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105º Encontro 17/02/24 20ª Admoest - Uma meditação a respeito do bom

  • Foto do escritor: Frei
    Frei
  • 19 de fev. de 2024
  • 18 min de leitura



Uma meditação a respeito do bom

 


Mais uma vez iremos meditar sobre a Admoestação XX de São Francisco de Assis. Leiamo-la de novo:


XX - DO RELIGIOSO  BOM  E DO RELIGIOSO FÚTIL


1Bem-aventurado o religioso que não encontra satisfação e alegria a não ser nas santíssimas palavras e obras do Senhor 2e, com elas, conduz os homens, com júbilo e alegria (Cf. Sl 50,10), ao amor de Deus. 3Ai do religioso que se deleita em palavras ociosas e vãs e com elas provoca os homens ao riso.

 

O título em latim soa assim: De bono et vano religioso.  O que na tradução está como “fútil” poderia ser dito mais literalmente como “vão” (vanum). Assim, propomos reler o título como “Do religioso bom e vão”. Aqui temos, de início, a oposição entre o ser-bom e o ser-vão, entre a bondade e a vaidade. Mas, em que consiste o ser-bom ou a bondade? Em que consiste o ser-vão e a vaidade? Detenhamo-nos nesta questão, antes de tudo.


 

1.     A bondade, plenitude do ser


Ser-bom, a bondade, consiste em uma certa plenitude do ser. Uma coisa é boa quando ela responde e corresponde à sua essência; quando ela alcança certa plenitude de maturação, tornando-se o que ela essencialmente é. Ela é boa, quando tem o seu ser cheio, isto é, pleno: quando está cheia em seu viço e vitalidade, no vigor de seu surgir e realizar, quando alcançou consistência e solidez no seu modo de ser. Neste sentido, a bondade é a perfeição do ser. No entanto, precisamos entender bem o que significa, aqui, perfeição. Escutemos a linguagem em nossa língua. A palavra da língua portuguesa “perfeição” vem de perfectio. Este nome, por sua vez, remete ao verbo perficere, perfazer, fazer algo do início ao fim, levar a termo. A noção de perfeição é haurida da experiência da existência artesanal. Nela, o ser humano, em fazendo obra, perfaz a si mesmo. Assim é quando um ofício é plenamente assumido por alguém. O artífice não somente faz obras, mas ele aperfeiçoa cada vez mais a sua arte e, através disso, ele vai aperfeiçoando sua própria humanidade. Então o ofício se torna profissão: um modo de proferir, de trazer à fala a humanidade de si, prestando um serviço aos outros seres humanos. Ele se torna alguém bom para a comunidade, para a sociedade, para os seres humanos. Ele serve, ou seja, ele não somente é prestativo, mas ele presta. Ele não somente é serviçal, mas ele de fato serve. Ele é plenamente útil. Dele os outros podem se servir e podem confiar em sua competência. Pelo seu zelo e diligência ele serve apropriadamente. Um tal homem é bom, no sentido de encontrar satisfação em seu próprio ser e operar e é bom, no sentido de levar os outros a ficarem também satisfeitos com o seu serviço. Ele é uma bênção para todos.


O ser-bom e a bondade, entendidos nesta perspectiva do perfazer e da perfeição remete-nos, pois, ao operar, em latim, opus facere, fazer obra, pôr em obra. Na língua latina, o verbo operari indica bem a dinâmica do fazer obra. Ele tem uma significação ativa, significando trabalhar, realizar um trabalho, mas é apresentado gramaticalmente com uma forma passiva. Na verdade, o significado deste verbo é neutro, nem ativo nem passivo. O operari não é nem ativo, nem passivo, nem reflexivo. É neutro. Mas esta neutralidade não significa indiferença. Ela significa o medial, isto é, o meio que permeia, a ambiência e a tonância de um fluxo. O operari indica o operar como uma dinâmica de realização anterior ao ativo e ao passivo, isto é, como dinâmica medial. Nesta dinâmica de realização medial apresenta-se a força da vigência e da incandescência do ser, sua presentificação como densidade e intensidade de um poder-ser. A plenitude desta dinâmica de realização do operar, do fazer obra, é que é o bem. Os medievais entendiam o trabalho como operar, fazer obra. Tratava-se de um trabalho artesanal. A arte é um saber criar, dar origem, à obra. A habilidade do artesão vem da inteligência e da vontade. Exige uma inteligência para captar as possibilidades de ser, os fins e as leis do fazer, e da vontade para se exercitar e para se engajar corpo a corpo na gênese da obra. A obra é um produto. Produção significa condução de uma determinada possibilidade de ser. Nesta condução o ser do que é produzido advém, vem para a proximidade, vem para o desencoberto e o aberto do mundo, torna-se plenamente presente, se perfaz. Este estado de plenitude do acabamento, da consumação da obra é o que chamamos de ser-bom, de bondade. E para significar que a obra provém da intimidade da vida daquele que a faz ou perfaz os medievais chamavam a obra de “fruto”.


