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108º Encontro - 16/03/24 - 21ª Adm - A boa fala das palavras e das obras

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    Frei
  • 16 de mar. de 2024
  • 10 min de leitura



A BOA FALA DAS PALAVRAS E DAS OBRAS


 

1Bem-aventurado o servo que, quando fala, não revela tudo o que é seu, em vista de recompensa, nem é precipitado no falar (Cf. Pr 29,20; Tg 1,19), mas provê sabiamente o que deve falar e responder. 2Ai do religioso que não retém no seu coração (Lc 2,19.51) os bens que o Senhor lhe revela, e não os manifesta aos outros pelas obras, mas, quer mostrá-los aos homens, mais por palavras e em vista de recompensa! 3Ele mesmo se recompensa (Mt 6,2.16) e os ouvintes pouco fruto recolhem.

 


1.     O nexo entre “vazio” e “loquaz”.


O título desta Admoestação XXI é “Do religioso vazio e loquaz”. Neste título, o religioso, isto é, aquele que por ofício ou profissão é chamado a testemunhar o absoluto de Deus na vida humana e que na Igreja é chamado a ser a memória da essência do ser cristão, ou seja, o seguimento de Jesus Cristo, o ser-discípulo dele, é qualificado como “vazio e loquaz”. Esta qualificação é, na verdade, uma desqualificação. Em questão está, aqui, pois, uma identidade humana desqualificada, desvirtuada, carente, privada de ser, de vida, de vigor essencial. No título, a palavra “vazio” traduz o adjetivo latino “inanis”. Este, por sua vez significa: inane, vazio, oco; dai, em sentido figurado, vão, sem realidade, sem consistência, sem vigor, sem viço e sem vida, fútil, inútil. Além disso, em terceiro lugar, inanis veio a significar também orgulhoso, presunçoso; e, por fim, tomou a significação de leviano, sem reflexão. O segundo adjetivo que entra no título é “loquax”, isto é, loquaz, falador, tagarela, verboso. Indica a qualidade daquele que fala sem cessar, de modo vazio, sem nada dizer.


Na vida humana, falar e dizer não são a mesma coisa. Há quem fale muito sem nada dizer ou pouco dizendo. Há quem fale pouco ou se cale e diz muito. O importante não está no falar e no calar, mas no dizer. Dizer, por sua vez, significa: mostrar o real, dar acesso à realidade, à sua manifestação, à sua verdade. Alguém pode falar e dizer. Pode calar e dizer. Pode falar e não dizer. Pode calar e nada dizer. A capacidade de dizer, seja no falar seja no calar, se embasa na capacidade de silenciar e de escutar. Quando uma fala nasce da escuta e do silêncio, ela é capaz de dizer muito e bem sem ser prolixa. Quando um calar é algo assim como o dar espaço para a escuta e o ressoar do silêncio, esse calar diz muito. Quando porém uma fala não nasce da escuta e do silêncio, ela é apenas falação, tagarelice. Quando um calar não vem da escuta e do silêncio, ele é apenas um ficar espiritualmente mudo. A qualidade do falar e do calar diz muito da identidade humana, da profundidade de uma presença humana, da intensidade experiencial ou existencial humana. Se o falar e o calar são autênticos, o ser humano é profundo. Ele é bom, isto é, ele serve, ou seja, ele dá conta do serviço, é capaz e nele se pode confiar. Se o falar e calar são inautênticos, o ser humano é superficial. Este ser humano não serve à humanidade. Ele não presta nenhum serviço aos outros, nele não se pode confiar, quando se trata de recorrer a alguém para ajudar.

A pessoa loquaz é uma pessoa inane, isto é, vazia, oca, sem densidade de realidade humana, sem consistência, sem vigor, sem vida. É como se tal pessoa estivesse morta. É inútil para promover o cuidado da vida. É um ser humano dessencializado, sem propriedade no seu ser. A ironia da situação consiste, porém, no fato de este ser humano que assim se qualifica, melhor, se desqualifica, ser normalmente alguém orgulhoso, presunçoso, soberbo. Uma palavra usada no evangelho, mencionada na lista daquelas coisas que vêm do coração e que mancham o ser humano, é hyperephania (Mc 7, 22). A tradução é “arrogância”, “orgulho”, “jactância”. Literalmente, quer dizer uma atitude humana em que alguém quer brilhar desmedidamente, ser esplêndido, magnífico, mas que, envolvendo-se num brilho falso, ilusório, enganador, cedo ou tarde se arruína a si mesmo. Essa pessoa vive em função das aparências e em busca dos holofotes. O que ela quer é estar em evidência diante de um público. Essa pessoa, em busca da exclusividade de seu brilho, trata com desdém aos outros, tem inveja e ciúme do brilhar dos outros. Ela centraliza tudo em torno do seu “eu” e de suas máscaras, com as quais ela encena a sua vida no palco do mundo público. Tudo ela avalia e mede segundo o seu interesse egoístico. Frei Hermógenes Harada, tratando desta Admoestação de São Francisco, diz:


Há pes­soas, também entre os religiosos, que veem tudo sob o ocular do interesse pró­prio. Há pessoas que ao falar, falam tendo como móvel a busca da fama, do apreço e re­conhecimento; sempre e em toda parte buscam estar no centro das atenções. Por isso falam quase só de si mesmos, do que sabem, de suas ações, dos seus sucessos; e falam quase sempre com tom "autêntico", "humilde" e "heroico", buscando ser interessantes; não suportam que outros falem, arreba­tando todo o discurso para si.

