18º Encontro (05/06/21) - São Francisco de Assis, teólogo: o perfume e o sabor da linguagem de Deus
- Frei
- 6 de jun. de 2021
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São Francisco de Assis, teólogo:
o perfume e o sabor da linguagem de Deus
Introdução
Em nosso último Encontro (17º) dissemos que São Francisco foi um teólogo no sentido original da palavra. A afirmação pode parecer um tanto exagerada e esconder a vaidade de quem procura exaltar seu Santo só para receber honra e glória (Ad 6). Como teólogo se ele mesmo se dizia ser uma homem simples, vil e caduco (CO 3)? No entanto, a afirmação guarda uma herança preciosa para a Igreja e para toda a Humanidade. Por isso, hoje vamos retomá-la perguntando-nos, de novo: Francisco, teólogo? Para encaminhar nossa questão, comecemos analisando o sentido de Teologia.
1. Teologia como sapiência, degustação de Deus
Já os antigos gregos falavam em Teologia. Para eles Teologia era a ciência que nascia deles, os pensadores, os teólogos, como e enquanto investigavam os deuses ou o divino que pulsa e se manifesta nas pessoas. No mundo cristão, porém “Teologia” tem a ver, antes, com a ciência que nasce da experiência da fé. Por isso, mais que uma ciência ela é uma sapiência, no sentido de “saboreação” (do verbo saborear), degustação de Deus. Por isso, o genitivo “da” fé, aqui, deve ser entendido em duplo sentido. Primeiramente, significa que a Teologia se ocupa com a fé, que seu objeto de estudo é o dom da fé. Mas, significa, também, que ela gera, nutre, faz florescer e amadurecer a vida, a fé do crente.
Isso significa que, no Cristianismo, há um “anterior”, um a priori, um “pré-sub-posto”, “algo” que de antemão se põe debaixo, na raiz da Teologia e do teólogo. Sem esse anterior não existe nem uma e nem outro. Esse pressuposto ou anterior é o dom do Logos, da Palavra de Deus ou que é Deus, que fala, se revela, se dá a conhecer, como lemos no início da Carta aos Hebreus: Muitas vezes e de modos diversos, falou Deus outrora a nossos pais pelos profetas. Nos últimos dias nos falou pelo Filho... (Hb 1,1s).
Nesse falar, Deus se nos tornou conhecido (nascido), se nos anunciou, se abriu a nós. Por isso, a fé é uma via de duas mãos: Deus que crê no humano, se confia, se entrega e se doa todo, inteiramente a nós; e nós, da nossa parte, ela é a graça que nos possibilita a, também nós, dar uma resposta a essa graça, uma resposta também de acolhida, entrega e doação. O sumo dessa autorrevelação de Deus é o Verbo se fazendo carne:
No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No princípio estava ele com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada se fez de tudo o que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas mas as trevas não a compreenderam (...). Era esta a luz verdadeira, que ilumina todo homem, que vem a este mundo. Ele estava no mundo, e por ele o mundo foi feito, mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Mas, a todos que o receberam, deu-lhes o poder de virem a ser filhos de Deus, àqueles que creem em seu nome. Esses não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo se fez carne e armou tenda entre nós; vimos sua glória, a glória de Unigênito do Pai, cheio de graça e verdade (Jo1,1-5.9-14).
2. Em Francisco, a Palavra de Deus pôde criar uma Teologia, um teólogo
A Teologia é, assim, a percussão e a repercussão da História do mundo no mistério da Linguagem, da fala, da obra de Deus em Cristo, por Cristo e com Cristo. São Francisco de Assis foi um homem que fez a experiência radical de uma nova parusia escatológica do mistério de Cristo. Nele, tomou corpo uma nova experiência do vigor da Linguagem do Sim em que o Cristo histórico encarnou sua historicidade[1]. Na sua existência, renascida e aberta pela obediência da fé, a Linguagem do Sim de Cristo encontrou uma ampla, profunda e originária sonância e ressonância. No dizer de São Boaventura, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original (LM 8,1); foi um homem do Espírito, isto é, um homem que viveu sua existência entoado com e pelo Sopro de Cristo (“Pneuma Christou”, diz o grego), o “Espírito Santo”. A existência de Francisco se tornou, assim, pleno Serviço da Palavra (“diakonía tou lógou”, diz o grego) como ele mesmo o diz na Carta aos Fiéis.
