100º Encontro 27/05/23 18ª Admoest - Da compaixão do Próximo
- Frei
- 26 de mai. de 2023
- 10 min de leitura
DA COMPAIXÃO DO PRÓXIMO
Introdução
O título nos surpreende porque, entre as Bem-aventuranças evangélicas, não há nenhuma que explicitamente venha intitulada com a palavra compaixão. Mas, talvez, com esse título Francisco queira dizer que todas as bem-aventuranças contém um quê de compaixão ou melhor, que devem ser vistas como expressão da infinita com-paixão do Senhor Deus. Ou seja, que a compaixão do próximo, revelada e testemunhada por Cristo, é o coração não só das bem-aventuranças, mas também o sumo de todo o seu evangelho, sua grande boa e bela notícia. Mal comparando, a compaixão é, para o Reino de Deus, aquilo que é o princípio ativo de um remédio. Assim como um remédio, sem seu princípio ativo, não opera nenhuma cura, também a Boa Nova do Pai sem a compaixão não seria Boa Nova, uma vez que não operaria nenhuma salvação, não aconteceria o Reino de Deus, muito menos a graça de nos transformar em filhos de Deus. Isso revela também que Francisco, para além de uma leitura literal, procura ler o Evangelho de modo pessoal, investigativo, responsável, vivo, encarnado.
Por isso, compaixão, aqui, mais que um simples e mero sentimento de “pena” que pode, até mesmo, levar-nos a muitos atos de filantropia, aponta para algo bem mais profundo e radical. Trata-se daquele vigor ou virtude, daquele fogo ou iluminação que orientou, animou e conduziu todo o mistério ou obra de Jesus Cristo, desde a Encarnação até sua morte na Cruz. O que ardia e crepitava no coração de Jesus era sempre a experiência do bem querer do Pai que o levava a querer fazer sempre sua vontade, bem como o bem querer de seus filhos, os homens, a Ele confiados para serem salvos, isto é reconduzidos até Ele, o Pai. Por Ele e por eles Ele veio ao mundo; por Ele e por eles Ele viveu e morreu; por Ele e por eles ressuscitou e continua vivo, fazendo-se presente em cada uma de suas criaturas, através de seu Espírito. Por isso, dizíamos ser essa – a compaixão - a bem-aventurança de todas as bem-aventuranças, a arquitrave que suporta a Igreja (MV 9), a chave que nos abre a porta do paraíso. Pode-se dizer que, juntamente com a misericórdia, ela é a plenitude do Reino de Deus: a bem-aventurança eterna.
Vejamos o texto:
1Bem-aventurado o homem que suporta o próximo segundo sua fragilidade naquilo que quereria ser suportado por ele, se estivesse em idêntica situação. 2”Bem-aventurado o servo que devolve todos os bens ao Senhor Deus” (Cf. Tb 13,12), porque quem retiver algo para si, esconde em si “a riqueza do Senhor seu (Mt 25,18) Deus e o que julgava ter, ser-lhe-á tomado” (Lc 8,18).
Em verdade, estamos diante de duas admoestações, duas bem-aventuranças. Poder-se-ia discutir se foram ajuntadas, posteriormente, numa só ou se de fato foi assim que nasceram da boca de Francisco. O mais provável é que essa segunda hipótese seja a mais correta. Mas, essa questão, na verdade, é de somenos significância.
1. Bem-aventurado o homem (1)
Como em diversas outras Admoestações, também nessa Francisco começa com um bem-aventurado. Além do que já comentamos anteriormente acerca dessa expressão evangélica vale recordar, também, que bem-aventurado revela o modo de ser próprio do homem: ser e estar na graça de uma contínua tarefa de perfazer-se, de ter de responsabilizar-se, isto é, de aventurar-se na e pela vida. Por isso, enquanto que em referência aos animais e outras criaturas irracionais dizemos apenas que elas alcançaram um bom ou mau crescimento ou desenvolvimento, do homem falamos em termos de homem “feliz” ou “infeliz”, “realizado” ou “frustrado”. Enfim, de alguém bem ou mal aventurado.