Na espiritualidade franciscana se fala muito de fazer obras e produzir frutos. Também se insiste, como no evangelho, no perfazer, no ser perfeito. Este ser perfeito não tem nada a ver com igualar-se a um padrão moral. Este ser perfeito significa, antes, uma dinâmica de plenificação, de densificação e de intensificação do ser. No evangelho de Mateus, no Sermão da Montanha, Jesus, após proclamar as bem-aventuranças, chamar os seus discípulos a serem sal da terra e luz do mundo, a praticarem uma justiça que transborda da medida da justiça dos fariseus, a irem à raiz do significado dos mandamentos e após provocá-los para o amor aos inimigos, diz: “sede perfeitos, portanto, perfeitos, como o Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Podemos interpretar, assim: sejam plenos como o Pai do céu é pleno. Tenham em seu ser e em seu operar o modo de ser do Pai celeste, ampliando a capacidade de amar de tal forma que ela seja larga, ampla e profunda como é a d’Ele.


 

2.     O bem, a virtude e a felicidade


Uma vez que o ser-bom e, respectivamente, a bondade é a perfeição, a plenitude do vigor de ser, então o bem é dito ser aquilo “para que todas as coisas tendem”, segundo uma definição de Aristóteles (Ética a Nicômaco I, 1094 a). Tudo o que é tende para a plenitude de seu ser, para a sua perfeição, para o seu bem. Também o ser humano tende para o bem, a perfeição, a plenitude do seu ser. O bem próprio ao homem, o seu mais elevado ou sumo bem é a felicidade, dito de outro modo, a beatitude, a bem-aventurança. A felicidade humana consiste na plena realização da alma em conformidade com a virtude. A virtude é uma disposição estável adquirida voluntariamente, de boa vontade, a partir de uma livre autorrealização. Ela qualifica o ser humano, torna-o bom. O homem bom é, neste sentido, aquele em que se realiza e se manifesta mais altamente a virtude. A virtude foi chamada pelos filósofos de bonum honestum. A palavra latina honestus quer dizer aquilo que é digno de ser honrado, aquilo que é nobre e gracioso, belo. O bonum honestum (bem nobre) se opõe, de certo modo, ao bonum utilis  (bem útil). O bem útil é o que é bom para um determinado fim, o que é bom como um meio. Já o bem nobre é o bem que se há honrar e dignificar por si mesmo. A virtude não é boa para isso ou para aquilo. Ela é boa em si mesma e, enquanto tal, é digna de ser amada por si mesma. Vivendo conforme a virtude, o ser humano pode ser bem-aventurado, feliz. O homem bom é, assim, aquele no qual se manifesta a beatitude. Ser beato quer dizer ser bom. Bem-aventurado é aquele em que a vida foi conduzida à sua plenitude. É aquele em que a vida não só caminhou, per-fez a sua travessia, mas também foi bem sucedida em sua realização e se frutificou abundantemente em virtudes.


