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107º Encontro - 02/03/24 - 21ª Adm - Do religioso vazio e loquaz

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    Frei
  • 7 de mar. de 2024
  • 10 min de leitura



XXI - DO RELIGIOSO VAZIO E LOQUAZ


O perigo da loquacidade vazia, sem as obras é tão real e funesto que Francisco sente necessidade de voltar a ele, como o fez na Admoestação. Vejamos o texto.


  1Bem-aventurado o servo que, quando fala, não revela tudo o que é seu, em vista de recompensa, nem é precipitado no falar (Cf. Pr 29,20; Tg 1,19), mas provê sabiamente o que deve falar e responder. 2Ai do religioso que não retém no seu coração (Lc 2,19.51) os bens que o Senhor lhe revela, e não os manifesta aos outros pelas obras, mas, quer mostrá-los aos homens, mais por palavras e em vista de recompensa! 3Ele mesmo se recompensa (Mt 6,2.16) e os ouvintes pouco fruto recolhem.



1. Título


O desejo de um bom pai ou mestre é ver seu filho ou discípulo encaminhar-se de modo seguro, correto e eficaz na busca e realização de sua vocação. Por isso, Francisco volta mais uma vez ao tema da coerência profissional entre a fala e o comprometimento real no seguimento de Cristo de seus frades, denominados aqui, como na Admoestação anterior, com o termo religioso.



2. O perigo da busca do próprio interesse e da fala impensada e precipitada


Como nas demais Admoestações, também nessa, temos um não e um sim. O não sempre tem em mira fazer-nos compreender e assumir mais e melhor o sim: Bem-aventurado o servo que, quando fala, não revela tudo o que é seu em vista de alguma recompensa, nem é precipitado no falar, mas provê sabiamente o que deve falar e responder (1).


Na verdade, Francisco começa chamando a atenção para dois perigos diante dos quais o servo de Deus, isto é o profissional da Vida religiosa, deve precaver-se: falar buscando o próprio interesse e falar com precipitação.


O primeiro perigo é muito sutil embora muito comum e difícil de se evitar. No Evangelho ele aparece com muita nitidez na conduta dos fariseus. É o vício ou pecado da egolatria. Nesse, a fala expressa, acima de tudo, aquele modo de ser que sempre coloca seu próprio eu como o centro das atenções. Por isso, em vez das obras e dos outros precisa falar de si, de seus sucessos, conquistas e realizações buscando sempre a grandeza e a fama de si mesmo. Nesse pecado o religioso esquece que o objetivo central de todos os afazeres de sua profissão é o Senhor, sua causa, seu Reino. Por isso, quando não alcança seus objetivos, frustrado, costuma desanimar e enfraquecer nos seus compromissos, perdendo tempo em acusações a si próprio, aos outros e até mesmo ao próprio Deus. Na verdade, esse tipo de religioso não é propriamente religioso, é um pseudo religioso porque em vez de estar voltado para o seu Senhor está mais ligado a si mesmo e pensando em seus próprios interesses.


O segundo perigo, intimamente relacionado com o anterior, consiste na precipitação no falar. Evidentemente, aqui, a Admoestação está tematizando a fala do profissional religioso, isto é, sua fala ou conduta religiosa e não qualquer fala ou conduta, como quando estamos num passeio, numa recreação, etc. Ora, é da natureza de uma profissão e, consequentemente, de um profissional, tanto para o surgimento como para sua perseverança, percorrer um longo caminho de busca, pesquisa, análise, reflexão e experiência. Por isso, num profissional o que importa é a profissão, jamais sua pessoa. Essa é serva da operação, do fazer, da obra, jamais de si mesma. Por isso, os medievais e, mesmo hoje, ninguém gosta, por exemplo, de um regente de orquestra, de um atleta ou pregador que queira aparecer, fazendo-se mais de ator do que de operador. Aparenta ser, mas não é.


O medieval e todo homem de bom senso detesta tais “profissionais” porque, por não terem nenhum fundamento ou raiz, põem em jogo o presente e o futuro de si mesmos e dos outros. Em tudo, o que importa não é a grandeza ou a dignidade do profissional, mas sim sua fala, seus atos bem ponderados, enfim a obra.


A admoestação não está falando de fatos ou casos, mas de um tipo de religioso cujas características já foram mencionadas na Admoestação anterior quando fala do religioso vão e fútil. Vale acrescentar, aqui, que esse modo de conduzir-se dá um religioso infantil, frívolo, imaturo e sem consistência; de repente se entusiasma por uma iniciativa, começa, vai até certo ponto, larga, começa outra e assim vai a vida toda. Tudo isso porque, e

m vez de amar e procurar a verdade, sua mente, seu coração desejam o show, o espetáculo, a publicidade, o consumo, a recompensa.


Por isso, a frase termina com um “mas”. Mas, significa, nesse caso, que, ao contrário desse modo de conduzir-se, segue o caminho inverso, denominado aqui pelo verbo “prover”: mas provê sabiamente o que deve falar e responder. Em vez de prover poderíamos também dizer “ponderar”. E quem em sua fala pondera nós chamamos de pessoa ponderada.


