrangência e profundidade que veio a se constituir em verdadeira cruzada de retorno, de volta para a vida evangélica cujas sementes já estão presentes em todo ser humano. É que o Evangelho só chega ao homem por já brotar de dentro do humano. Nisso está todo o desafio da nossa Revelação (FF pág. 9).
Em vez de “existência franciscana”, nós costumamos falar de “espírito” franciscano. Nas “Fontes Franciscanas” o decisivo é o Sopro, a inspiração primeira ou primordial que deu fôlego à vida de Francisco e seus companheiros, às suas palavras e feitos; primordial é o Fogo que os iluminou e acalentou! O vigor desse espírito, o fogo desse carisma (a existencialidade da existência), que se transforma em entusiasmo, aqui, é o fermento de que fala o Evangelho; é ele que, permeia, perpassa e impregna todo o ser de Francisco e de seus companheiros e, a partir do ser, seu agir, bem como seus usos e costumes. Em jogo está, pois, algo como um “carisma”[1].
Assim, todo empenho de doação, ou de busca dos que se acham agraciados por esse evento é de receber esta “cháris” (graça, doação, vocação-missão) e de, nessa recepção, responder e corresponder ao seu apelo. Ora, os que assim se engajam, fundam um mundo: o mundo franciscano. Francisco de Assis, nesse sentido, não é simplesmente o fundador de uma Ordem religiosa do século XIII. Ele é fundador de um modo de ser-homem, de fazer história, cujo vigor é sempre porvindouro: o homem pobre, cuja pobreza, porém, vige como o relacionamento com a riqueza essencial, como ternura e vigor da liberdade criativa da vida. Francisco de Assis, na verdade, dá corpo à possibilidade de uma nova e outra “ciência do ser”, a “gaia (jovial) ciência” (sabedoria) do homem pobre[2]. Ele é fundador de uma nova pre-sença e ex-sistência para o humano e todos os homens. Uma presença dos “idiotas”, isto é, dos singulares homens que nada sabem e, assim, nesse nada saber, custodiam o pensar, isto é, a relação da verdade do ser com o homem, vigendo como o nada do mistério.
Uma avalanche, então, se precipita história abaixo, provocando transformações radicais nos parâmetros de encontro e desencontro dos homens consigo mesmos, com Deus e com os outros das gerações futuras. Pelo espírito evangélico vivido por São Francisco, o mundo já não é mais o mesmo de antes. Desde então, instaura-se na história um rito de passagem para uma outra coisa, a coisa que a Fé, a Esperança e o Amor de Deus desencadearam na humanidade de todos os homens. Como é próprio de todo rito de passagem essencial, isto é, de passagem no modo de ser e realizar-se dos homens, o ideal franciscano vestiu-se de falas e se encarnou numa variedade de linguagens. Todas são percursos de uma vitalidade evangélica que enchem de vigor todas as formas da vida humana de homens e mulheres, jovens e adultos, letrados e sem letras, nobres e plebeus, seculares, religiosos e eclesiásticos. Por isso, os registros são os mais diversos. Temos escritos, mas temos também espírito, temos estórias, mas temos também cantos e hinos, temos lendas e narrativas, mas temos também comportamentos e sacrifícios. Temos hereges e heresias, mas dentre eles, temos também santos e mártires. Temos espirituais e joaquimitas, mas destes temos também mártires e pensadores. Acima do real com suas limitações, está sempre a realidade com suas possibilidades de ser e realizar-se. Todos estão imbuídos do mesmo fervor, do espírito da fraternidade e humanidade que vêm do novo encontro com o Evangelho, na alegria de difundir a paz, o bem e o dom de Deus recebidos de graça pela Graça (FF pág. 9).
Nessa existência e em sua sabença (scientia, sapientia), nascida da experiência, reside um singular niilismo[3]. Em jogo está a niilidade da “minoritas”, da minoridade, do ser-menor[4]. Não o niilismo pessimista do nada negativo, aniquilador, vazio! No niilismo (Dama Pobreza) de Francisco, o ser, como o nada, é resguardado em toda sua dignidade. Nessa niilidade, a existência se entoa como um canto de gratidão pelo ser. Gratidão pela finitude agraciada que é a existência. Cantar, aqui, existir no nada de si, é vibrar no espírito, que é Deus. No pensamento poético, cantante, de Francisco, pensar é agradecer o ser, é louvar o mistério da gratuidade e a gratuidade do mistério, que se deixa evocar como um Tu, a quem ele chama de Altíssimo, onipotente e bom Senhor (CSol).
Entretanto, Francisco, mais que um pensador-poeta, é um pensador-poeta cujo pensamento e poesia se entoam com a mística da existência, na modulação do crer, da fé. Fé que se firma como confiança, fidelidade, entrega, pois é questão de esperança que nasce da graça do encontro, do amor.
A fé em Francisco é uma fé primordial, isto é, uma fé que existe antes dele, de cada um de nós. É a confiabilidade do próprio ser! É o abrir-se, o doar-se do ser em seu misterioso abismo insondável e infinito. Nesse sentido, o crer do pensar, o crer do conhecer, o crer do crente já chega tarde para essa fé primordial. Aqui, não é mais questão de acreditar nem de conhecer e saber nem de pensar, mas de ser.