Boécio, um pensador cristão do século V, em sua obra “A consolação da filosofia”, em que ele dialoga com a Filosofia, que lhe aparece na prisão como uma dama, entendeu a beatitude como o estado que, pela congregação de todos os bens é perfeito, isto é, pleno. A beatitude não pode ser confundida com a felicidade (felicitas) que é trazida pela sorte (fortuna), isto é, pelo curso dos acontecimentos casuais e acidentais da vida humana. O vazio nome de “felicidade” (felicitas) costuma designar a posse de determinados bens humanos, como a saúde, o prazer, a riqueza, a honra, o poder, etc. Mas a posse destes bens é sempre precária. Deste modo, o homem não se encontra em sintonia com os termos de sua própria condição, em harmonia com a sua própria essência. Por quantas amarguras é atingida a doçura da humana felicidade! O erro dos seres humanos está em buscar fora de si mesmos a felicidade que só pode ser encontrada dentro deles. A felicidade (felicitas), entendida como a posse dos da Fortuna (sorte) não oferece a verdadeira vida feliz, a beatitude ou bem-aventurança (Beatitudo). Em que consiste, porém, a bem-aventurança? A felicidade é o bem sumo de uma natureza espiritual, isto é, livre e que se realiza pela capacidade de conhecer e de amar. Nos bens exteriores que costumam atrair os desejos dos homens, não se encontra o sumo bem de uma natureza espiritual. Nas riquezas, o homem não se sente seguro, securus, isto é,  sine cura, sem preocupações. Pelo contrário, ele se torna ansioso e inseguro, temeroso de perder o que conquistou. O homem que ama a riqueza nunca é feliz, pois ele nunca está satisfeito, sempre cobiça ter mais. Nos cargos, os homens buscam honra e poder. Contudo, a verdadeira dignidade e potência estão na virtude. Não são os cargos que tornam dignos de estima a virtude, mas é a virtude que torna dignos de estima os cargos. Os seres humanos procuram a grandeza e a fama. Não percebem que a terra, em relação à grandeza do universo é muito pequena e que mesmo homens que são considerados grandes para um povo ou para uma época, são ignorados por outros povos e por outras épocas. Mesmo de seres humanos outrora considerados célebres se perdeu a memória, com o passar do tempo. Uma imortalidade baseada na fama é ilusória. Assim, os seres humanos chamam com nomes falsos coisas que não podem dar a eles a verdadeira felicidade. Os bens da Fortuna não são os verdadeiros bens, visto que “a Fortuna nem sempre se associa aos bons, nem torna bons aqueles aos quais ela se associa (II, 6).


A verdadeira felicidade é vista pelo espírito humano como em sonho. Ele, de início, não é capaz de vê-la com clareza na sua verdadeira realidade, pois é distraído por imagens ilusórias da felicidade mesma. Tais imagens ocas, ilusórias, são a vaidade. Boécio pede, então, com insistência à Filosofia que lhe faça ver a felicidade real, verdadeira. Depois de ter exortado Boécio a desviar o olhar dos falsos bens e retirar o pescoço de seu jugo, a Filosofia dirige o olhar de Boécio para a verdadeira felicidade, apontando-lhe o Sumo Bem: aquele que é o único fim de todas as múltiplas humanas aspirações, o penhor de todos os empenhos humanos, o bem em relação ao qual não pode ter nenhum outro maior, aquele que reúne em si todos os bens.  “É evidente, portanto, que a felicidade consiste em um estado de perfeição consequente à presença de todos os bens” (III, 2: BOÉCIO, 1999, p. 183).


