104º Encontro 03/02/24 20ª Admoest - Do religioso bom e do religioso fútil
- Frei
- 5 de fev. de 2024
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DO RELIGIOSO BOM E DO RELIGIOSO FÚTIL
Bem-aventurado o religioso que não encontra satisfação e alegria a não ser nas santíssimas palavras e obras do Senhor e, com elas, conduz os homens, com júbilo e alegria (Cf. Sl 50,10), ao amor de Deus. Ai do religioso que se deleita em palavras ociosas e vãs e com elas provoca os homens ao riso.
Introdução
Não apenas a fala de Deus é objeto da atenção de Francisco, mas também, a fala do homem. Eis o assunto dessa Admoestação e das duas próximas. Inspirado nos famosos discursos da antítese “bem-aventurado” X “Ai” de Jesus contra os fariseus e demais hipócritas, essas Admoestações nos conduzem para a luz da palavra quando é verdadeira, isto é, acompanhada das obras e para a sombra quando a palavra é falsa porque vazia de empenho, de obras.
1. Título
É a primeira vez que Francisco em suas Admoestações em vez de servo de Deus fala em religioso. Em seu tempo, religioso era a pessoa que abandonava o mundo, a família a fim de consagrar-se inteiramente a Deus, vivendo como eremita ou como membro de uma Ordem religiosa. Portanto, antes de uma pessoa devota, piedosa, dada à orações e outros atos religiosos, está indicando alguém que, movido pela graça do chamado decidiu fazer do seguimento de Cristo o sentido maior, único, primeiro e último de toda a sua vida. É um re-ligado, um ligado duas vezes a Deus: um re-ligioso. A exemplo do jovem que em casando se confia, se doa, se entrega inteiramente ao seu cônjuge, o religioso se doa, se entrega, vive e morre com Deus, por Deus e para Deus. Essa é sua vocação-missão-profissão, isto é, seu serviço a Deus e aos homens, sua colaboração com Deus na edificação da humanidade.
Dentro desse princípio, também as palavras “bom” e “fútil” devem ser vistas não em seu sentido ético ou moral, mas profissional ou, melhor, existencial. Ou seja, aqui se trata do ser da pessoa e não de sua conduta moral. É como quando se diz que o trigo agora está bom. Nesse caso, significa que ele chegou ao ponto de ser colhido e transformado em farinha, em pão. O mesmo sentido aparece quando se diz que estamos diante de um bom médico. Bom, aqui significa que por sua dedicação à medicina esse cidadão se tornou competente, útil à saúde, embora ou talvez seja uma pessoa cheia de defeitos humanos, grosseira, pouco generosa ou dada ao seu semelhante. É o contrário de um médico muito bonzinho, amável, “caridoso”, mas negligente no exercício da medicina. Para o primeiro se diz que é um bom médico, porque está cheio de medicina. Já o segundo é qualificado como vão, isto é, vazio, oco, sem conteúdo, semelhante a certas espigas bonitas por fora, mas vazias e ocas por dentro. Será um médico fútil, isso é, de pouca utilidade para a sociedade.
Ora, assim como bom médico é aquele que se deixa conduzir e atravessar pela medicina, a ponto de tudo o que fala, pensa, quer e faz é a saúde, da mesma forma, bom religioso é aquele que se deixa conduzir e atravessar por Deus de modo que seu pensar será o pensar de Deus, seu querer será o querer de Deus, seu falar e seu fazer será sempre o falar e o fazer de Deus. Será cheio de Deus, como uma espiga recheada de grãos, útil e eficaz para Deus e para os homens. Ao contrário, diante de um religioso vazio de Deus, perde Deus, perde ele, o religioso, e toda a humanidade.
Eis porque Francisco escreve: Do religioso bom e fútil. Uma outra versão tem como título: Do religioso feliz (realizado, alegre) em Deus e do religioso fútil. Poder-se-ia também dizer: do religioso útil e do religioso inútil. Ou seja, Francisco tem medo de que, chamados a tão grande responsabilidade, infinitamente maior que a de qualquer profissional desse mundo, nós franciscanos venhamos a ser inúteis porque vazios e vazios porque não assumimos nossa vocação no rigor e vigor de uma profissão. Como bom medieval, Francisco tem medo do vazio, do vão, do “papo furado”, como diz o povo, que apenas se importa com o show das aparências. Queria ser e ter companheiros confiáveis, “bons” e competentes na profissão chamada seguimento de Jesus Cristo crucificado e não apenas frades bonzinhos, piedosos, “caridosos” e bons em suas funções pastorais, etc.
2. Como tornar-se um bom religioso
O texto é muito breve. Duas frases apenas. Na primeira Francisco expõe o caminho que leva o religioso a tornar-se “bom”, eficaz, “útil” e na segunda o contrário, o caminho que torna o religioso vazio de sua Religião e, por isso, um inútil e ineficaz.
A primeira frase diz: Bem-aventurado o religioso que não encontra satisfação e alegria a não ser nas santíssimas palavras e obras do Senhor (1).