 


2.     A falação e a publicização e seus perigos.


A falação e publicização são dois fenômenos existências que costumam dominar o cotidiano. No nosso tempo, com o advento das tecnologias de informação e comunicação, os efeitos nefastos destes dois fenômenos tendem ao cúmulo. A falação, na verdade, não comunica nada. Comunicar é fazer o ouvinte participar do ser que se abre para aquilo de que a fala fala. A falação, na verdade, não abre nenhum ser, isto é, não dá acesso à realidade, à verdade, das coisas de que se fala. Quando uma pessoa que se mantém na falação ouve uma fala apropriada, ela não consegue compreender. Ela fica apenas no que foi falado, sem acessar o que foi dito. Uma comunicação baseada na falação não consegue participar da revelação da realidade e do real, nem consegue partilhar o relacionamento com a verdade. As pessoas que falam e ouvem seguindo a tendência da falação repetem e passam adiante a incompreensão. Uma fala toma a autoridade de verdade apenas porque é muito repetida. Quem ouve não discerne. A falação é autoritária. A ela falta solidez, mas ela se impõe devido ao discurso muito repetido. A falação não abre o ser humano para a realidade. Ela o tranca na ilusão.


A falação é solidária com a tendência da publicização. O mundo da convivência, na publicização, não se realiza como um autêntico nós. Ele é perpassado pela impessoalidade e pelo nivelamento. Ele se torna o mundo do “todo o mundo”. Quem fala nesse mundo não é propriamente um si-mesmo, um eu mesmo, um nós mesmos. Quem fala nesse mundo é o “a gente”. O “a gente” é o “todo o mundo”, que, ao fim de tudo, é ninguém. Na falação que essa publicização promove não se cultiva um relacionamento originário com o ser das coisas, nem se dispõe de uma transparência apropriada da própria existência. Tudo é exposto, mas tudo permanece opaco e obscuro. E isso que fica assim opaco e obscuro é tomada como o claro e a todos acessível, como o verdadeiro e a verdade. Enquanto “a gente” e “todo o mundo” o ser humano se desincumbe da responsabilidade de ser. Ele se torna incapaz de decisão. A falação e a publicização moldam um ser humano que vive de superficialidade e que só admite a facilitação da vida. A falação e a publicização levam à deriva o ser humano. O conduzem ao nada negativo, ao nada aniquilador do vigor da existência humana.

Na Admoestação XXI São Francisco mostra o caminho do que é bom, bem-aventurado no falar das palavras e no falar das obras e o descaminho do que é vão, do que se arruína no oco da falação e da publicização.

 

3.     A importância do oculto e do segredo.


São Francisco declara bem-aventurado, isto é, bom, maduro na identidade humana, aquele que, quando fala, não revela tudo o que é seu, em vista de recompensa, nem é precipitado no falar, mas providencia de modo sábio aquilo que deve falar e responder. Na espiritualidade franciscana tem-se grande apreço pelo segredo, isto é, pela atitude de guardar oculto, no coração, os bens que o Senhor concede. A atitude de publicização da vida espiritual é tomada como um grande perigo, que pode aniquilar o espírito. Há um certo pudor sagrado em referência ao encontro da alma humana com Deus e ao que se dá entre ela e Ele. O ser humano que expõe a sua vida espiritual fazendo dela um espetáculo para os outros e para si mesmo a destrói. Quem busca o reconhecimento público de sua justiça ou de sua santidade torna-se um hipócrita. Ele simula uma vida espiritual, não vive uma vida espiritual. Torna-se um ator em busca de aplausos, de prestígio e de fama. Ele age e fala como se fosse um bom cristão ou um bom religioso, mas na verdade das coisas, na real, ele não é.


O loquaz, na sua ânsia de ser visto pelos outros, costuma ser precipitado no falar. O que ele quer é ter a palavra e aparecer. Não importa o que há de ser dito, sua verdade e sua bondade. Já o ser humano bom, pleno de vigor de ser, providencia de modo sábio o que deve falar e responder. Providenciar sabiamente quer dizer tem em mente, tem em vista, previamente, aquilo que é verdadeiro e aquilo que é bom e que, assim, é digno de ser dito. O loquaz fala sem reflexão, sem ponderação. Falta-lhe pensamento. Já o sábio fala a partir da escuta e do silêncio da reflexão, no exercício da ponderação.