A vaidade, ou seja, a imagem oca e ilusória da humana felicidade esboça: riquezas, honras, poder, glória, prazer. Epicuro, levando isso em consideração, identificou o prazer com o sumo bem, visto que tudo o mais lhe parecia contribuir para a satisfação do espírito (III, 2). No entanto, aqueles bens são apenas simulacros dos verdadeiros bens. Os homens vão em busca de riquezas, cargos, reinos, glória, prazeres, “porque estão convencidos de que através da posse destas coisas poderão se sentir autossuficientes, respeitados, potentes, célebres, alegres” (III, 2). Estes últimos são os verdadeiros bens, dos quais os primeiros são apenas os simulacros. Os primeiros prometem dar os segundos, mas não são capazes de realizar aquilo que prometem. Por isso, são apenas uma aparência enganosa da felicidade (III, 3). A riqueza, entendida como posse dos bens materiais, não liberta o homem da carência e dependência, ou seja, não o torna o homem autossuficiente, pois ele continua dependendo, ansioso, daqueles e daquilo de que se serve. Os cargos não comunicam potência, virtude (virtus, em latim, significa vigor, força, potência). O homem que busca a honra, que ama ser temido e amado, depende daqueles que o honram, o temem e o estimam. Já a virtude tem uma potência em si mesma. “A virtude possui uma dignidade própria, que ela transfunde imediatamente naqueles aos quais ela se associa” (III, 3). A verdadeira potência vem do domínio de si mesmo e não do domínio dos outros. Também a glória é falaz. Muitos homens mesquinhos se tornaram famosos, porque a fama e a popularidade que lhes foi dada não fora fruto de uma avaliação razoável e racional. A verdadeira nobreza é aquela do espírito. O homem nobre de espírito é o que merece a razoável celebridade. O homem busca no prazer a alegria. Mas, não raro, com o prazer encontram o tédio, a dor, a ansiedade, o remorso. O prazer é como uma abelha: oferece o seu mel, mas também a sua picada. No prazer, portanto, não está a verdadeira alegria, nem se pode por ele encontrar a paz, a imperturbabilidade do espírito. A busca desses bens, portanto, são desvios, ou seja, vias errantes, pelas quais o homem não se avia ao encontro da verdadeira felicidade: a autossuficiência, a potência e a dignidade, a alegria. Por esses caminhos, o homem não chega à meta de seus desejos, ao sumo bem (Cfr. III, 8).


O primeiro passo no caminho da busca da beatitude é, pois, ver a ilusão daquilo que os homens costumam chamar de felicidade. O segundo consiste em ver a verdadeira felicidade. A felicidade é uma só: simples e indivisa. Autossuficiência e potência são uma só e idêntica natureza. Aquilo que é autossuficiente e potente é o unicamente digno de respeito, de honra. Por isso, autossuficiência, potência e respeitabilidade é uma única e idêntica realidade. Onde todos esses atributos se reúnem, por sua vez, encontra-se a verdadeira alegria. O verdadeiramente autossuficiente, potente, honorável e alegre é, assim, uma única natureza, um único ser e uma única vida. Desta única realidade provém aquilo que pode tornar os homens verdadeiramente autossuficientes, potentes, honoráveis e alegres. Este sumo bem, único e simples, fonte de toda a bondade, está acima de tudo o que é temporal e mortal. O sumo bem é o bem perfeito e absoluto, a plenitude do bem. Ora, somente no Deus supremo é posta a plenitude de todos os bens. Ele é o ser infinitamente superior a todos os seres. O bem se encontra nele por natureza e em plenitude. “Nenhum ente, de fato, poderá ter uma natureza melhor do que a do princípio, do qual tudo provém; por isso, é fácil concluir com absoluta segurança que o ser que se constitui como o princípio de todos os entes é ele mesmo, por sua essência, o sumo bem” (III, 10). E este sumo bem é a verdadeira felicidade, que o homem busca. Os homens, assim, se tornam felizes quando alcançam, pelo amor, a unidade com a divindade. Esse Sumo Bem, que é Deus, é o fim de todas as coisas. Tudo no universo tende para ele, tanto os entes irracionais, quanto os entes racionais. Tudo aspira ao bem, à medida que aspira ao ser e à unidade, ou seja, luta contra o nada e contra a dissolução. O ser, o uno, o bem, assim como o verdadeiro, coincidem na natureza simples de Deus. Ele é o Um que reúne todas as coisas, como o princípio primeiro e o fim último de todas as coisas. Ele é o timoneiro, que governa todas as coisas, com o timão da bondade.


