20º Encontro (19/06/21) - O Pensamento de São Francisco de Assis e as Fontes Franciscanas
- Frei
- 19 de jun. de 2021
- 8 min de leitura
1ª Parte
O Pensamento de São Francisco e sua radicalidade
O pensamento de Francisco é radical. Coincide com a própria existência. Nele, pensar é pertencer ao ser. Pensamento é, aqui, portanto, a experiência fática (do verbo fazer) de viver e morrer. Ora, vida-e-morte é a experiência mais radical, mais profunda, mais originária de pensamento[1]. É a fonte de todas as demais experiências. E o pensamento de Francisco é, notemos, bíos, vida, no sentido de um curso de uma história (“história de uma alma”)[2]. E essa vida de Francisco, como também a de seus primeiros companheiros, “floresce por florescer”, como fioretti, isto é, como florzinhas impregnadas de coragem de ser, isto é, de limpidez intrépida e ternura singela[3].
Nas versões da Regra, do Testamento, nas Admoestações, nas Cartas, nos Cânticos e Louvores, nas Saudações, nas Súplicas, no Ofício da Paixão, nas Bênçãos, nas Vidas, nas Legendas, nas Crônicas, nos Atos, em I Fioretti e no Sacrum Commercium o mais importante é a tonância do espírito da pobreza e da pobreza do espírito, dando-se como uma espécie de “atmosfera” de uma paisagem, de um mundo. Francisco e seus companheiros habitam a Terra dos homens abrindo toda uma paisagem, entre terra e mundo, que é algo como o reino da Domina Paupertas (Madonna Povertà, Senhora Pobreza).
Essa paisagem é algo como um “Grande Sertão” com suas “pequenas veredas”. É paisagem do cerrado e da clareira do ser. Enraizada no chão da pobreza, de uma pobreza assumida no corpo-a-corpo da experiência fática da vida, a árvore da existência franciscana floresce e frutifica no éter do espírito, isto é, na dimensão da verdade e da liberdade do ser[4].
O pensamento de Francisco é vida e vida como mística. Mística não diz, aqui, vivência. Em jogo aqui não está, propriamente, o vivenciar e o vivenciado, mas a própria vida em sua radicalidade fática. Chamamos de mística à experiência radical de viver, à experiência originária da Vida, da liberdade criativa do Ser[5]. Trata-se da força arcaica do mistério da Vida, que irrompe como apelo do silêncio, que interpela e provoca o homem para o cuidado de tudo e o cuidado com a maturação do seu próprio ser, da sua própria essência, do humano em si. A mística é impregnada de um vigor ontológico; é a vigência do nada no fundo-abismo da existência; é a própria vida fática em sua radicalidade ontológica; é a vida como caminho de um tornar-se o que se é, viajando por entre as vias do ser e do não ser, entre o ímpeto alado de ser, o pavor da angústia do nada e as implicações, complicações e explicações com as aparências[6].
Na mística, o desapego é fundamental. É preciso deixar de querer ser “algo”, para vir a ser o nada que já se é, e para, no nada de si, deixar ser o ser e o não ser de tudo. A pobreza desse desprendimento se faz, então, a quieta inquietude da serenidade[7]. Aprender a pobreza é aprender, então, a via da simplicidade. No Simples, no sempre o Mesmo, o pobre não encontra a uniformidade vazia, mas sim a unicidade, a abissalidade, a inesgotabilidade da criatividade da vida. Longe de entoar a existência no tédio e na náusea, o pobre deixa-a entoar-se na “gaia Scienza”, no saber jovial da serenidade. Ora, “a jovialidade sábia é uma abertura para o eterno”[8]. Na mística da pobreza, a renúncia não é outra coisa do que o re-anúncio da gênese do mundo.
O sair de si e abrir-se para a amplidão, profundidade e originariedade do ser, torna-se um modo livre de receber o próprio, a propriedade de ser. Na mística da pobreza, o mundo, a alma, Deus, tudo deixa ressoar a “fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade”[9]. Mística é a liberdade criativa do ser rompendo e irrompendo gratuitamente nos empenhos de libertação do homem.