As Legendas são muito pródigas em mostrar o quanto pelos atos (Cf. I Fioretti) e pelas palavras, faladas e escritas, Francisco deixou ressoar a Linguagem do Sim do mistério de Cristo, sua Mensagem jovial, seu Evangelho, com toda sua força de reunião católica, isto e, universal. Nele, a comunhão originária de todos os seres humanos e de todos os demais seres criados brilha na dinâmica de uma união amorosa, fraterna, acolhedora das diferenças; uma convivência em que a gratuidade é o tom fundamental dos relacionamentos com o outro e para o outro no ser, jamais no ter, no apropriar-se! No cerne dessa Mensagem, Francisco captou o anúncio do mistério da Pobreza, abraçada na existência mortal de Jesus Cristo, em seu nascimento, em sua vida oculta e pública, em sua paixão e morte de Cruz e no santíssimo sacramento do Corpo do Senhor.
Nesse mistério da Pobreza do Verbo encarnado, crucificado, eucaristizado Francisco aprendeu que só o desprendimento de todo e qualquer apego pode dar ao homem a serenidade jovial e a jovialidade serena nos usos das coisas e nos relacionamentos com o outro, quer com o outro de si, quer com o outro dos outros. Francisco foi, como a Samaritana do Evangelho, alguém que, junto à fonte de Cristo, conheceu o “Dom de Deus”, qual “água viva” que jorra para a vida eterna (Jo 4,10; 7,37-39). Enquanto homem em quem a Linguagem do Sim de Deus em Cristo, Verbo encarnado, encontrou sonância e ressonância, e ao qual o Sopro desta Linguagem vivificou e iluminou, concedendo-lhe a suma afinação e harmonia com esta Linguagem, Francisco foi sumo teólogo, sim!
Teologia é, dizíamos, ciência e sapiência da fé. Por isso, teólogo é, antes de tudo, aquele que, pela afeição obediente à graça da fé, deixa ser e acontecer nele a Palavra da revelação de Deus em toda sua sonância e ressonância; é aquele que funda sua existência na fé de Deus, isto é, na fidelidade da doação do Seu amor, que se revela em sua sumidade, na Encarnação, na Cruz de Jesus Cristo e na Eucaristia. A fé do cristão se funda, pois, na fé de Cristo, que se funda na fé de Deus Pai.
A fé gera, nutre, faz florescer, frutificar e amadurecer, por assim dizer, uma “ciência” especial que desvela o já desvelado na fé, isto é, na revelação de Deus em Jesus Cristo, o Verbo encarnado e crucificado. Esse desvelamento tem verdadeiro caráter de iluminação. Assim, do encontro com o Crucificado de São Damião, diz a Legenda, Francisco saiu todo iluminado (LTC 13).
O conhecimento da fé é, pois iluminação gratuita. Gratuita porque não resulta do empenho do homem, mas da graça do encontro. E, no entanto, por ser gratuita, não significa que seja barata. Pelo contrário, ela requer do homem a máxima doação e a máxima conquista de sua liberdade. A fé é o dom de uma conquista! Todavia, a iluminação da fé não se dá por causa do empenho humano. E, no entanto, não se dá sem o empenho humano.
Francisco foi um homem que soube receber tal iluminação de maneira a mais excelente. Sua iluminação não foi simplesmente a dos querubins. Foi mais do que isso! Foi “seráfica”, dos serafins, isto é, das criaturas celestes mais próximas do Mistério Trinitário. Seus hagiógrafos são muito pródigos em denominá-lo, insistentemente, com este belo título: “Seráfico Pai”, “Seráfico Patriarca!” Por isso, segundo São Boaventura, sua ciência e a sua sapiência seráficas emanam do fogo do Espírito do Amor, no mais alto grau. Por isso, de novo, devemos dizer que ele foi, sim, um sumo teólogo.
Mas a fé não é somente uma experiência da audição e da visão espiritual. É também uma experiência do olfato, do tato e do paladar espirituais. Audição e visão são sentidos da distância. Olfato, tato e paladar, porém, são experiências da proximidade, melhor, do contato imediato.
A fé concede ao homem o olfato espiritual. É significativo que São Francisco, na segunda recensão da Carta aos Fiéis se apresente, dizendo: Sendo servo de todos, tenho de servir e administrar a todos as odoríferas palavras de meu Senhor.
Ultimamente, durante a pandemia da Covid 19, muitos que contraíram a doença perderam o olfato e o paladar, ao menos temporariamente. Podemos dizer que, espiritualmente, muitas vezes também nós ficamos privados do olfato e do paladar espirituais. Não sentimos o perfume nem o sabor das palavras de Cristo. Nas Escrituras Sagradas e também na Liturgia, com toda a sua Teologia simbólica, muitas vezes se fala do perfume agradável dos sacrifícios.