Já no próprio ato de nascer o homem vem impregnado de uma grande e bela aventura. Nasce como herança de uma história e fruto de uma paixão, amor, enamoramento, família, comunidade ou povo; fruto de uma terra, de cuja pertença, como de uma mãe, não pode jamais negar ou se desfazer. Todo esse patrimônio, porém, não lhe é dado como fato, mas como tarefa ou tesouro que precisa ser procurado, amado e cultivado. O ser humano sempre estará nessa ingente e urgente tarefa de vir-a-ser na dinâmica da liberdade e da responsabilidade. Eis nossa grandeza, nosso privilégio, mas também nosso desafio, risco e drama. E, para nós cristãos e franciscanos, todo esse patrimônio se resume em seguir Nosso Senhor Jesus Cristo, pobre e crucificado, observando seu Evangelho (Cf. RB I). Bem aventurado será, então, aquele que começa, continua e termina bem nessa sua ventura ou vocação primordial.
2. Suportar o próximo segundo sua fragilidade
Vem, então, a grande pergunta: como realizar ou concretizar, no dia a dia de nossa vida, essa grande vocação de seguir Cristo e, assim, tomar-nos realmente bem-aventurados?
Francisco responde: suportando o próximo segundo sua fragilidade naquilo que quereria ser suportado por ele, se estivesse em idêntica situação.
Novamente, devemos recordar que Francisco está falando para pessoas que, tocadas pelo vigor da graça do encontro, se dispuseram vender tudo para seguir Jesus Cristo, vivendo a radicalidade do Evangelho, proposta por Ele no Sermão da Montanha. Para esses que querem viver plenamente a vida cristã há, pois, uma proposta de ouro, um resumo, uma espécie de vade-mécum para todos os momentos do dia a dia, assim formulado por Jesus: “Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a eles! Isto é a Lei e os Profetas.” (Mt 7,12).
Os dois ditos, diferentes nas palavras, são iguais no conteúdo. As diferenças são mínimas. Enquanto Jesus fala em fazer, Francisco fala em suportar; enquanto Jesus fala em “outros”, Francisco fala em próximo. Mas, ambos propõem como caminho da bem-aventurança o trabalho, o empenho, o pôr em obra. Jesus corrobora seu dito com a autoridade da Lei e dos profetas, ou melhor: que, seguindo esse princípio, se está cumprindo a Lei e os Profetas. Trata-se da regra de ouro para a verdadeira comunhão consigo, com os outros e com Deus; a regra que salva e liberta o homem do inferno do isolamento e o introduz no paraíso do convívio consigo mesmo, com Deus e com o outro. É a lei da Encarnação, o vade-mécum de Cristo: jamais fazer sua vontade própria para fazer sempre a vontade do Outro. O Outro o Pai e o outro os próximos, tanto pessoas como demais criaturas.
Francisco fala em suportar o próximo. Literalmente, esse verbo está dizendo: carregar algo pondo-se de baixo dele. Pela sua Encarnação, Jesus se coloca de baixo de nossa natureza, submete-se ao humano de cada um de nós. A Ele, que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus (2Cor,5,21). Além do mais, Jesus nunca se vangloriou de sua condição de ser Deus; nunca quis ser tratado como tal. Pelo contrário, sempre fugiu quando aparecia tal oportunidade, chegando a proibir terminantemente quem quisesse fazê-lo.
Quis carregar nossa condição de criaturas finitas, errantes e pecadoras não como um peso, mas como uma graça, honra e glória; como mãe que carrega em seu seio ou colo o precioso tesouro de sua vida: o filho. Daí a conclusão do Apóstolo: Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus (idem). Ou seja, assim como Ele carregou nossa vida com todas as nossas misérias, devemos também nós carregar nossos fardos, nossos pecados uns dos outros.
Jesus se compadece de nós com e como nós padecemos, sofremos, isto é, como criaturas frágeis, finitas e pecadoras. Por isso não vem em forma divina, infinita, santa, poderosa, ostensiva como conviria a um Deus todo poderoso, justiceiro e santo. Vem, ao contrário, de modo muito humano, finito e, embora jamais tenha cometido nenhum pecado, apareceu e padeceu como o maior pecador de toda a humanidade e de todos os tempos. Não vem a nós como um mestre, um “benfeitor”, um maior ou senhor, mas como servo, menor: como aquele que precisa e quer receber de nós nosso amor.
