16º Encontro (22/05/21) - São Francisco de Assis e a irrupção de seu carisma na história
- Frei
- 21 de mai. de 2021
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São Francisco de Assis e a irrupção de seu carisma na história - Parte 2
No Carisma franciscano, o vigor originário do Evangelho
No último Encontro (15º), vimos como o Carisma franciscano irrompeu na História. Hoje, vamos voltar um pouco atrás para ver a origem, a fonte do vigor dessa irrupção.
Em seu Testamento, Francisco recorda com muita alegria, gratidão e devoção:
E, depois que o Senhor me deu Irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho. E eu o fiz escrever com simplicidade e com poucas palavras e o Senhor Papa mo confirmou.
Através desse testemunho, vemos que no nascedouro da Vida franciscana, como já vimos nos Encontros anteriores, estão as palavras do Evangelho que tratam do seguimento de Cristo e da missão dos Apóstolos.
Em 1209, Francisco e a primeira Fraternidade, viajam a Roma a fim de procurar o Papa para que lhes aprovasse a Regra. Inocêncio III, depois de alguma resistência, aconselhado pelos Cardeais, aprovou o propósito de Francisco, isto é, a Forma de Vida evangélica e apostólica que na história passou a ser chamada de “Proto-Regra”. Eram poucas frases tiradas do Evangelho do Envio dos Apóstolos, escritas com simplicidade e poucas palavras (Testamento 15).
Nascia assim, oficialmente, na Igreja e para o mundo, um novo modo de viver ou existir: a Vida ou Existência franciscana. Nela esconde-se o a priori do Franciscaníssimo, isto é, daquilo que vem antes, a força originária e que costumamos chamar de carisma fundacional. Trata-se, portanto, do evento fundante, originário, da condição de possibilidade do ser-franciscano, sem o qual nem mesmo Francisco seria o Francisco que ele foi. Frei Hermógenes Harada, a propósito, explica muito bem essa força originária:
Carisma, em grego khárisma significa dom, presente, graça. A palavra grega χάρις, kháris, de onde deriva khárisma, significa esplendor, graça como beleza, encanto, fascínio, isto é, a graciosidade e também a gratuidade.
Harada, depois de mostrar que o carisma tem o modo de ser do vigor, da alegria, do fascínio, nascidos do enamoramento da pessoa que vem ao nosso encontro, diz que assim é Jesus Cristo para nós; que Ele é a bondade do Amor de Deus, a Misericórdia, a graça, a graciosidade, a beleza da SS. Trindade no seu Mistério se difundindo em todas as criaturas. E, então nosso mestre continua esclarecendo:
Jesus Cristo, o Deus Encarnado é o khárisma, a concreção, a obra consumada, o dom desse Belo Amor. Nesse sentido, Maria, a Virgem e Mãe, é chamada na antiga liturgia latina de Mãe do Belo Amor. Quando a presença e atuação, a vitalidade de Jesus Cristo no seu Seguimento, impregna um dos seus discípulos, e o faz incandescente no seu amor, a ponto de ele se tornar início de um movimento concreto de Seguimento em outras pessoas, dentro do mesmo estilo de sua vida, se chama Carisma fundacional. Fundacional, por que funda, inicia e fundamenta, a partir da força que o move, uma Ordem ou Congregação.
Finalmente, Harada nos dá essa bela e importante conclusão:
O carisma fundacional é, pois, participação no ser de Jesus Cristo, da epifania e diafania da kháris que é Deus, Uno e Trino. Nesse sentido, a existência franciscana é ontologicamente anterior e mais fundamental do que a experiência pessoal e privativa de um indivíduo chamado Francisco ou de indivíduos ou de grupo de indivíduos que seguem a Francisco.
Assim, Francisco atingido por essa Graça (Cháris, que é Deus), torna-se um homem novo, portador de uma radical novidade. Ele é novo, como o Evangelho. Essa novidade se expressa como simplicidade e humildade, como pobreza, numa palavra, como a minoridade do “ser menor”. Nada, porém de romantismo, pois a pobreza de Francisco, como caminho do “ser-livre-para-o-Evangelho”, tem um certo quê de selvagem, de indomável[1], um quê de cavaleiro que luta corpo a corpo com o inimigo.