No pensamento existentivo-existencial (ôntico-ontológico), místico, de Francisco, a pobreza é a tonância fundamental em que se dá a percussão e repercussão do toque do ser; é o modo como se dá o sentido do ser na vida e na morte. Sentido do ser, aqui, não é nenhum conteúdo; não é uma significação. Sentido do ser diz algo como a tonância e o modo da constituição da paisagem-mundo da existência. É algo como um toque de inspiração, que dá alento, fôlego, ao viver (espírito). Nas “Fontes Franciscanas” não encontramos meramente registros de fatos, cuja fatualidade é desprovida de existencialidade.
Os atos da vida dessas primeiras gerações não são fatos apenas; são feitos, verdadeiras taumaturgias, isto é, feitos realizados no poder e pelo poder de criação do Espírito de Cristo pobre, crucificado. Por isso, também, não têm e nem carecem de data ou lugar. São de todos os tempos, pertencem a todos os lugares. Estão além e/ou aquém de qualquer verificação documental ou prova historiográfica. São monumentos vivos de uma verdade originária que não necessitam ir à fonte, uma vez que já são fonte por provirem da fonte de toda vida e se moverem no entusiasmo de uma epifania venturosa, da epifania do Amor de Deus. É a coroa de justiça de que fala o Apóstolo, dada pelo Senhor naquele dia a todos que lhe amarem a manifestação na história (FF 10).
Ler as “Fontes Franciscanas” é um modo de nos encontrar, na faticidade da existência, com a faticidade da existência mesma, no modo, sim, na modulação da “existência franciscana”, que, a todo o momento, em mil e mil variações, expõe-nos a melodia da vida, desde a tônica e a tonância da pobreza no espírito. Ao lê-las, não somos postos em face de meros fatos objetivos.
Ler as “Fontes Franciscanas” desde a existência e no seu horizonte implica nos libertarmos da unilateralidade do interesse historiográfico objetivista para a riqueza da historicidade da existência. Frei Hermógenes Harada, neste sentido, perguntava:
Por que reduzimos nossas buscas à averiguação dos fatos na acribia e no zelo do asseguramento da certeza? Por que, para nós, hoje, verdade significa certeza dos fatos? Por que verdade não mais pode ser o risco de uma intrépida aventura apaixonada da exposição disposta ao inesperado, ao abismo do não saber agraciado, da docta ignorantia (douta ignorância)? Por que se nivelou a verdade, a tal ponto de crescer em toda parte a aridez baldia do sentido do ser, em cuja secura e vazio, ser não diz nem sequer ocorrência factual de algo, nem sequer nos mobiliza a nos indagarmos se não há algo de estranho na nossa compreensão do sentido do ser na sua totalidade? Esse crescente campo da aridez baldia da factualidade no tempo de indigência do espírito não poderia ocultar no subterrâneo do seu esquecimento do esquecimento do sentido do ser um ante-início de um novo hálito que pudesse nos preparar para um puro deserto, cuja acribia e rigor de precisão interrogativa nos conduzam para o ermo da pobreza do saber, cada vez mais sóbria, silenciosa, simples e atenta, qual pura ausculta dos vigias de uma nova vigília, a preparar a nasciva disposição da alegria da espera inesperada...?[10]
Francisco de Assis não é somente um personagem histórico, um indivíduo que, no século XIII, fundou a instituição da Ordem dos Frades Menores. Francisco de Assis é o anúncio e o anunciador de uma mensagem, cheia de carisma e de verdade, em cuja revelação vem à luz a possibilidade de ser do “homem novo” e da “vida nova”, renascido na perfeita jovialidade do seguimento de Jesus, pobre, humilde e crucificado.
As Fontes Franciscanas falam da origem deste modo de ser. Mas, nesta concepção, transforma-se também o sentido de “origem”. Origem deixa de ser apenas começo, o primeiro na série linear sucessória dos fatos, para ser princípio, isto é, o vigor que deixa saltar a totalidade de uma possibilidade de ser; a força propulsora que lança o projeto de um existir; o a priori de uma estruturação de mundo; o chão em que se planta a raiz de uma realização histórica; o mistério que envia os homens numa destinação temporal. Enquanto princípio, a origem é, pois, não só o que faz começar, mas também o que rege e sustenta, e o que propicia o consumar-se. Origem é, assim, proveniência e porvir, princípio e fim, iniciação e consumação. Uma apropriação produtiva, isto é, libertadora da tradição, não quer ser outra coisa do que redução, ou seja, recondução às fontes, às origens de uma história.
