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111º Encontro - 20/04/24 - 23ª Adm - Da humildade

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 20 de abr. de 2024
  • 11 min de leitura

DA HUMILDADE



Introdução 


Francisco retoma, aqui, o tema da humildade, exposto, já em parte, nas Admoestações XVII e XIX, quando falou do humilde servo de Deus. Se o faz de novo é porque sabe que estamos diante de uma virtude de suma importância para uma boa condução do discipulado cristão. De fato, sabemos, através de suas legendas, o quanto estimava essa virtude, a ponto de havê-la estabelecido como fundamento do edifício de toda a sua Ordem e da vida de cada frade (Cf. 1C 38).


A importância da humildade em nossa vida pode ser percebida quando olhamos as consequências de sua ausência, isto é, quando nos deixamos conduzir pelo caminho do seu oposto: o orgulho, a soberba. Facilmente seremos levados à queda como aconteceu com as criaturas celestes, os anjos maus, bem como com o primeiro homem e tantos outros. Ao mesmo tempo, também e igualmente, retoma o tema da correção, que expôs na Admoestação anterior, a XXII. Vamos ao texto:


1Bem-aventurado o servo que se acha tão humilde no meio de seus súditos como se estivesse entre seus senhores. 2Bem-aventurado o servo que permanece sempre sob a vara da correção. 3Servo fiel e prudente (Cf. Mt 24,45) é aquele que, em todas as suas ofensas, não tarda em punir-se interiormente pela contrição e, exteriormente, pela confissão e satisfação da obra.


Não é difícil entrever nessas poucas frases de Francisco o exemplo do próprio Cristo e suas exortações:Eu estou no meio de vós como aquele que serve (Lc 22,27) e “Aquele que entre vós quiser ser o maior, seja o vosso servo e aquele que quer ser o primeiro, faça-se escravo de todos (Mc 10,43-44). 



1. Bem-aventurado o servo (1)


De novo, Francisco começa com essas duas palavras tão caras e significativas para a espiritualidade cristã: bem-aventurado e servo. Não é demais retomar nossas considerações assinaladas nos capítulos anteriores, acenando, agora, para novas facetas desta rica e insondável proposição evangélica.


Bem-aventurado é tradução do latim beatus e que, por isso, também, muitas vezes, é traduzido por “beato”. No decorrer da história, porém, devido à forte influência da moral e da ascese sobre a espiritualidade cristã, e franciscana em particular, beato passou a ser compreendido como pessoa bem comportada, boazinha, por vezes até piegas, carola. Mas, no sentido original, beatus ou bem-aventurado deve ser entendido a partir da dinâmica operacional, artesanal ou profissional. Assim, poder-se-ia traduzir beatus ou beato, e sua versão mais conhecida bem-aventurado, como aquele que depois de uma longa caminhada ou trabalho acerca de sua vocação-profissão ou identidade, isto é, de sua vocação e missão, se tornou “bom”, competente, maduro. Poderíamos dizer que “chegou ao seu ponto” e que, por isso, serve bem para a sua finalidade, merecendo a confiança de todos. Assim, quando a Igreja declara alguém beato significa que estamos diante de um cristão que, por seus longos e ou intensos anos de experiência, conhece bem o caminho da perfeição evangélica e que, por conseguinte, pode ser seguido com segurança e imitado com confiança.


  Agora dá para compreender porque essas duas palavras, bem-aventado e servo, andam quase sempre juntas, pois servo significa, sem mais e nem menos, “aquele que serve”. Por isso, para Francisco e para a espiritualidade cristã, servo não indicava uma categoria social em oposição a senhor, mas, sim, um modo de ser que deve estar presente em todas as pessoas em todos os setores da sociedade. Nesse sentido, tanto um – senhor – como o outro – servo – indicavam o modo adequado e bom da existência humana: todo homem deve fazer-se servo de todas as criaturas e, entre essas, principalmente, de seus semelhantes, os homens, considerando-os e tendo-os como seus senhores. Sinal expressivo dessa sua vocação-missão humana de ser “dominus”, isto é, cuidador da casa, é o fato de Adão tem sido chamado a dar nomes a todos os animais domésticos, às aves dos céus e a todos os animais selvagens (Gn 2,20). Consequentemente, Adão, isto é, todo homem, é e deve servir porque é senhor e é senhor porque serve. Assim é o nosso Deus que Francisco quer imitar: Aquele que, sendo Senhor, está no meio de nós como aquele que serve e serve porque é Senhor, isto é, cuidador de tudo.