Mas, em que consiste a novidade do Evangelho? Consiste, pura e simplesmente, na graça de trocar de identidade: de vir a ser homem de Deus, filho de Deus. Por isso, o propósito de Francisco é de ser e fazer-se cada vez mais livre para Deus poder realizar nele essa graça. É o que costumamos chamar de “liberdade do Evangelho” ou “liberdade evangélica”; liberdade que nasce do Evangelho e para o Evangelho. Assim, o que está em jogo no Evangelho, a “Altíssima Pobreza”, é seguir Jesus Cristo em sua “exinanitio”, em sua “kénosis”, esvaziamento, aniquilação. Desse modo, a Regra Franciscana, o Ser-Menor, o Ser-fraterno, o Ser apostólico, é caminho que se faz sempre a dois: Jesus Cristo, com sua niilidade e seu seguidor com sua entrega a Ele.
Nesse sentido, a Forma de vida abraçada por Francisco - o Evangelho, Jesus Cristo - é ôntica e ontológica, isto é, toca na raiz do ser do homem e do próprio Deus. Confrontado com essa sua raiz, o homem, Francisco com sua Forma de vida, vê e experimenta sua niilidade (“nadidade”: ser nada). Eis a nova “ciência” a nova “sabedoria” de Francisco! A ciência, a sabedoria da Cruz! Inteiramente oposta à sabedoria do mundo, da cavalaria, etc., A partir de então, torna-se seu valente cavaleiro e defensor, principalmente contra todos aqueles que querem atenuá-la, trocá-la ou substituí-la. Conhecer essa ciência é deixar-se tomar e possuir por ela; é deixar-se transformar em novo homem, em novo Jesus Cristo. É co-nascer com Ele. É abraçar a fraqueza e a loucura do Cristo crucificado como poder e sabedoria de Deus.
Francisco sempre foi um homem radical. Por isso, seu conhecimento chegava sempre até a raiz de todas as coisas. E a raiz de todos os entes é em si e por si o nada[2]. Assim, na raiz da minoritas (minoridade) jaz um conhecimento que não é mais um conhecimento no sentido usual de informação, mas o próprio ser e a própria vida: o conhecimento do nada.
No entanto, esse niilismo ou niilidade nada tem de negativismo, de pessimismo. Isso porque seu modo de ser é de estar inteiramente aberto para receber o ser de cada criatura, principalmente de seu Criador. Desse modo, ele se torna co-nascimento com o nada – com aquele nada do qual todas as coisas surgem. Assim, Francisco, em seguindo Jesus, o Cristo da Encarnação, o Cristo crucificado, nadificava-se, sempre de novo e nascia sempre de novo (Cf. Jo 3 o Diálogo de Jesus com Nicodemos).
Em seu abraço a Cristo ou de Cristo crucificado Francisco se experimenta radicalmente como nada. Ele não tem substância, não tem peso, nenhum fundamento, nenhuma tradição, nenhum mérito; constantemente, a cada in-stante, é vazio e abertamente nada. Nessa sua experiência ele toma conhecimento (ciência, sabedoria) de sua raiz mais real, verdadeira e profunda! E nessa sua nova ciência ou sabedoria faz-se, então, um feliz e jubiloso acolhedor do seu “ser criatura”.
Por isso, este nada não destrói, não aniquila, não desertifica. Pelo contrário, dá a tudo vigor, frescor, alegria de ser. Na luz deste nada tudo aparece na riqueza de sua identidade e diferença! Tudo é graça e gratidão[3] que explode num encantador Laudato Si, mi Signore! (Cântico do Irmão Sol).
É o Evangelho, a Forma que in-forma, isto é, essencializa a vida do franciscano. É o que estrutura sua existência desde dentro, desde o seu âmago, desde seu íntimo mais íntimo. É o coração, o centro palpitante, de sua vida: o que lhe imprime cadência, ritmo.