Nesta perspectiva, o primeiro século franciscano adquire uma importância, em primeiro lugar, por nos dar notícia de como essa origem se manifestou em seu caráter primordial na vida de Francisco de Assis e de seus primeiros companheiros; e, em segundo lugar, por nos dar notícia dos envios ou destinações, das peripécias e vicissitudes, em que o espírito da origem se encarnou na concretude das realizações históricas do movimento franciscano, da Ordem e da Igreja, da cristandade e do ocidente medieval.
Assim, na leitura dessa história, o que está em jogo, muito mais do que uma informação sobre o passado da Ordem franciscana, é uma reflexão sobre o espírito que dá vida, carisma e verdade à existência franciscana, sua doação e seu retraimento na concretude das instituições e na mundividência do franciscanismo. A existência franciscana é o carisma de uma mensagem e de uma possibilidade de ser no seguimento do Cristo pobre, humilde e crucificado.
[1] LEÃO, E. C. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 11. [2] As chamadas “Fontes Franciscanas”, portanto, hão de ser lidas sempre como documentos escritos que comunicam a vitalidade de uma “vida” (ou, se se quiser, de uma “forma de vida”). Entre estes documentos, temos os próprios escritos de Francisco, entre os quais se coloca a própria “Regra” (que é chamada, simplesmente, de “Vida”); temos, ainda as “Vidas”, as “Legendas”, e algumas “Crônicas”; temos textos como os “Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros” e “I Fioretti de São Francisco”, como o “Sacrum Commercium”, etc. (Cf. Fontes Franciscanas. Santo André: Ed. MSA, 2020). [3] Cf. “Ohne Warum”: „Die Ros ist ohn Warum: sie blühet, weil sie blühet, / Sie acht nicht ihrer Selbst, fragt nicht, ob man sie siehet“ (“Sem por quê”: A rosa é sem por quê: floresce, por florescer, / não olha p’ra seu buquê: não pergunta, se alguém a vê). Silesius, A. Il peregrino cherubico. Milano: Pauline,1989, p. 156. Cf. também HARADA, H. Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana. Bragança Paulista: Edusf/IFAN, 2006, p. 170-180; HARADA, H. Em comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas. Bragança Paulista / Curitiba: EDUSF / Faculdade São Boaventura, 2003, p. 59-74. [4] “Nós somos plantas,/ - queiramos ou não / de boa mente o / admitir -;/ devemos da terra / nos erguer pelas raízes, / para poder florir nos céus / e trazer frutos” (Johann Peter Hebel) – Apud: HARADA, H. Coisas, velhas e novas: à margem da espiritualidade franciscana. Bragança Paulista: Edusf/IFAN, 2006, p. 178. [5] LEÃO, E. C. Aprendendo a pensar I: o pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 248-252. [6] HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: 1987, p. 139. [7] HEIDEGGER, M. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, vol. 10 1994, Berlim: Duncker & Humblot, p. 10. [8] HEIDEGGER, M. “O caminho do campo” (1949). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, n. 4, 1977, p. 47. [9] HEIDEGGER, M. “O caminho do campo” (1949). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, n. 4, 1977, p. 48. [10] Harada, frei Hermógenes. De estudo, anotações obsoletas: a busca da identidade humana e franciscana. Petrópolis: Vozes / Bragança Paulista: Universidade São Francisco & Instituto Franciscano de Antropologia / Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, 2009, p. 195.
Para pensar, conversar e partilhar:
1. O que significa a afirmação: “O pensamento de Francisco é radical?”
2. Qual o papel ou sentido dos feitos ou atos de São Francisco e de seus companheiros nas Fontes Franciscanas?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes.
Continue bebendo do espírito deste tema:
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O Pensamento de São Francisco de Assis e sua radicalidade
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Professor Marcos Aurélio Fernandes
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Próximo Encontro: 21º Encontro - O pensamento de São Francisco de Assis e as Fontes Franciscanas - 2ª Parte - Um pensamento poético, cantante e agradecido
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