São Francisco diz: “ai do religioso que não retém no seu coração os bens que o Senhor lhe revela...”. Podemos perguntar: por que? Certamente, porque ao querer gabar-se desses bens que são dons, dádivas do Senhor, ele pretende roubar de Deus o seu brilho e atribui-lo para si mesmo. Nisso, ele arruína o seu relacionamento com Deus e sua própria identidade humana. Dizia certa vez um rabi que o orgulho é um roubo. Nele, o ser humano rouba de Deus a glória que a Deus pertence. Ele rouba essa glória e a atribui a si mesmo. São Francisco, lembremo-nos, considera a Deus como o único bom, que todos os bens espirituais com os quais somos cumulados são dons de Deus, e precisam ser restituídos a Ele, sua fonte, pela gratidão e pelo louvor. O que é nosso realmente é somente o nada de nosso pecado. Por isso, os bens que o Senhor nos concede devem ficar no oculto, no coração. O ser humano que quer ser espiritual não deve querer expô-los nem sob pretexto de dar testemunho. É que o Senhor pode desocultá-los, manifestá-los, quando ele bem quiser a quem ele bem quiser. Aliás, este foi o comportamento do próprio São Francisco em relação aos seus estigmas. Ele os ocultou e deixou que o Senhor os revelasse a quem Ele quisesse. Hoje, num mundo em que reina a publicização, nos falta a compreensão da importância do oculto, do segredo. Falta-nos o pudor do sagrado. Também o sagrado foi sequestrado e tornado objeto de espetáculo. E isso arruína a religião. O afã da autopromoção e da vaidade cria cristãos, religiosos, ministros e pastores de Igreja atores de um espetáculo que os arruína e que arruína a própria Igreja e a sociedade. Espetaculização e mercantilização da fé é uma grande ameaça numa religião voltada para a falação e para a publicização. Ela cria um novo tipo de farisaísmo, isto é, de pretensos piedosos que fazem da vida religiosa um espetáculo para si mesmos e para os outros.


 

4.     A importância da fala das obras


Para São Francisco, os bens do Senhor, suas dádivas aos seus amigos, devem ser manifestados não por palavras pronunciadas em vista de recompensa, mas devem ser mostradas na gratuidade das obras. Vamos retomar, neste sentido, a famosa passagem do sermão de Santo Antônio que diz:


Quem está repleto do Espírito Santo fala várias línguas. As várias línguas são os vários testemunhos sobre Cristo, a saber: a humildade, a pobreza, a paciência e a obediência; falamos estas línguas quando os outros as vêem em nós mesmos. A palavra é viva quando são as obras que falam. Cessem, portanto, os discursos e falem as obras. Estamos saturados de palavras, mas vazios de obras. Por este motivo o Senhor nos amaldiçoa, como amaldiçoou a figueira em que não encontrara frutos, mas apenas folhas. Diz São Gregório: “Há uma lei para o pregador, que faça o que prega”. Em vão pregará o conhecimento da lei quem destrói a doutrina por suas obras.


Assim, as obras falam. Elas falam, na medida em que mostram. Elas dizem algo, mostrando. As obras que são frutos da virtude são os vários testemunho sobre Cristo, que o cristão pode dar. As falas das obras é que de fato confessam e professam a pertença de alguém a Cristo, ao seu evangelho. A identidade do cristão não está nos discursos vazios da falação religiosa. Está nas obras que vêm à fala a partir do vigor das virtudes e da graça divina.

 


5.     Maria ou o fariseu? A decisão


Em filigrana, pode-se ver nas palavras de São Francisco, duas figuras humanas do Evangelho: Maria e o fariseu. Maria, a mãe de Jesus, é a mulher que retém no coração os dons de Deus, em silêncio e escuta procura acessar o sentido e a significação, a verdade deles na própria vida, e os mostra ao outros de maneira discreta, por sua obras, isto é, por aquilo que ela faz e sofre. No Evangelho, Maria fala muito pouco. Mas ela diz muito. Seu testemunho de Cristo ressoa pelas gerações a fora. Ela é bem-aventurada. Já o fariseu é aquele que pratica sua piedade em vista da recompensa. Sua vida acaba por ser estéril. As pessoas colhem pouco fruto com o que eles falam e com suas atitudes.


Assim, ao ler esta Admoestação somos confrontados com duas possibilidades de ser, de viver: a do silêncio, da escuta, da fala ponderada e da linguagem das obras, por um lado, e a da falação e da publicização, que acarretam uma vida infértil, que não é proveitosa nem para si mesmo nem para os outros. Resta-nos medirmos com estas duas possibilidades e entrarmos na decisão por uma ou outra forma de vida.

 

Em louvor de Cristo. Amém.

 

 Paz e Bem.




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palavras e das obras


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A boa fala das palavras e das obras

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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