Pensemos também nos incensos, que, queimados, exalam seus perfumes e sobem ao alto, juntamente com o louvor dos homens. Estas resinas que, queimadas, emanam fumaça e perfume, evocam a presença do sagrado, do divino, do infinito. O incenso tem a função simbólica de elevar a prece dos mortais a Deus, como a fumaça sobe ao céu. Por isso, as árvores que produzem estas resinas foram, às vezes, tomadas como símbolos do Cristo. Lembremos que um dos magos, no evangelho, oferece incenso ao Menino recém-nascido de Maria, evocando sua função sacerdotal.
A sutileza dos arômatas fala de uma presença espiritual que toca profundamente a alma humana. O perfume que alguém deixa nas coisas que lhe pertenciam, mesmo na sua ausência, também fala de uma presença na ausência. Os perfumes significam, também, a emanação do divino, a manifestação da perfeição espiritual. Por isso, na espiritualidade cristã, as virtudes cheiram bem; já os vícios, cheiram mal.
Assim, a graça do encontro com Cristo nos possibilita não apenas segui-Lo, mas também correr atrás de seus perfumes, como a amada do Cântico dos Cânticos de Salomão e sentir-nos tomados por seus abraços. Por isso, na Escola Franciscana, “Teologia” é uma “cognitio Dei experimentalis”, um “conhecimento experimental de Deus”. O Deus da Teologia de Francisco e da Teologia dos franciscanos é um Deus da experiência, do imediato corpo a corpo, do encontro.
Por fim, pela graça, ao homem é dado também saborear os sabores do alimento espiritual que é Cristo. É por isso que Alexandre de Hales, na sua Suma teológica, ao perguntar se a Teologia é ciência, responde que, mais do que ciência, baseada na visão, a Teologia é sapiência. “Sapientia”, em latim, vem de “sapere”, que quer dizer ter sabor de, ou saborear. O teólogo é aquele que saboreia Deus. Sapiência divina é aquilo que nutre o espírito humano. Ela oferece o seu banquete. Bem-aventurado aquele que com ela e dela comunga e que saboreia o seu pão, o seu vinho, e todas as delícias que ela lhe prepara. Por isso e com razão devemos dizer que Francisco de Assis, na medida em que foi um homem sapiente, isto é, um homem que saboreou o banquete oferecido pela sapiência divina, por Cristo, foi sumo teólogo.
Conclusão
Francisco foi, pois, um teólogo, alguém que sabia de Deus e sabia Deus com um saber feito de experiência. Sabia mais com a experiência do coração do que com as considerações da razão. Poderíamos colocar na boca de Francisco aquilo que encontramos escrito pela pena de Agostinho:
Que amo eu, quando vos amo? ... Amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço... abraço do homem interior, onde brilha para a alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz, eis o que amo, quando amo meu Deus (livro X das Confissões).
Em Francisco, a Teologia se faz contemplação e mística: uma experiência que o homem interior faz do espírito, uma experiência carnal, sensível, experimental, cordial.
Temos, pois, razões mais que suficientes para responder à pergunta inicial: sim, Francisco foi um teólogo, um grande teólogo, um homem que soube Deus, com um saber feito de experiência! Mais que um ciente de Deus, um sapiente, um “saboreador” de Deus!
Concluímos com este testemunho:
Embora este Bem-aventurado homem não fosse favorecido por nenhum estudo científico, contudo, aprendiz das coisas que são do alto, da sabedoria de Deus e iluminado pelos fulgores da luz eterna, não era pouco o que entendia das Sagradas Escrituras. Sua inteligência purificada penetrava os segredos dos mistérios e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor (2C 102).
CRISTÃOS, TEÓLOGOS HOJE
Nosso Papa Francisco nos exorta a que tomemos São Francisco como modelo de nossa evangelização. Para isso, diz que devemos ser “Evangelizadores com Espírito”. E ele mesmo explica:
Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na oração, sem a qual toda a ação corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus (EG 259).
[1] Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 200.
Para pensar, conversar e comentar:
1. Como entender que Francisco é um teólogo em sumidade?
2. Qual a atualidade, para a evangelização de hoje, um leigo-secular, quase analfabeto”, como Francisco, ir-se tornado um teólogo tão profundo e expressivo?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes.
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Professor Marcos Aurélio Fernandes
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