 

2. Tão humilde no meio de seus súditos quanto entre seus senhores


Vejamos a primeira frase: Bem-aventurado o servo que se acha tão humilde no meio de seus súditos como se estivesse entre seus senhores.


Francisco é sempre uma bela e grata surpresa. Aqui surpreende porque nós entendemos ser humilde como ser carente, não ter dignidade, cargos de grandeza; como alguém que vive pensando: “Eu sou um pobre coitado! Por isso, estou aqui, no meio dos súditos e não dos nobres. Mas, um dia vou acabar com essa humilhação e me tornar importante! Se não for aqui, nesta vida, será na outra!”


Já dissemos que Francisco, segundo Chesterton, foi alguém que viu as coisas de perna para o ar. Só que, com isso, ele as viu e as colocou em sua verdadeira posição. Em outras palavras, nós é que andamos de pernas para o ar. Somos como os cidadãos daquele rei “Joãozinho Anda Para Trás”. Esse rei, para dominar seus súditos, estabelecera que em seu reino todos deviam andar para trás. Assim, de tanto andar para trás, com o tempo, todos pensavam que assim era o certo e que andar para frente seria o incorreto. Aplicando a lenda ao nosso caso podemos dizer que de tanto considerar e seguir aquela forma ou compreensão decadente de humidade, vista acima, com o tempo, passamos a considerá-la como a certa e correta. Por isso, Francisco, repetindo o Mestre, diz que nossa verdadeira grandeza está em ser humilde, estar no meio dos súditos como quem está no meio de senhores. Ser humilde é ser grande, é ser senhor, no verdadeiro sentido da palavra, enquanto que pretender ser senhor, estar acima dos outros, é ser pequeno, mesquinho, servil.


Longe de nós, portanto, pensar que a busca da humildade seja humilhação ou rebaixamento, pois ser humilde é nossa identidade maior, nossa grandeza, nossa glória e nobreza originária de filhos do grande Rei. É essa virtude que nos fará cada vez mais semelhantes ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Poderia se imaginar uma sociedade ou grupo humano onde todos pensassem e se comportassem segundo esse princípio, como de fato o fizeram os primeiros cristãos e os primitivos frades?! Seria o retorno ao Paraíso perdido, o Reino de Deus já realizado no meio de nós.


No fundo, Francisco está instituindo em sua Ordem o princípio que ordena a Comunidade originária de todas as comunidades e de toda a humanidade: o mistério da Trindade divina, revelado por Jesus Cristo, que fez dos seus súditos - os homens - seus senhores.


 

3.     Sempre sob vara da correção


A segunda parte dessa Admoestação retoma o tema da correção, analisado e refletido na Admoestação anterior. Diz Francisco: Bem-aventurado o servo que permanece sempre sob a vara da correção.


Acerca do significado da correção e de suas diversas formas Francisco já falou na Admoestação anterior. A novidade, aqui, está nesta palavrinha sempre. Com esse advérbio revela a importância e a necessidade que ele dava a esse exercício. Sempre significa sem interrupção, sem tréguas, em todas as questões e circunstâncias. No fundo, está o espírito de fidelidade à graça do seguimento de Cristo que nunca, em hipótese nenhuma, deve ser esquecido ou abandonado.


Fidelidade indica o vigor de quem, a modo de mãe ou esposa, de pai ou esposo, é levado a entregar-se de corpo e alma, gratuita e generosamente, sempre de novo, sem porquê e nem para quê, àquele ou àquilo que se tornou o tesouro de sua vida, tentando descobrir, sempre de novo e melhor, suas reais necessidades a fim de bem servi-lo.


“Sempre” indica, da mesma forma, a prudência, isto é, a virtude que nos leva a conhecer e a praticar o verdadeiro bem de nossa vocação e missão e a buscar os meios adequados para bem realizá-lo; indica, também, a prontidão com que o servo de Deus procura sua auto correção. Essa dinâmica ou espírito do “sempre” aparece  com mais clareza na frase seguinte: Servo fiel e prudente é aquele que, em todas as suas ofensas não tarda em punir-se (2).


Tudo isso nos leva a pensar naquelas virgens do Evangelho que, sem pressa, mas com toda a presteza, andavam com as vasilhas dos seus corações sempre repletas com o óleo de sua afeição primeira, podendo, assim, receber com alegria e generosidade as inesperadas e graciosas visitas do esposo.