Realizou, assim, o desejo mais profundo do homem: acolher um Deus tão próximo e íntimo a ponto de poder tê-lo como amigo, irmão, filho ou pai; um Deus que o compreendesse e o aceitasse em sua fragilidade, finitude e condição de pecador. Enfim, para nos amar assumiu a nossa carne humana. Eis o princípio originário dessa primeira Admoestação: suportar o próximo segundo a sua fragilidade ... Uma aplicação quase literal do que proclama o Apóstolo: Ele, em subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a Deus. Mas, aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo, tornando-se solidário com os homens. E apresentando-se como simples homem, humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte e morte de cruz (Fl 2,6-8).
3. Bem- aventurado o servo que devolve todos os bens ao Senhor Deus (2)
A segunda bem-aventurança ou admoestação dessa XVIII Admoestação parte da experiência mais forte e expressiva que o medieval tinha acerca do humano: a de ser criatura, isto é, que ele, a partir de si, é um nada e, consequentemente, se ele era ou existia a razão estava em alguém que o criara. Dependia desse alguém como a água da vertente, a árvore da raiz, o filho do pai, da mãe. Dessa experiência fontal via e entendia que tudo o que possuía ou tinha, como inteligência, saúde, talentos, etc. nada disso era seu porque pertencia ao seu Criador. Mas, não um Criador tipo “Máquina” que dá início à obra da Criação e depois se retira, abandonando-a à sua própria sorte. É, antes um Criador sempre presente, à cada uma de suas criaturas, a modo de Pai. Por isso, ele O chamava reverentemente de altíssimo, onipotente e bom Senhor ou de sumo Deus, o sumo bem, o bem inteiro, o único bem (LH). Por isso, a esse seu Deus criador, Pai e doador de todos os bens, ele devia devolver tudo com gratidão e frutos.
A experiência de ser nada, porém, não tem nenhum sentimento de carência ou “pobreza”. É um nada todo próprio, especial, honroso e grande porque pode dar a Deus algo todo de si, algo que nenhuma outra criatura pode fazê-lo, e do qual nem Ele mesmo, Deus, pode obrigá-lo: a grandeza em poder amá-Lo, adorá-Lo e dispor-se para bem servi-Lo. Tudo isso Deus não pode exigir-lhe porque é competência única e exclusivamente dele, do homem. Eis a grandeza, a honra do seu nada: poder amar e servir a Deus, o Senhor dos senhores e amar seus semelhantes e irmãos, como nenhuma outra criatura pode ou consegue fazê-lo e, acima de tudo, como Ele o faz: na plenitude da liberdade. Eis sua grandeza, honra, dignidade, felicidade e bem-aventurança. Eis porque Francisco chama de Bem-aventurado o servo que devolve todos os bens ao Senhor Deus. E em contra partida, infeliz, desventurado aquele servo que retiver algo para si ou esconder em si a riqueza do Senhor seu Deus. Isso lhe acontecerá porque o que julgava ter, ser-lhe-á tomado (2)
Essa bem-aventurança parte do princípio de que o nosso Criador tem o modo de ser da fonte, é um Deus-Doação e que, por conseguinte, cada uma de suas criaturas é chamada e criada para expressar e viver seguindo a dinâmica própria desse vigor originário. Em cada uma delas, através, principalmente, de sua bondade, misericórdia, compaixão Deus pode revelar e expandir sua Deidade. O contrário também é verdadeiro. Quanto menos a criatura, no caso o homem, se recusa a fazer de sua vida uma doação, peca, falha, afastando-se de sua fonte ou rejeitando essa sua pertença originária. Assim, não apenas impede a floração do vigor originário no mundo e na história, mas também, torna-se um defraudador dos bens de seu Senhor. Por isso, o famoso princípio evangélico de dar a Deus o que é de Deus significa, em última análise, cuidar bem de todas as criaturas porque são presentes, presenças, sacramentais do altíssimo, onipotente e bom Senhor!
Por isso, bem logicamente e dentro desse princípio, a Igreja sempre inicia a Liturgia Eucarística de cada Missa com o rito da apresentação das oferendas, declarando assim, publica e solenemente, que tudo é do Senhor, e que por isso a Ele tudo deve ser devolvido, oferecido, sacrificado.