 

3.     O bem que é Deus

 

Os filósofos intuíram algo do bem simples e absoluto. O bem é que torna capaz de ser todos os seres. Assim, ele está acima do ser de todos os seres. Platão chegou a dizer que “ele está muito além da essência em sua majestade e seu poder” (Rep. VI, 509b). O bem é divino, isto é, algo de extraordinário e de sumo. Ele é inefável e não se pode conceitua-lo. Pode-se ir a ele numa subida do espírito. Plotino, que segue a Platão, identificou-o como o princípio de todas as coisas. Ele, ao mesmo tempo que é o melhor dos seres, está além de toda essência. Ele é vontade, pois é sua própria vontade que lhe dá existência e ele é o poder de todas as coisas. Todos os seres participam do bem, todas as coisas recebem dele beleza e luz. Ele é o desejado para o qual todas as almas tendem. É o quinhão do sábio, a quem ele basta. Aristóteles disse que o bem substancial se chama Deus ou espírito. Ele é o que, como amado, atrai a tudo e constitui o sentido do movimento de todas as coisas. Porém, o relacionamento de Aristóteles com esse a quem ele chama o divino ou o Deus, não é um relacionamento religioso. Além disso, ele é amado, mas não ama. É que, para os gregos, amar significa ansiar por algo de outro, desejar algo outro, e Deus não pode ansiar por algo e nem desejar algo de outro, logo, Deus não ama e nem pode amar. Os gregos viram apenas a possibilidade e a necessidade de uma elevação do espírito humano para o bem, que é Deus. Mas não podiam vislumbrar uma descida de Deus na direção do ser humano e do mundo, um Deus que amasse e, enfim, um Deus que fosse ele mesmo, substancialmente, amor. Isso é uma boa nova do cristianismo.


Santo Agostinho entendeu que o caminho para a felicidade consiste em o ser humano saber articular bem o uti (uso) e o frui (a fruição). O ser humano busca fruir das criaturas e, assim, não alcança a beatitude. Elas não oferecem ao coração humano a verdadeira beatitude e o verdadeiro deleite. Por isso, ele aprender apenas a usá-las, isto é, a se servir delas, para chegar ao sumo bem e dele fruir. Este sumo bem é Deus. A beatitude é, pois, a fruição de Deus. A beatitude depende de o ser humano saber seguir a ordem do amor (ordo amoris). Em primeiro lugar, o homem precisa servir-se das criaturas, em vez de buscar nelas a satisfação plena dos seus desejos, pois a meta última da vontade é o Sumo Bem. Deter-se nas criaturas seria conter a marcha da vontade em seu caminho para o seu fim último. Em segundo lugar, o homem precisa amar menos o que é menos digno de ser amado: o corpo, menos do que o espírito. Pois, no próprio homem, há uma hierarquia de ser: o homem é uma alma que se serve de um corpo: “mortali atque terreno utens corpore” ([a alma é uma substância racional] que se serve de um corpo mortal e terreno) (Dos Costumes da Igreja I 27).  Em terceiro lugar, o homem precisa amar em igual medida o que em igual modo deve ser amado: o próximo. Em quarto lugar, o homem precisa amar acima de tudo o que acima de tudo é digno de ser amado: Deus, o Sumo Bem, o próprio amor.

 

 

4.     O relacionamento cristão com o Deus de Jesus Cristo ou do Evangelho como sumo bem.

 

O relacionamento cristão com o Deus de Jesus Cristo ou do Evangelho como o sumo bem é um relacionamento de encontro no amor, onde quem ama a Deus sabe-se, antes de tudo, amado por ele. Deus nos amou por primeiro. E todo o nosso amor a Deus é uma resposta a este amor gratuito de Deus. A realidade da graça, isto é, da gratuidade do amor de Deus, isto é, do amor que Deus tem por nós e que se revelou em nossa carne em Jesus Cristo e, de modo consumado, na cruz, é o ponto de partida para o relacionamento cristão com Deus como o sumo Bem. O caminho da perfeição evangélica consiste no seguimento de Jesus Cristo que nos conduz ao Pai e que nos capacita para tal seguimento com a graça e com os dons do Espírito Santo.

Lemos no evangelho de São Mateus:


Eis que alguém se aproximou e lhe disse (a Jesus): “Mestre, que de bom devo fazer para alcançar a vida eterna?” Ele lhe disse: “Por que me perguntas pelo bom? Um só é o bom. Se quiseres entrar na vida, observa os mandamentos”. Disse-lhe ele: “Quais?” Jesus respondeu: “Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não prestarás testemunho falso. Honra pai e mãe e ama teu próximo como a ti mesmo”. Disse-lhe o jovem: “tudo isso tenho observado. O que ainda me falta?” Respondeu-lhe Jesus: “se quiseres ser perfeito, vai, vende tudo que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois vem e me segue”. Ao ouvir isso, o jovem se foi triste, porque possuía muitos bens.