Quando ouvimos ou lemos “ofensa”, pensamos em nossos agravos cotidianos que ferem os irmãos. Mas, pela maneira como vem expressa e dentro de uma exortação que tem como objetivo tornar-nos cada vez mais profissionais competentes e bem afinados com o seguimento de Cristo, podemos pensar naquelas ofensas que dizem respeito ao nosso gênero de vida. Essas ofensas são como feridas, sulcos, cortes, aberturas através das quais se perde, se esvai o precioso suco do espírito evangélico-franciscano que costumamos caracterizar com expressões como “carisma originário”, “inspiração originária”, “primeira afeição”, “primeiro amor”, etc.! 


De fato, a palavra ofensa vem do verbo latino offendo que significa, na linguagem da cavalaria, além de ofender, bater com a espada, abrindo cortes e ferimentos por onde se esvai o sangue, a vida da pessoa. Por isso, nada mais natural e lógico, nesse caso, senão correr, e depressa, para fechar a ferida e estagnar o sangue. O mesmo, diz Francisco, devemos fazer também nós quando ofendemos nosso gênero de vida, nosso primeiro amor,  o seguimento de Cristo: correr a fim de punir-nos. Na Regra Não Bulada Francisco enumera algumas dessas feridas: maus pensamentos, adultérios, fornicações, homicídios, furtos, avareza, maldade, fraude, impureza, mau olhar, falsos testemunhos, blasfêmia, insensatez (RNB 22). Em todas essas ofensas ou pecados, diz Francisco, é necessário não tardar em punir-se, isto é, fechar depressa essas feridas a fim de que não fiquemos sem o bom vinho, o bom espírito de nossa identidade.


Hoje, marcados por forte carga de uma psicologia mais anímica que espiritual, nos repugna falar em punir se. Francisco é diferente. Ele é religioso no verdadeiro sentido da palavra, isto é, um profissional de Deus e de suas coisas. Por isso, não tinha medo de falar e usar essas palavras fortes, pesadas e rigorosas, próprias de seu novo estado ou gênero de vida.


O que será, então punir-se na experiência evangélica e profundamente humana? Que fenômeno estranho é esse de só o humano poder ser proibido, obrigado e punido? Se um leão mata uma criança não será jamais levado a um tribunal para ser julgado e punido. Todas essas palavras, tidas por nós como negativas, em verdade, estão falando da nossa grandeza, isto é, da nossa liberdade; que nós somos o único ser que pode e deve ser proibido, obrigado e punido, justamente porque a liberdade é um dom que precisa ser conquistado a duras penas e mantido dentro de seus limites: a vara da correção. Nós, apesar de certa semelhança físico-biológica, não somos nenhum animal, nenhuma máquina. Somos, isto sim, responsáveis por tudo o que recebemos, somos ou fazemos, bem como por tudo o que está ou acontece ao nosso redor. Assim, bom humano, bom religioso é aquele que é capaz de dizer: “Sim, eu errei, preciso de correção e de punição”. Por isso, a conclusão lógica de Francisco: religioso bom não tarda em punir-se.


Não tardar, mais que o aspecto de tempo, indica a presteza de alma no cuidado e na solicitude por aquilo que nos é precioso. Já a demora significa distanciamento afetivo, desinteresse. Por isso, Maria vai às pressas visitar sua prima Isabel, Francisco larga de imediato o caminho da Apúlia e volta depressa para Assis a fim de descobrir a vontade de seu novo senhor. O amor sempre tem pressa! Por isso, o servo prudente e fiel estará sempre pronto a se punir, isto é, a pôr-se de pé, fazendo jus à sua vocação-profissão de seguidor de Cristo, protótipo do homem verdadeiramente livre, que, embora inocente, pôs sobre seus ombros todas as nossas culpas.

 

  

4. Interiormente contrição e, exteriormente, confissão e satisfação (3)


Mas, para que a correção seja completa ou perfeita Francisco faz mais uma exortação: que o frade seja pronto em punir-se interiormente pela contrição e exteriormente pela confissão e satisfação da obra.


Francisco, bem como os textos medievais, tem muito apreço pelas dimensões “interior” e “exterior” do nosso humano. Interiormente significa no ou a partir da nossa raiz, que os medievais chamavam de interior, como também, de alma, espírito. Trata-se daquele vigor, daquela afeição que, a partir da graça do chamado, se constitui a origem, a raiz, o fundamento da nossa existência. Em nosso caso, esse espírito não é outro senão Cristo crucificado e seu Evangelho do Envio dos Apóstolos. Assim, punir-se interiormente significa corrigir-se a partir do vigor originário de nosso chamado e pertença a Cristo, isto é, da reverência, do respeito, do amor D'Aquele que nos amou por primeiro.