DA COMPAIXÃO DO PRÓXIMO, HOJE
Para Francisco, se um grãozinho de areia existe, se uma ave do céu voa, se um lírio do campo se reveste melhor que os príncipes das cortes reais, se um cabelo de nossa cabeça não cai é porque todos estão sendo cuidados pelo seu e nosso Pai do Céu. Ora, o que, então, não dizer quando se trata de uma de suas criaturas prediletas, o homem e, entre esses, o pobre, o doente, o leproso, o desgarrado da Casa do Pai?! Como, então, não deveria ser grande e contínua nossa compaixão para com todo nosso próximo, a começar por Ele, o Próximo dos próximos, o Bom samaritano vindo do Céu?!
Ouçamos o que diz nosso Papa Francisco: Quem deseja verdadeiramente dar glória a Deus com sua vida, quem realmente se quer santificar para que a sua existência glorifique o Santo, é chamado a obstinar-se, gastar-se e cansar-se procurando viver as obras de misericórdia. Muito bem o entendera Santa Teresa de Calcutá: «sim, tenho muitas fraquezas humanas, muitas misérias humanas. (...) Mas, Ele abaixa-Se e serve-Se de nós, de ti e de mim, para sermos o seu amor e a sua compaixão no mundo, apesar dos nossos pecados, apesar das nossas misérias e defeitos. Ele depende de nós para amar o mundo e demonstrar-lhe o muito que o ama. Se nos ocuparmos demasiado de nós mesmos, não teremos tempo para os outros» (GE 108).
Em sua mensagem de Angelus de 16 de novembro de 2014, o Papa Francisco fez um interessante comentário acerca da parábola dos talentos (Mt 25,14-30). Depois de dizer que os talentos que o Senhor nos confiou para serem multiplicados são sua Palavra, a Eucaristia, a fé no Pai celestial, o seu perdão... acrescenta: O buraco escavado no terreno pelo «servo mau e preguiçoso» (v. 26) indica o medo do risco que bloqueia a criatividade e a fecundidade do amor. Sim, o medo dos riscos do amor bloqueia-nos! Jesus não nos pede que conservemos a sua graça num cofre! Jesus não nos pede isto, mas deseja que a utilizemos em vantagem do próximo. Todos os bens que recebemos devem ser transmitidos aos outros, porque só assim crescem. É como se Ele nos dissesse: «Eis-te a minha misericórdia, a minha ternura, o meu perdão: toma-os e usa-os com magnanimidade». E nós, o que fazemos disto? Quem «contagiamos» com a nossa fé? Quantas pessoas encorajamos com a nossa esperança? Quanto amor compartilhamos com o nosso próximo? São perguntas que nos fará bem formular. Qualquer ambiente, até o mais distante e impraticável, pode tornar-se um lugar onde fazer frutificar os talentos. Não existem situações nem lugares fechados à presença e ao testemunho cristão. O testemunho que Jesus nos pede não é fechado, mas aberto, depende de nós.
Isso exige que sejamos cristãos em saída. Por isso, conclui o Papa: Esta parábola anima-nos a não esconder a nossa fé nem a nossa pertença a Cristo, a não enterrar a Palavra do Evangelho, mas a fazê-la circular na nossa vida, nos relacionamentos, nas situações concretas, como uma força que põe em crise, que purifica e renova.
Para pensar e partilhar:
1. Por que Francisco coloca a virtude da compaixão no rol das Bem-aventurança?
2. O que significa e no que implica, “devolver todos os bens ao Senhor?”
Paz e Bem!
Fraternalmente,
Frei Dorvalino Fassini, OFM e Marcos Aurélio Fernandes
Continue bebendo do espírito deste tema:
- indo ao texto-fonte: 100º Encontro - 18ª Admoestação - Da compaixão do Próximo
- postando seus comentários;
- ouvindo no YouTube: Frei Dorvalino - 100º Encontro - 18ª Admoestação -
Da compaixão do Próximo
Inscreva-se e curta nossos vídeos
Próximo Encontro: 101º Encontro - Admoestação XVIII - Da compaixão do próximo - Na pobreza do amor-caridade, con-sofrer os males do próximo e devolver o bem do Senhor
Σχόλια