11º Encontro (17/04/21) - São Francisco, um convertido por excelência - Movido pela têmpera da ...
- Frei
- 16 de abr. de 2021
- 8 min de leitura
3º Estágio - DA CONVERSÃO CRÍSTICA (continuação 2): MOVIDO PELA
TÊMPERA DA JUSTIÇA DIVINA, FRANCISCO FAZ-SE
IDIOTA, SIMPLES E TRABALHADOR
Como vimos, anteriormente, o encontro com o Cristo Crucificado foi tão marcante que Francisco saiu dele transformado, por dentro e por fora. Por isso, chamamos essa transformação de “Conversão crística”. A partir de então, começa uma nova vida, uma nova existência. Francisco deixa de ser filho de Pedro Bernardone e passa a ser e a viver como filho do Pai do Céu.
No encontro de hoje, através do capítulo VII da Legenda, vamos ver mais uma ressonância ou floração desta graça, assim indicada no título: Do máximo trabalho e aflição em favor da reparação da igreja de São Damião
A lógica dessa nova manifestação da existência crística de Francisco é muito simples. Se ele havia se libertado do mundo e do pai para ser de Deus, tinha que ocupar-se com as coisas de Deus, consagrar-se a Ele. Sinais, entre outros, dessa mudança, que poderíamos chamar também de vocação-missão, são a troca de veste e a reparação da igrejinha de São Damião. Em vez das vestes de cavaleiro, agora veste o hábito de eremita, isto é, de homem de Deus; em vez de servir à cavalaria começa a reconstruir a igrejinha que estava desmoronando.
A Legenda abre o capítulo dizendo que Francisco começa a aplicar-se à justiça divina... libertando-se para o serviço divino de todos os modos possíveis.
Olhemos para cada um desses elementos começando pelo novo feito de Francisco indicado pelo verbo aplicar-se. Em vez de aplicar-se, o latim usa o verbo “vacare” que, literalmente, significa estar vazio, vacante, vago, livre ou melhor liberado, libertado para, bem como, ter tempo para; e, daí: dedicar-se a, aplicar-se a, enfim: consagrar-se a. Agora ele está começando a viver como um consagrado de Deus. Uma consagração que vem de Deus.
Além de consagrar-se, Francisco, começa também a libertar-se para o serviço divino. O latim diz que ele se emancipava. Na antiguidade romana esse verbo era usado para designar o escravo que se tornava cidadão, um homem livre, competente ou capaz de orientar sua vida, no direto e no dever; portanto, capaz de tomar em suas próprias mãos o destino de sua vida. Francisco liberta-se, assim de toda e qualquer tutela ou influência ou “escravidão”, seja da família, seja da opinião pública, da moda, do “todo o mundo”, a fim de ser ele mesmo, nesta sua nova existência de filho ou servo de Deus.
Nesse seu novo serviço, diz ainda a Legenda, Francisco se libera por todos os modos possíveis. Isso significa que o ardor, a paixão que nasceu em seu coração por essa nova vida era tão forte que não se dava tréguas. Em tudo e com todos, em cada acontecimento, pessoa ou criatura estava sempre empenhado em consagrar-se à justiça divina.
Por tudo o que veio acontecendo, o sentido de justiça divina, aqui, só pode estar relacionada à experiência do encontro com o Crucificado de São Damião que o convoca para a restauração de sua igreja. Com essa experiência Francisco toca no coração de Deus que, em vez de vingar-se do homem malvado e cruel, entrega-lhe até à morte e morte de Cruz seu Filho amado. Uma justiça, portanto, que aos olhos do homem é uma ”in-justiça”, uma “Não-Justiça”. Lembremos a reclamação do filho mais velho da parábola de Jesus: o pai aceitara de volta e com festa, sem nenhuma punição, o filho que esbanjara todos os seus bens, numa vida devassa.
Assim, em vez de uma justiça comedida, “justa”, uma justiça generosa, superabundante; uma justiça que imita a justiça maior do Pai, que é amor e misericórdia sem discriminações e sem restrições, condições ou limites, que se estende até mesmo aos que nos são contrários, inimigos e perseguidores: amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus. Pois Ele faz nascer o sol para bons e maus e chover sobre justos e injustos (Mt 5, 45); uma justiça que procura ser perfeito como o Pai celeste é perfeito (Mt 5, 48).
Uma vez livre para esta medida superabundante da justiça divina, Francisco passa a viver uma vida no fervor do espírito divino (LTC 21,11). Isto quer dizer: ele fica ébrio do divino amor. Francisco passa a ser um homem pneumático, isto é, inebriado, movido pelo Sopro Sagrado de Deus, um homem que vibra na sintonia do amor divino; um homem tomado pelo fervor, pela alegria, pelo louvor de Deus; um homem que prova o sabor do vinho da sabedoria divina. E assim, conduzido por esta sapiência, que é o conhecimento experiencial de Deus, que dá gosto ao viver humano, é levado ao êxtase, isto é, à saída de si.
Por e para receber esta sapiência divina, Francisco esvazia-se de toda a sabedoria da carne e do mundo para assumir o modo de ser do idiota e simples (LTC 21,8), que passa a ser uma das marcas mais expressivas da nova existência de Francisco. Ele mesmo, dirá, depois, em seu Testamento: Os que vinham para receber esta vida, davam aos pobres tudo o que podiam ter (...). E éramos idiotas e súditos de todos. Também na sua “Carta a toda a Ordem”, se denomina ora homem vil e caduco, ora ignorante e idiota.