Nesta história, a posse de muitos bens se torna um impedimento para que o jovem seguisse a Jesus Cristo, Aquele que somente poderia dar a ele o acesso ao único Bom. Podemos dizer: o apego aos bens o impede de dar o salto da obediência da fé para o seguimento de Jesus e, assim, poder caminhar na ventura e aventura do discipulado, até se tornar bem-aventurado e alcançar possuir o tesouro, que é o único Bom.  A pobreza essencial podia abri-lo para a riqueza essencial, para o tesouro, que é o único Bom. Seguindo pobre o Cristo pobre ele poderia se tornar imensamente rico aos olhos de Deus. Encontraria a alegria verdadeira e plena. Mas, por causa do apego, ele se torna indigente aos olhos de Deus e é uma pena que tenha que ir embora triste. Deus é a riqueza essencial. A fruição de Deus, e não a dos bens criados, é que nos dá a mais plena realização, o maior deleite e a maior alegria.


Os teólogos franciscanos deram grande importante ao tema da fruição de Deus. São Boaventura, no início do primeiro capítulo do seu Itinerarium mentis in Deum (Itinerário da mente para Deus) diz:


“Bem-aventurado o homem, ó Senhor, que de ti recebe ajuda. Ele dispôs no coração os degraus para se elevar deste vale de lágrimas até o lugar onde está o termo de seus desejos” (Sl 83, 6s). A felicidade não é senão o gozo do sumo bem. O sumo bem está acima de nós. Ninguém, por conseguinte, pode ser feliz, senão elevando-se acima de si mesmo, não já com o corpo, mas com o coração. Mas, para elevar-nos acima de nós mesmos, temos necessidade de uma virtude superior. Quaisquer que forem as nossas disposições interiores, para nada servem, se a graça não nos ajudar. Ora, o auxílio divino está sempre ao alcance daqueles que o pedem do fundo do coração, com humildade e devoção. Quer dizer, é dado aos que, suspirando, se voltam para Deus nesse “vale de lágrimas” com ardente oração. A oração é, pois, o princípio e fonte de nossa elevação a Deus. Com efeito, Dionísio, no seu livro acerca da Teologia Mística, querendo nos instruir sobre os arrebatamentos da alma, começa com uma oração. Roguemos, pois, portanto, e digamos ao Senhor nosso Deus: “Conduze-nos, ó Senhor, na tua via, e eu caminharei na tua verdade. Que o meu coração se regozije no temor de teu nome” (Sl 85, 11).


Outro teólogo franciscano, João Duns Scotus, disse que a nossa vontade aspira à felicidade instintivamente, necessariamente, incessantemente, intensamente e em concreto. Ele entendia, como os demais teólogos, que a vida eterna ou a beatitude consiste no conhecimento no conhecimento de Deus pela inteligência e na fruição de Deus pela vontade. Mas ele fez uma ponderação importante: afirmou que, extensivamente, a beatitude consiste nas operações de ambas as potências, ou seja, da inteligência, que contempla a Deus, e da vontade, que frui de Deus, isto é, tem n’Ele o seu deleite; mas, intensivamente, a beatitude consiste somente na operação da vontade, que tem em Deus o seu deleite, isto é, na fruição de Deus. Ele definiu assim a beatitude:


A beatitude é um bem suficiente, excludente, a saber, de defeito e indigência; é o bem perfeito ou completo que exclui imperfeição ou diminuição; é o bem último que exclui a tendência e a ordenação ao outro bem mais completo; é o bem que, tido, aquele que o tem está completamente bem.


Vemos, nesta definição da beatitude como o sentido da plenitude, da completude, perpassa o que é esse sumo bem do homem. É o bem que basta. Quem o tem está plenamente satisfeito, nada lhe falta.