Exemplo de religioso ponderado é Nossa Senhora que, no dizer do evangelista, procurava guardar em seu coração as palavras e os fatos de sua vocação meditando-as, isto é, ponderando-as, dia e noite. Por isso, Maria é modelo do religioso bem assentado, capaz de percorrer o caminho do chamado na pureza da fé sem jamais ter conseguido uma razão ou explicação sequer de tudo quanto estava lhe acontecendo.


Exemplificando a importância e a necessidade da ponderação dizia o bem-aventurado Egídio que o bom religioso devia ter um pescoço tão comprido como o pescoço da girafa. Assim, quando tivesse de falar, cada palavra, se demoraria um bom tempo em cada nó do pescoço, podendo, desse modo, ser bem pensada e estudada. Só então, depois de ter passado por todo um processo de amadurecimento, poderia ser proferida e lançada com proveito no coração dos ouvintes. Consequentemente, para frei Egídio, religioso bom, competente é aquele que antes de falar entrega-se de corpo e alma, fiel, devota, direta e imediatamente ao cotidiano-ordinário próprio de sua Religião (Ordem, profissão). Pois, sabe muito bem que aí, nesses afazeres diários, esconde-se a verdade de sua busca, o sentido de sua vida, o tesouro escondido, o mistério do próprio Deus e Senhor de todas as criaturas. Por isso, Frei Egídio achava o 'canto' dos corvos horrível e o canto dos homens belíssimo. Mas, preferia o grasnar dos corvos ao canto dos homens. É que estes entoam "lá, lá, lá", ao passo que aqueles grasnam "quá, quá, quá" ("aqui", "aqui", "aqui").


O "lá" é belo, sublime, vem das alturas e eleva os corações para o alto. É sempre para além, "espiritualista", "celestial". Jamais está aqui e agora. Jamais inserido no concreto definido de uma dada situação-Terra, misturado com a podridão e a decadência humana, acolhendo-o com gratidão e responsabilidade, como o dom único da possibilidade agraciada. Por isso, está continuamente a procurar o seu habitat no extra-ordinário, fora do seu próprio, aviando-se em buscas avoadas e rejeitando-se como carente do Infinito, sua privação. Assim, o "lá" diz conhecer Deus, mas o conhece apenas como metafísico. Não se encontra com e nem conhece o Deus de Jesus Cristo, cuja graça, beleza e vigor se ocultam na vileza e pobreza da Encarnação. (Fontes Franciscanas, Mensageiro de Santo Antônio, pág. 1057).



 3. O perigo das palavras sem a obra e em vista da recompensa


A segunda frase reza assim: Ai do religioso que não retém no seu coração os bens que o Senhor lhe revela, e não os manifesta aos outros pelas obras, mas quer mostrá-los aos homens, mais por palavras e em vista de recompensa! (2)


Novamente atendamos para o “Ai” evangélico da misericórdia ou da compaixão, já comentado acima. Resta-nos analisar o restante dessa compaixão, principalmente no que se refere ao religioso que não procura manifestar os bens que o Senhor lhe concede através das obras, etc.


No fundo, Francisco está retomando o tema da importância de sermos religiosos bons, isto é, reais competentes e não falsos ou ocos, fúteis, vazios, só de palavras. Enfim, que sejamos religiosos de obra, de operação e não, numa linguagem popular, só de falação, de resultados ou recompensas.


Não se trata, mais uma vez, de exaltar a figura, a pessoa do religioso – coisa detestável e prejudicial sob todos os pontos de vista - mas fazer com que a obra do Senhor apareça. Francisco, como bom medieval, tinha evidência que todos os dons, e entre eles o da nossa vocação-profissão, que, como diz santa Clara, é o maior de todos, são confiados não em vista de um pretenso bem particular do religioso, mas, antes e acima de tudo, para o crescimento do Reino de Deus no coração de todos os homens. Vale aqui a exortação do Senhor aos seus discípulos em Mt 5,16: Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.


O medieval, como Francisco, tinha uma evidência muito aguda acerca do sentido social ou comunitário da vida cristã ou religiosa, caracterizada com a palavra servo. O servo de Deus, de tudo quanto possui, tanto em relação aos bens terrenos, como terras ou saúde, bem como quanto aos bens espirituais, como talentos ou virtudes, nada disso pode gabar-se porque tudo pertence ao seu Senhor que, benevolamente lhe concede a modo de empréstimo a fim de que, pela graça do trabalho, os faça frutificar para o bem de todos.


Segundo as famosas parábolas evangélicas, principalmente a dos talentos, o sentido da vida do homem não é outro senão o de empenhar-se para fazer frutificar os tesouros que o Senhor escondeu no coração das criaturas, especialmente do próprio homem. O que não pode é enterrá-los, permanecendo de braços cruzados na negligência da ociosidade perigosa. Assim, ao homem compete, em primeiro lugar, a ingente e nobre missão de procurar e descobrir esses preciosos tesouros, para, depois, a modo de terra boa, acolhê-los com diligência em seu coração, colaborando com seu Senhor na paciente elaboração e frutificação.