Geralmente entendemos idiota no sentido negativo, como alguém meio abobado, estúpido e sem autonomia. Na Idade Média, equivalia a ser um “João Ninguém”, alguém que era “pau para toda obra”, podendo-se contar com ele para os serviços mais humildes e “baixos”. Nesse caso, o idiota é o “vilis”, isto é, o vil, o vilão, no sentido de habitante da vila, em oposição ao habitante do castelo, o castelão, o nobre.
No entanto, em tudo isso, mais do que uma condição social, política, cultural, precisamos ler, algo de uma condição espiritual, crística, tão magnificamente bem descrita nesta passagem do profeta:
Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele. Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniquidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas (Isaías 53, 3-5).
Talvez, essa seja a visão mais precisa que Francisco intuiu de Cristo e que o apaixonou ao ponto de também ele tornar-se um “outro Cristo crucificado”.
Na Legenda, Francisco é também chamado de simples. Simples quer dizer sem enfeites, sem afetação, sem empáfia; não simulado, não mascarado, não complicado, não difícil de lidar. É, em vez de duplo, ser um, uno. É singeleza: ser o que se é, terra a terra. É ser vil como o céu e a terra, isto é, sem chamar a atenção para si. É colocar-se como menor, como súdito e servo de tudo e de todos.
Este modo de ser terra a terra aparece, ainda, no modo de Francisco ser, de trabalhar e de enfrentar as muitas aflições que lhe advinham da resistência, da oposição, do desprezo, da gozação por parte de familiares, conhecidos e concidadãos. É o aprimoramento daquele processo de “vencer-se a si mesmo” que ele já assumira anteriormente, por ocasião do beijo do leproso. Agora ele radicaliza esse procedimento procurando viver coagido, forçado pela necessidade (LTC 22,5).
Francisco, que era antes um homem de costumes delicados, agora, voluntariamente, se priva do conforto. Começa a se fazer pobre com os pobres. E, nisso, ele se apresenta tocado pelo exemplo de Jesus Cristo. Por isso, diz de si mesmo: Importa que vivas assim, voluntariamente, por amor daquele que, nascido pobre, viveu paupérrimo no século e permaneceu nu e pobre no patíbulo e foi sepultado em sepulcro alheio (idem).
A mudança do conforto para a necessidade, do prestígio para a incompreensão e até a maldição, da nobreza de costumes para a vileza, tudo, enfim, faz parte desta nova conversão: a conversão crística, uma mudança de sabor, de gosto de viver. Mas, na raiz de tudo isso está a graça de Deus que lhe mudara o amargo em doce e que o confortara de tantas maneiras (LTC 22,11). Exemplos desse conforto divino podemos ver na acolhida do sacerdote pobrezinho de São Damião, no pobre que o abençoava quando seu pai o amaldiçoava, no bispo que o orientava. Mas, Francisco na busca de sua nova existência - o tesouro escondido - não se dava tréguas. Por isso, em fervor de espírito dizia: Venderei bem caro este suor ao meu Senhor! (LTC 23,8).
Com este modo de ser, Francisco já estava reparando a Igreja, não só a capela de São Damião, onde, seis anos mais tarde, viriam morar as Damas Pobres e virgens consagradas, seguidoras de uma mulher, Clara, que era da mesma têmpera de Francisco em todo o seu engajamento pelo Evangelho, pela Dama Pobreza.
Em tudo isso, é admirável como Francisco caminha a passos largos, firmes e joviais, neste caminho de sua nova conversão. Uma conversão que nasce da graça do encontro com o Crucificado que lhe transformou radialmente o coração, a mente, o espírito. Sem essa raiz, toda reforma se defasaria em deformação. Por isso, ele se mantinha simples, idiota, trabalhador e engajado até o pescoço no seguimento e na imitação do Cristo pobre e crucificado: a Justiça divina.
A TÊMPERA DA JUSTIÇA DIVINA, HOJE
Francisco entendeu a Justiça divina como o viver de Cristo crucificado que, sendo Senhor se faz pobre, simples, idiota e trabalhador; que, em vez de destruir, reforma, em vez de desanimar diante das perseguições, enche-se de amor divino, em vez de vingar-se oferece perdão e misericórdia. Essa é a justiça nada justa para o mundo e para o homem do mundo, que a Igreja, hoje, volta a anunciar com fervor e insistência, como o fez, primeiramente, o Papa São João Paulo II com a encíclica Dives in misericórdia, e, ultimamente, o Papa Francisco com a encíclica Misericordiae vultus:
A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja « vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia ». Talvez, demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa. Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer. Todavia, sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança (MV 10).
Para pensar, conversar e compartilhar
1. Como Francisco compreende e vive a Justiça divina e como ela se relaciona com esta nova conversão de Francisco: a conversão crística?
2. Onde está a raiz da dificuldade do homem atual de aceitar a Justiça divina?
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
Continue bebendo do espírito deste tema:
- indo ao texto-fonte: Conversão Crística: Movido pela têmpera da injustiça, Francisco faz-se idiota, simples e trabalhador
- postando seus comentários;
- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - São Francisco, um convertido
por excelência: Conversão Crística: Movido pela têmpera da injustiça, Francisco faz-se idiota, simples e trabalhador
Inscreva-se e curta nossos vídeos.
Próximo Encontro: Da conversão evangélica
#espiritofranciscano #estudosfranciscanos #fontesfranciscanas #freidorvalino #freidorvalinofassini #professormarcosfernandes
Comments