Podemos, agora, entender, por que o contrário do bom é, para São Francisco, o vão. Se o bem ou o bom é a plenitude, o ser cheio, suficiente e completo, então o seu contrário será o vazio, no sentido do oco, do inane, da falta de viço, vitalidade, vigor, consistência. O mal é privação do bem. Ele nem é. Ele só é como não-ser, como não-bem. O ser do mal, que é na verdade um não-ser, consiste, pois, na indigência, no defeito, na falta do viço, do vigor, da consistência do ser. Por isso, faz sentido colocar a oposição do bom e do ruim como sendo a oposição do bom e do vão.


 

5.     São Francisco nos ensina a invocar o Deus do Evangelho como nosso sumo bem com um amor seráfico (ardente):  

 

São Francisco não só fala do Deus de Jesus Cristo, o Deus do Evangelho, como sumo bem. Ele fala com este Deus invocando-o como tal sumo bem. Nos escritos encontramos algumas falas assim. Por exemplo, no capítulo XXIII da Regra Não-Bulada, no fervor do seguimento de Jesus Cristo, ele diz aos companheiros:


Amemos todos com diligência o Senhor Deus. Amemo‑Lo de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente, com todo o vigor e fortaleza, com todo o intelecto, com todas as forças, com todo o esforço, todo o afeto, todas as vísceras, todos os desejos e vontades. Amemos a Ele que nos deu e nos dá, a nós todos, todo o corpo, toda a alma e toda a vida; que nos criou, redimiu e somente por sua misericórdia nos salvará; a Ele que fez e faz todo o bem a nós, miseráveis e infelizes, pútridos e fétidos, ingratos e maus. 9Por isso, nada desejemos, nada queiramos, nenhuma outra coisa nos agrade e nos deleite, a não ser o nosso Criador e Redentor e Salvador, único verdadeiro Deus: Ele é o bem pleno, todo o bem, o bem inteiro, o verdadeiro e sumo bem. Só Ele é o bom, o piedoso, o manso, o suave e o doce. Só Ele é o santo, o justo, o verdadeiro, o santo e o reto. Só Ele é o benigno, o inocente, o puro. D’Ele, por Ele e n’Ele está todo o perdão, toda a graça, toda a glória de todos os penitentes e justos, de todos os bem‑aventurados que com Ele se regozijam nos Céus. Nada, pois, nos impeça e nos separe; nada se nos interponha.


Nos louvores de Deus Altíssimo, encontramos:


Tu és o Trino e Uno,

Senhor Deus dos deuses;

Tu és o bem, todo o bem, o sumo bem,

Senhor Deus vivo e verdadeiro.


Nos louvores para todas as horas, as laudes concluem com a seguinte oração:


Onipotente, santíssimo, altíssimo e Sumo Deus, que és todo o bem, o sumo bem, o bem inteiro, o único bem, a Ti rendamos todo o louvor, toda a glória, toda a graça, toda a honra, toda a bênção e todos os bens. Faça-se. Faça-se. Amém.


Por fim, na Exposição a respeito do Pai-Nosso, lemos:


Que estás nos Céus: nos anjos e nos santos; iluminando‑os para o conhecimento, porque Tu, Senhor, és luz; inflamando‑os para o amor, porque Tu, Senhor, és amor; neles habitando e os plenificando para a bem‑aventurança, porque Tu, Senhor, és o sumo bem eterno, do qual procede todo o bem, sem o qual nenhum bem existe.


Todos estes textos dos escritos mostram como relacionamento de São Francisco com o Deus de Jesus Cristo, com o Pai, é um relacionamento pautado pelo encontro tu a tu, pelo amor mais intenso, ardente e incandescente, pelo amor que os seus companheiros chamaram, com razão, de Seráfico...


Em louvor de Cristo. Amém...


Paz e Bem!


 

Para refletir:


1)    A partir do que foi refletido sobre a bondade como plenitude, como aparece no nosso dia a dia a vaidade enquanto vazio?

2)    O que possibilita a nós des-iludirmos da vaidade e entrarmos na verdade e na realidade do bem?




Continue bebendo do espírito deste tema:


- indo ao texto-fonte: 105º Encontro - 20ª Admoestação - Do religioso bom e do religioso fútil - Uma meditação a respeito do bom


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Uma meditação a respeito do bom

Professor Marcos Aurélio Fernandes


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