Quanto à contrição costumamos entendê-la como arrependimento, compunção, pesar. Os dicionários latinos, porém, são mais incisivos. Descrevem-na como a ação de calcar aos pés, esmigalhar, triturar, assim como antigamente se fazia com o trigo, a fim de que se tornasse farinha bem moída com a qual se confecciona o pão. Assim, punir-se interiormente pela contrição indica aquele trabalho difícil, mas fundamental na vida evangélica, apontado já por João Batista: desmanchar os torrões do orgulho, da soberba, da auto suficiência, da auto referencialidade e do amor próprio que endurecem nosso coração a fim de, assim, tornar-nos cada vez mais sensíveis à presença e dóceis à atuação Daquele que nos escolheu e nos amou por primeiro. Por isso, a contrição perfeita, além de brotar do amor de Deus sempre vem acompanhada de uma dor da alma e detestação do pecado cometido, com a resolução de não mais pecar no futuro [1].


Mas, para que a punição não fique apenas no desejo faz-se necessária, também, a confissão e a satisfação da obra.


Confessar não é apenas dizer ou contar os pecados e as culpas, mas também, e acima de tudo, corrigir e satisfazer por atos e atitudes o mal que se praticou, preencher com o bem o vazio causado pela ofensa.


  Mais adiante, a Admoestação XXVII dará o método da satisfação: preencher cada falta ou vício com sua virtude correspondente. Assim, por exemplo, se houve ira e perturbação, dirá Francisco, satisfaça, agora, com a virtude da paciência e da humildade. Tudo muito lógico, prático e eficaz.


Enfim, a humildade é a virtude ou disciplina que nos leva a fazer que tiremos os pés da areia movediça do orgulho e da soberba para assentá-los no chão firme da realidade de todas as realidades: o amor Daquele que nos amou por primeiro, concretizado no chamado ao seguimento de Jesus Cristo, na experiência evangélica de Francisco.

 


DA HUMILDADE, HOJE


Durante séculos, nós cristãos, principalmente religiosos, andamos na busca de uma humildade um tanto orgulhosa, através da qual, paradoxalmente, em vez de Deus, se visava a exaltação do próprio eu; uma espiritualidade que vinha recheada do espírito do auto apreciação e valorização, do merecimento e da conquista através do próprio esforço. Desejávamos ardentemente aparecer como santos, testemunhas, cristãos exemplares, uma espécie de cidadãos grã-finos, a nata, a elite da Igreja e da sociedade.

O Papa Francisco forneceu uma chave interpretativa para saber se estou na busca da humildade evangélica ou mundana. Diz ele: «Há uma marca, um sinal, o único: aceitar as humilhações. Humildade sem humilhações não é humildade. Humilde é o homem, a mulher, que é capaz de suportar as humilhações como as suportou Jesus, o humilhado, o grande humilhado» (05,12,17).


Humilde é esta mãe, bastante jovem ainda, que, para sustentar a si e sua filhinha, cuidava de uma idosa, acamada e completamente dependente. Chamava a atenção o zelo, a dedicação e a reverência que ela dedicava à sua doente. Parecia mãe cuidando de sua filha. Certa vez procurou o sacerdote perguntando-lhe se ele não podia dar uma bênção para sua filhinha querida que Deus lhe dera. O sacerdote olhou para os lados, mas não viu ninguém. De repente, ela tira da bolsa a fotografia de uma criança, toda paraplégica. E dizia: “Não é linda minha filhinha!? Ela já tem onze aninhos, feitos semana passada. Infelizmente, fazem dois meses que o pai dela nos deixou. Mas, não tem problema, não! Eu agora consegui esse emprego e, com a graça de Deus, vou cuidar bem e direitinho dela”.


Longe dessa jovem mãe qualquer sentimento de tristeza ou reclamação: “Por que isso comigo?” Ou: “Que Deus é esse que me dá uma filha nesse estado?” Mas, ao contrário, feliz e alegre, não cessava de enaltecer as qualidades de sua filhinha. Ora, isso por acaso não é coisa, obra de Deus, o Reino dos céus dos humildes e pequenos porque agraciados e cuidados por Deus!?

 

[1] Catecismo Romano, 1451



Paz e Bem!



Continue bebendo do espírito deste tema:


- indo ao texto-fonte: 111º Encontro - 23ª Admoestação - Da humildade

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Da humildade

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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