Francisco é muito realista, isto é, vê todos e cada um dos seres como criaturas de-pendentes, direta e imediatamente, de sua fonte originária, seu Criador, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, sabe muito bem que, se o homem trabalhar com esse espírito, Deus, como outrora em sua serva Maria, fará coisas maravilhosas e distribuirá seus bens aos seus pobres e humildes servos.


Com essa exortação Francisco recupera uma das experiências de fundo da humanidade, bastante esquecida hoje: o caráter fraterno, universal e transcendente de todas as criaturas. Todos e tudo somos UM em Deus nosso Pai e Criador. Nesse sentido, por exemplo, o passado não é jamais passado. Mas, quem, hoje, entende história como uma contínua presença e compromisso com o passado? Quem assume o passado como trabalho diligente e grato para desenterrar tesouros antigos, escondidos pela poeira do tempo ou entulhados pelo orgulho e pela soberba do homem, a fim de trabalhá-los, mais uma vez, fazendo vir à fala, de novo, o sentido sempre novo e antigo do mundo e do próprio homem?


Por isso, Francisco insiste para que mostremos os bens que o Senhor nos deu através de obras e não apenas através de palavras. É nesse mesmo sentido que seu companheiro frei Egídio mostrava-se ainda mais radical. Vendo que muitos, de boa vontade, pregavam coisas que não faziam, fugindo do trabalho, alertava-os dizendo: Distam mais as obras das palavras que o céu da terra. [...] E, suspirando: Muito dista a ovelha que bala da que pasta, isto é, o pregador do trabalhador [...] (VE 15). E a outros frades desejosos de pregar para multidões em praças públicas recomendava-lhes que começassem assim: 'Bo, bo, molto dico e poco fo' (Bah, bah, muito digo, mas pouco faço) [...]. Noutra ocasião, ouvindo as reclamações do dono de uma vinha aos seus operários: ‘Faite, faite e non parlate’,  saindo da cela, gritava no fervor do espírito: irmãos pregadores, ouvi o que este homem diz: 'Faite, faite e non parlate!' (´Fazei, fazei e não fiqueis aí falando’) (idem).



4. Ele mesmo se recompensa e os ouvintes pouco fruto recolhem (3)


No final da Admoestação Francisco retoma a questão da recompensa, tratada no seu início. O pensamento é claro. Quem trabalha pensando apenas em seu próprio proveito terá nele mesmo sua medida e sua recompensa. Aplica-se aqui o que Cristo dizia aos fariseus que jejuavam e rezavam apenas para serem vistos: Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Ou, ainda, aquele outro dito: A medida com que medirdes sereis medidos. A razão é muito simples: quem vive fechado, amando apenas a si mesmo, jamais terá a alegria do enriquecimento do encontro e, consequentemente, a graça de poder amar e de ser amado.


Ao contrário, o religioso que conduz seu seguimento de Cristo no rigor da dinâmica da disciplina de um profissional, não se satisfazendo, portanto, com recompensas de caráter meramente anímicas e subjetivas, brilhará aos olhos dos homens como uma luz a ser seguida e um exemplo a ser imitado com júbilo e alegria. Em sua companhia bem firmada ou através de sua fala ponderada os ouvintes haverão de colher muitas sementes evangélicas que honrarão sempre mais o Senhor da messe.


Na verdade, tal religioso – o bom profissional de Deus – a exemplo do Mestre, também se tornará poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo porque sua vida não é mais vivida a partir de si, mas Daquele que o chamou e enviou para produzir frutos em abundância (Cf. Jo 15,16).



Palavra da Igreja, hoje


O Papa Francisco em sua Mensagem para o I Dia mundial dos Pobres, em 19 de novembro de 2017, depois de citar São Tiago segundo o qual a fé sem as obras, está completamente morta, comenta: Contudo, houve momentos em que os cristãos não escutaram profundamente este apelo, deixando-se contagiar pela mentalidade mundana. Mas o Espírito Santo não deixou de os chamar a manterem o olhar fixo no essencial. Com efeito, fez surgir homens e mulheres que, de vários modos, ofereceram a sua vida ao serviço dos pobres. Nestes dois mil anos, quantas páginas de história foram escritas por cristãos que, com toda a simplicidade e humildade, serviram os seus irmãos mais pobres, animados por uma generosa fantasia da caridade!


Dentre todos, destaca-se o exemplo de Francisco de Assis, que foi seguido por tantos outros homens e mulheres santos, ao longo dos séculos. Não se contentou com abraçar e dar esmola aos leprosos, mas decidiu ir a Gúbio para estar junto com eles. Ele mesmo identificou neste encontro a viragem da sua conversão: «Quando estava nos meus pecados, parecia-me deveras insuportável ver os leprosos. E o próprio Senhor levou-me para o meio deles e usei de misericórdia para com eles. E, ao afastar-me deles, aquilo que antes me parecia amargo converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo» (Test 1-3). Este testemunho mostra a força transformadora da caridade e o estilo de vida dos cristãos.

 

 

Paz e Bem!




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Do religioso vazio e loquaz

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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