A fé primordial, em Francisco, acontece como fé crística. Crística, é a fé, a doação, a confiabilidade de Cristo (pístis Christou - genitivo subjetivo) que, a partir de sua Encarnação e Crucificação, vige em cada uma das criaturas como sua nova identidade. É uma originária abertura da verdade do ser, que se abre com Jesus Cristo, o Deus crucificado. É o que a Igreja proclama na noite da Páscoa: Jesus Cristo ontem, hoje e sempre! Alfa e Ômega! Princípio e Fim! Ou seja, a fé crística é a fé do próprio Cristo Crucificado com o dom do seu Sim ao Pai e aos homens. É desse dom, dessa fé que o crente cristão comunga e participa, pelo seguimento-discipulado, que tem como modo próprio de ser a con-formação, a con-formidade[5].
A raiz e o cerne da fé crística, no entanto, consiste no vigor da gratuidade do Encontro. Por isso, ela só se realiza como tal, isto é, como amor-gratuidade (cháris, agápe), que irrompe no encontro com Cristo. A fé crística de Francisco, nas Fontes Franciscanas, brilha como modo de viver o amor-gratuidade, no e a partir do encontro com Jesus Cristo, o Deus crucificado. Dessa forma, a identidade do cristão não se realiza na observância de leis, de tradições, no seguimento de uma doutrina, na busca de um ideal, mas na caridade universal que é capaz de amar até o inimigo como amigo (Mandamento Novo)[6]. Em Francisco, esta caridade recebe o matiz todo próprio de fraternidade universal, ecumênica e cósmica. Ela é marcada, porém, com o enamoramento pela “Domina Paupertas”, isto é, pelo mistério da pobreza e humildade de Deus, em Jesus Cristo, o Deus-criança, o Deus-Crucificado, o Deus-pão (Corpo do Senhor), enfim, o Deus-menor.
Aqui, Pobreza é a riqueza do ser que está aí com sua pre-sença como finitude agraciada e agradecida. Assim, todo empenho de Francisco é o de nada ser, para ser todo receptivo-agradecido, na dinâmica da finitude agraciada. Pobreza é, nesse sentido, empenho para deixar-ser o ser e o não ser de tudo, desde o nada de si, na pura receptividade e gratidão para a riqueza essencial, o tesouro, do sentido do ser, chamado evangelho[7]. Nessa concepção evangélico-franciscana, a pobreza, constitui, funda, inaugura, novo mundo, novo céu e nova terra, novo homem e novo humano. Ela é uma experiência e compreensão do ser inteiramente outra, inteiramente nova; um novo mundo, num novo céu e nova terra. O pensar de Francisco é, neste sentido, um outro pensar. Sua existência é um convite a uma metánoia, isto é, a uma revolução no pensamento, que dispõe o homem para este outro pensar[8].
Francisco foi um homem de seu tempo, sim. Mas, sobretudo, foi um homem intempestivo, isto é, de todos os tempos. Ele permanece sendo um homem vindouro. E também o Deus de Francisco permanece sendo, para nós os homens da era da morte de Deus, o Deus vindouro. Deste Deus, Francisco foi o precursor, o arauto, mas também foi o cantador, na experiência da perfeita alegria da Cruz. Para ele, cantar era, porém, existir. Era um “um sopro pelo nada. Um vibrar em Deus. Um vento!”[9]
[1] HARADA, H. De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidade humana e franciscana. Petrópolis / Bragança Paulista / Curitiba: Vozes / EDUSF / Instituto de Filosofia São Boaventura, 2009, p. 185-186. [2] HARADA, H. De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidade humana e franciscana. Petrópolis / Bragança Paulista / Curitiba: Vozes / EDUSF / Instituto de Filosofia São Boaventura, 2009, p. 186-192. [3] HARADA, H. “A ideia do franciscanismo”. In: Scintilla - Revista de filosofia e mística medieval, vol. 11, n. 2, jul./dez. 2014, p. 129-147. [4] HARADA, H. Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana. Bragança Paulista: Edusf/IFAN, 2006, p. 79-96. [5] HARADA, H. Em comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas. Bragança Paulista / Curitiba: EDUSF / Faculdade São Boaventura, 2003, p. 75-86. [6] HARADA, H. Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana. Bragança Paulista: Edusf/IFAN, 2006, p. 136-140. LEÃO, E.C. Aprendendo a pensar III. Teresópolis: Daimon, 2017, p. 13-14; 83-88. [7] HARADA, H. Em comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas. Bragança Paulista / Curitiba: EDUSF / Faculdade São Boaventura, 2003, p. 82-91; HARADA, H. “A ideia do franciscanismo”. In: Scintilla - Revista de filosofia e mística medieval, vol. 11, n. 2, jul./dez. 2014, p. 116-129. [8] LEÃO, E. C. Aprendendo a pensar I: o pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 210-218. [9] RILKE, R. M. Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 25.
Para pensar, conversar e partilhar:
1. Qual o desafio maior na leitura das Fontes Franciscanas?
2. O que significa: A fé primordial, em Francisco, acontece como fé crística?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes.
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Professor Marcos Aurélio Fernandes
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