Nas biografias e mesmo em seus escritos vemos o quanto Francisco estima a alegria e a satisfação. Detestava frades tristes e insatisfeitos [Cf. Perfeita alegria]. Para ele um frade triste ou insatisfeito era um triste frade e que, enquanto não mudasse, não deveria permanecer na Ordem.
Aqui, evidentemente, em vez de uma alegria anímica, nascida da satisfação dos sentidos e do eu da própria subjetividade, o que está em jogo é a alegria, a satisfação que nascem de um bom assentamento do seu ser na raiz daquilo que constitui o princípio, o tesouro de sua vida. Assim, por exemplo, Jesus Cristo na Cruz está feliz, satisfeito, alegre, plenamente realizado por sentir-se amado pelo Pai e poder amá-lo, servindo Sua bondade, misericórdia, compaixão e perdão aos homens, seus filhos. Isso era o seu ser, seu tudo, sua vocação, missão e profissão no meio da humanidade. Por isso, a Cruz em vez de desgraça era uma graça. Isso porque ela o ajudava a ser o que era e devia ser: Filho do Homem que devia tornar-se Filho do Pai do Céu. O mesmo diga-se da mãe que sofre as dores da gestação e do parto. Sofre, mas está satisfeita, isto é, realizada, plena, prenhe, preenchida, sem nenhum vazio ou carência; está alegre, feliz, isto é, forte, firme porque a criança que está nascendo em seu seio é o dom maior de sua vida, seu tesouro, ou melhor, sua vocação, missão, sua própria vida, seu tudo.
E onde está, então, a verdadeira satisfação, a perfeita alegria, o tesouro que preenche e se constitui no sentido de toda a vida de um religioso ou franciscano? Nas santíssimas palavras e obras do Senhor, responde Francisco.
A resposta é muito simples e lógica. Primeiramente devemos anotar o “e” da dualidade: palavras e obras. Francisco, bem como toda aquela primeira geração de frades, sempre tiveram muito medo de um seguimento de Cristo avoado, isto é, só de palavras, de ideias, de pensamento, de inspiração, mas sem a operação, a obra, bem como de um seguimento só de atividades, afazeres, sem a palavra, a inspiração ou o espírito. No primeiro caso temos o “blá-blá-blá” de um idealismo vazio e que não leva a nada. No segundo, temos o que poderíamos chamar de “materialismo espiritual”, isto é, uma vida sem transcendência, sem unção, inflada de corre-corre, ociosa e inflacionária, que dá a impressão de estar sempre trabalhando, mas que, na verdade, não faz nada no que diz respeito ao seu ser, à sua profissão, à sua identidade de religioso (Cf. 2C 162,7). Segundo nosso Papa são pessoas que não trazem o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado... pessoas nas quais já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio de uma auto complacência egocêntrica (EG 95). Por isso, dizia Santo Antônio: o falar é vivo quando as obras falam. Cessem, portanto as palavras e falem as obras!
Quanto ao significado de nas santíssimas palavras e obras do Senhor deve-se realçar que Francisco nunca fala de fora, mas de dentro da história religiosa, vocacional sua e da Ordem. E as Fontes Franciscanas não fazem outra coisa senão, sempre de novo, mostrar o quanto tocava Francisco e os primitivos frades palavras que os transportavam para o princípio, a origem de seu chamado, palavras como Jesus Cristo Crucificado, Evangelho, pobreza, São Damião, Porciúncula, Apóstolos, esmola, obediência, castidade, eucaristia, leproso, doente. Celano, por exemplo, diz que Porciúncula, por exemplo, sempre foi tido como lugar sagrado, porque foi lá que nasceu a Ordem; que “Menino Jesus” era para ele como um favo de mel na boca (2C 199). Todas essas palavras eram para eles santíssimas. O mesmo diga-se dos acontecimentos que envolveram sua vida. Para Francisco ter nascido em Assis, naquela época, com aqueles pais; ter encontrado aquele pobre que lhe pediu esmola pelo amor de Deus, o leproso e depois, Cristo crucificado em São Damião; ter ouvido o Evangelho do Envio dos Apóstolos, etc. não foram eventos fortuitos, neutros, casuais, mas todos iniciativas prenhes do grande desejo do Senhor de encontrar-se com ele; iniciativas do Espírito do Senhor e seu santo modo de operar (RB 8,9).
Eis, portanto, diz Francisco, as santíssimas palavras, as obras, com as quais o frade deve alimentar-se, satisfazer-se e alegrar-se sempre e de novo. Fora disso será um religioso desventurado, infeliz, não realizado porque desenraizado de sua origem, alienado de sua identidade e, por isso, fútil, vazio, inútil.
3. E com elas conduz os homens com júbilo e alegria ao amor de Deus (2)
A conclusão é fácil de ser compreendida, principalmente por duas razões muito simples. Primeiramente, quem não se alegra e não se rejubila por estar diante de um profissional altamente competente e confiável, podendo, assim, receber dele trabalhos, obras executadas com esmero, ”úteis”, eficazes e com a garantia da perfeição?!