Para Francisco, Evangelho e Altíssima Pobreza são o mesmo. É o modo de ser de Jesus Cristo, do próprio Deus. No fundo, o Evangelho que Cristo anuncia e testemunha é o ser do próprio Deus que é Pobreza. Pobreza que adquire, também, o sinônimo de liberdade. Sendo inteiramente pobre, Deus é também inteiramente livre. Nada o prende. Por isso, o Evangelho é sempre uma exortação à liberdade ou à libertação: libertar o homem, sempre de novo, das dependências de ter e não ter para a liberdade de ser. É o que Jesus sempre diz: quem quer salvar sua vida tem de perde-la, mas quem a perde por amor do Cristo e do Evangelho a salva. É morrendo, sempre de novo, que se alcança a vida eterna. É também perdendo Deus, como Cristo na Cruz, que o homem O salvaguarda em seu mistério.
Assim, a partir do mistério dessa Boa Nova a vida humana não é mais “vida natural”, meramente humana. É vida “sobre-natural”. Assim, a Regra leva o seguidor de Cristo a criar uma “segunda natureza”, um modo de ser cunhado e forjado desde os embates que o ser-livre e responsável gera: um modo de ser que se transforma em morada do Carisma franciscano.
A Regra passa a ser, assim, o documento que guarda e confere o vigor que ergue, faz caminhar e direciona a Vida para a liberdade do Evangelho. Nesse sentido, ela é um projeto de vida; um lance, que abre um tempo-espaço de viver. Como projeto supõe um olhar projetivo, inventivo, de possibilidades de viver. Por isso, a responsabilização pela Vida requer continuamente a capacidade humana de pôr pro-pósitos que lançam o homem para o futuro. O projeto de Francisco, compartilhado com seus companheiros, porém, é uma retomada do projeto do Seguimento de Jesus Cristo, que funda a Igreja em sua universalidade; um projeto universal, na medida em que essa Fraternidade ou Ordem se abre para propor aos homens todos a dinâmica da fraternidade universal, proporcionada pelo vigor da caritas (caridade = amor-gratuidade). É o que o Papa Francisco ressalta, hoje, com sua encíclica Sobre a Fraternidade e a Amizade Social: “Fratelli Tutti”.
Concluímos com este belo comentário de Frei Hermógenes Harada:
No começo, Francisco pensava que o projeto era só dele. Descobriu, porém, que não estava sozinho! Começou, assim, a entrar no grande projeto da Humanidade que é a Fé cristã; que, o que estava buscando, era universal: algo que desde Jesus Cristo, até ele, milhares de pessoas tinham buscado, cultivado, dando a própria vida. Nessa constante passagem do natural para o novo projeto de vida, Francisco "recebeu" companheiros. Começou, então, a ter uma nova pertença: o Pai de Jesus Cristo, o próprio Jesus Cristo, os apóstolos, a Igreja... viu que todo o Povo de Deus estava caminhando naquele ideal que ele tinha escolhido. Descobriu que aquilo que parecia um projeto individual era muito pessoal, muito engajado, mas nada individual-particularista. Era um ideal enorme da Humanidade nova em Jesus Cristo. Por isso, foi até o representante desse Povo de Deus, o Papa. Não reparou se ele era bom ou ruim como pessoa, mas simplesmente pediu a aprovação para o seu gênero de vida. Por isso, quando São Francisco diz: "A Regra e a Vida dos Frades Menores é esta", está dizendo: "Embala-te! Entra nessa enorme corrente chamada Vida cristã, que vem desde Jesus Cristo até nós". É essa maneira de entender o humano que está por trás de todo o texto da Regra[4].
[1] Harada, Hermógenes. “A ideia do franciscanismo”. In: Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval. Vol. 11, n. 2, Jul./Dez. 2014, p. 111. [2] Idem, p. 131. [3] Idem, p. 135. [4] Harada, Hermógenes. Comentário à Regra Bulada em paralelo com a Regra não Bulada. Texto não publicado, s.d., p. 4.
Para pensar e comentar:
1. O que se entende por Carisma fundacional franciscano? Por que se chama assim?
2. Qual sua importância para a Ordem Franciscana, para a Igreja e para a Humanidade toda?
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes.
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