Além do mais, recordemos, mais uma vez, que, à semelhança das profissões civis, antes da pessoa, o religioso, existe para o engrandecimento, a realização dos outros, principalmente do grande Outro, que está no princípio e que é o senhor de sua vocação-profissão. Seria ridículo o médico querer ser médico somente para si, o professor ser educador somente para si, a água verter da fonte para si, o sol irradiar seus raios luminosos para iluminar a si, etc. Com muito maior razão devemos dizer do religioso que se aventura, devota e continuamente, no rigor da disciplina de sua religião somente para satisfazer o ego de sua subjetividade. Ao contrário, também ele foi e é convocado para fazer aparecer o brilho, a unção, a glória e o vigor do carisma originário de sua Ordem não apenas em si e para si e nos seus irmãos, mas também em todos quantos lutam e sofrem na aventura pelo sentido da vida. A exemplo do bom médico, que se deixa atravessar pela medicina, o religioso, deixando-se atravessar pelas palavras e obras do Senhor de sua vocação-profissão, torna-se uma luz para iluminar os passos, um fogo para aquecer o ânimo de todos quantos anseiam por um humano verdadeiramente alegre e feliz, plenamente satisfeito e realizado. Muitos religiosos, como Francisco, Clara e tantos outros, acercam-se tanto do mistério do Senhor, de suas palavras, de sua vocação-missão que eles mesmos vão se tornando fontes de água viva que saciam a sede de tantos quantos deles se acercam ou se fazem discípulos. É por essa razão que nosso Papa escolheu o nome de Francisco.
4. Ai do religioso que se deleita em palavras ociosas e vãs e com elas provoca os homens ao riso (3)
Como nas demais Admoestações, também aqui, Francisco, depois de mostrar o caminho da bem-aventurança, como bom mestre, não deixa de chamar a atenção também para o caminho da desventura.
Novamente começa com o famoso “ai” evangélico, usado por Jesus para mostrar seu sentimento de dor, sofrimento e compaixão diante do infortúnio de seu discípulo ou companheiro que se desvia para o caminho da desventura.
De fato, como é profundamente decepcionante, desalentador estar diante de um médico ou educador incompetente por causa da falta de profissionalismo. Pior ainda estar diante de um religioso que, por falta de empenho na disciplina da profissão religiosa de sua Ordem que um dia prometeu solene e publicamente observar e viver, não revela nenhum brilho, nenhuma unção da espiritualidade de sua vocação-profissão.
Para expressar esse descaminho, Francisco, como já assinalamos, em vez da palavra latina “malum” (“mau”) em oposição a “bonum” (“bom”) usa a palavra “vanum”. Além do que já dissemos no item 1. vão significa inútil, insípido, desolador. O tom negativo de todas essas palavras é uma tentativa de chamar a atenção para aquilo que deveria ser. Ou seja, todo cristão ou religioso que não assenta sua realização nas palavras e obras que deram origem à sua vocação-profissão, iludindo-se com o fascínio de outras profissões, perde sua identidade (alma), nada faz de bem para si e em nada contribui para a edificação dos outros.
Longe de nós, porém, pensar que Francisco esteja dizendo que devemos ser sisudos, proibidos de contar anedotas ou fazer brincadeiras, impondo-nos um fraternismo barato, carola e insípido. Sua exortação é bem outra. Trata-se, em verdade, do alerta de um pai ou mestre receoso de que seu filho ou discípulo enverede pelo caminho da desventura.
Seguindo a lógica e a dinâmica de cada profissão, quando o religioso deixa de fazer as obrigações essenciais e inerentes à sua profissão, assumida pública e solenemente, como um bem comum e não apenas como um bem particular seu, sua identidade de religioso não terá nenhum brilho, nenhuma unção ou valor. Com isso deixa de contribuir para o bem comum e para o surgimento de uma nova humanidade, impregnada com o espírito evangélico; por causa desse seu vazio, logicamente, os outros não poderão leva-lo a sério e, com o tempo, haverão até de esquecê-lo. Além do mais, como, de uma ou de outra forma, precisa sentir-se valorizado, útil e realizado, cairá facilmente na tentação de inventar “modismos”, fazer sermões estrondosos e gritantes no melhor estilo dos artistas de televisão ou de circo. Todos, evidentemente, riem e saem do encontro ou da Missa até certo ponto animados e alegres. Mas, como se trata de um entusiasmo sem raiz, logo fenece e depressa sentirá o amargor do vazio de sua vida de religioso.
Conclusão
A Admoestação está em consonância com o dito do Senhor: “A boca fala da abundância do coração” (Mt 12,34). Ora, como um profissional de Deus (religioso) e da Religião haverá de falar e testemunhar de modo adequado, correto e eficaz, as palavras e as obras de seu Senhor e de sua Religião senão aquele que, a exemplo de Maria, as medita profunda e longamente, até transformá-las numa profunda experiência pessoal?! Por isso, dizia o Santo: “O pregador deve haurir primeiro nas orações, feitas em segredo, aquilo que depois vai derramar em palavras sagradas. Tem de se aquecer primeiro por dentro, para não proferir para fora palavras frias” (1C 122).
Paz e Bem!
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Professor Marcos Aurélio Fernandes
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